Rita Lee tinha uma aptidão invulgar para construir canções. O jeito informal, desinibido, de boa-praça, contribuiu para desvalorizamos o seu principal dom: a prodigiosa compositora. As composições para Os Mutantes — a primeira grande banda de rock no Brasil — e para os Tutti Frutti — o expoente do glam — seriam suficientes para sedimentar o nome de Rita Lee entre os principais compositores de rock ao sul do Equador. Mas a compositora desprendeu as amarras das bandas, Os Mutantes e Tutti Frutti foram condenadas à irrelevância, e libertou-se em definitivo.
O momento de rutura é o álbum a solo de 1979 — Rita Lee de costas, com a tatuagem no ombro — que coincide com o encontro com o guitarrista Roberto de Carvalho. A dupla Rita e Roberto deixaram-nos um tratado pop, de uma leveza insuperável, um modelo de fazer canções radiantes que foi sucessivamente copiado, até aos nossos dias. Este modelo rendeu canções e canções memoráveis, invariavelmente sobre o que mais apaixonava Rita Lee, uma tríade singular de sexo, drogas e feminismo. Ao todo são 326 canções e o desafio aqui é um trabalho ingrato: selecionar as 15 canções obrigatórias de Rita Lee.
“Panis Et Circensis”
O cenário é uma pensão modesta, na sombra do Pão de Açúcar, e dois músicos espremidos num quarto, em frente a um pequeno jardim. Nas margens do bairro de Botafogo, Rio de Janeiro, Caetano Veloso e Gilberto Gil estão prestes a criar, sob o olhar atento de uma nova amiga, uma canção iluminada de sol. Desenlaçam os violões e, subitamente, a pensão não é modesta, nem o jardim pequeno, soltam-se tigres e leões, folhas de canábis procuram o sol, e uma voz angelical, com alma de diabo, estreia-se sozinha em disco:
“Mandei plantar folhas de sonhos no jardim do solar
As folhas sabem procurar pelo sol
E as raízes procurar, procurar
Mas as pessoas da sala de jantar
Essas pessoas da sala de jantar
São as pessoas da sala de jantar
Mas as pessoas da sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer”
Em 1967, Rita Lee assiste pasmada ao nascimento de “Panis Et Circensis”, uma canção circense que apunhala em arena o conservadorismo da Ditadura Militar, a gente ocupada em nascer e morrer. Os compositores tropicalistas oferecem a canção a Rita Lee, Arnaldo e Sérgio Baptista — Os Mutantes — um grupo de São Paulo que florescia naturalmente tropicalista, alienado de qualquer dogma conceitual — “hiponga comunista com um pé no imperialismo” definia-se então Rita Lee, uma miúda de vinte anos reconhecida pela destreza de cantar “meio-desafinado” e fumar “cigarrinhos de índio”.
“2001”
“Ritinha querida, catei no lixo uma poesia maravilhosa que não sei por que Tom Zé amassou e jogou fora”, sussurrou-lhe Guilherme Araújo, o empresário do movimento Tropicália. A primeira reação foi perplexidade — “amei a velocidade” e “casei com sete planetas”? — mas a peculiar boa disposição de Rita Lee contemplou ali um astronauta camponês, de viola e sanfona caipira, sotaque nordestino, inspirado na figura marciana do amigo Tom Zé. “Foi então que Deus me sussurrou a charada e juntou Kubrick a Mazzaropi, me revelando o astronauta caipira oculto: Jeca Tatu goes to Mars”, revelou na autobiografia sobre a sua primeira composição sem os irmãos Baptista, mais um clássico, mais um fracasso na tabela de vendas.
“Ando meio desligado”
O final da Tropicália e a sucessão de fracassos não incomodou particularmente Rita Lee, desde que os tais “cigarrinhos de índio”, e agora o ácido lisérgico, continuasse a chegar em doses generosas. Em 1970 compõe um hino à indiferença, ao prazer de ver tudo e não sentir nada, a esvoaçar pelo período mais violento da Ditadura Militar — “Ando meio desligado/ Eu nem sinto meus pés no chão”. “Para sobreviver a uma ditadura só tomando muito LSD”, justificou ao Observador Rita Lee, que neste período adopta definitivamente o mote de vida “porra-louca feliz”, com a contracapa de Ando meio desligado, porque não, com um amigo disfarçado de nazi e os três músicos enrolados na cama.
“José”
O registo vocal de Rita Lee deve ser enquadrado numa época, entre Françoise Hardy e Marianne Faithfull, um timbre aflautado, ajustado à imagem de sensualidade frívola, de eyeliner protuberante. A cantora não era nada disto, aquela loura escondia uma ruiva de “cuerpo caliente”, mas a imagem vendia; e Rita Lee foi convencida a gravar em nome próprio, ainda com os irmãos Baptista. Nara Leão sugeriu a Rita Lee um single improvável: uma balada lacrimejante de Georges Moustaki. Arnaldo e Sérgio, zelosos do rock ‘n roll, desaprovam e recusaram-se a tocar a canção ao vivo, que foi logo, ironia do destino, o primeiro (e único) sucesso de Os Mutantes.
“Balada de louco”
O louco da balada não era uma metáfora para a demência daquele tempo, era um louco clinicamente comprovado: Arnaldo Baptista. O marido por convivência de Rita Lee, aspirante a McCartney brasileiro, não aguentou a dieta lisérgica, e como confessou a cantora, começou a ficar “esquisitão”, a título de exemplo, decorava a casa com estátuas roubadas do cemitério mais próximo. A balada de Rita Lee é a despedida não oficial do circo mutante, com um protagonista perdido no labirinto da sua insanidade — “Eu juro que é melhor/ Não ser o normal/ Se eu posso pensar que Deus sou eu”. E seria Arnaldo a martelar o último prego no caixão de Os Mutantes: “você não tem calibre como instrumentalista”, disse a Rita Lee. “Uma escarrada na cara seria menos humilhante”, recordou a teclista, flautista, percussionista, compositora e alma da primeira grande banda de rock brasileiro.
“Menino Bonito”
A ressaca de Os Mutantes foram dois anos de, nas palavras da própria, “seja-o-que-deus-quiser”, inclusive com “viagens psicodélicas” numa quinta em Portugal — não peçam mais detalhes que ela evidentemente não se recordava. O resultado foi uma outra Rita Lee, ruiva de “vermelho-menstruação”, vestes de uma decadência deslumbrante, glam dos pés à cabeça, com uma nova banda a dar corpo às suas canções, os Tutti Frutti do guitarrista Luis Sérgio Carlini. Se Carlini era o Mick Ronson da Avenida Paulista, Rita era o “Bowie das selvas”, e Atrás Do Porto Tem Uma Cidade de 1974, com o brilhante “Menino Bonito”, foi o renascimento da cantora que não tinha calibre de instrumentalista — ainda alguém se lembra de Os Mutantes?
“Ovelha Negra”
A ovelha negra da família encontrou-se finalmente em 1975. O álbum Fruto Proibido é o primeiro disco sublime de Rita Lee, a obra-prima do glam brasileiro, com um repertório de clássicos insuperáveis: “Cartão Postal” e “Esse tal roque enrow”, com letras de Paulo Coelho; “Luz Del Fuego”; ou a biográfica “Agora só falta você” — “Um belo dia resolvi mudar/ E fazer tudo o que eu queria fazer/ Me libertei daquela vida vulgar”. Fruto Proibido é um levante nesse tal de roque enrow brasileiro, a libertação definitiva da vida vulgar, com uma feminista em pleno na frente do palco — “eu queria provar que rock também se fazia com útero, ovários”. Em Fruto Proibido, assumiu o desafio:
“Foi quando meu pai me disse filha
Você é a ovelha negra da família
Agora é hora de você assumir
E sumir”
“Arrombou a festa”
Uma das particularidades encantadoras do glam foi ignorar o progressivo e recuperar descaradamente os primórdios do rock, com um retoque de maquilhagem. Rita Lee adotou a mesma estratégia em “Arrombou a festa”, um single avulso inspirado na Jovem Guarda de Roberto e Erasmo Carlos que ofendia – com carinho – os colegas sisudos da música popular brasileira — “Ai, ai, meu Deus, o que foi que aconteceu/ Com a música popular brasileira?/ Todos falam sério, todos eles levam a sério/ Mas esse sério me parece brincadeira”. “Não queria perder meu tempo lutando contra um filme de horror quando podia fazer da vida uma comédia”, explicou na autobiografia, delineando um “plano político”: “jogar zilhões de LSDs na caixa de água da Vila Mariana”
“Mania de Você”
A canção foi composta em cinco minutos, depois de “uma recém-trepada perfeita” com o marido Roberto de Carvalho, o “doce vampiro” que roubou o coração de Rita Lee até ao final da sua vida. A história de amor mais sensual da música brasileira não é um mero apontamento: o álbum homónimo de 1979, o primeiro em parceria com Roberto de Carvalho, é uma ode ao sexo, e um candidato ao disco de rock brasileiro mais influente. Nas portas da década de oitenta, Rita Lee canta sobre o prazer feminino, e a alegria esfuziante de viver, antes da explosão do rock festivo de Blitz ou Barão Vermelho. Um álbum iluminado, em acelerado corre-corre, como todas as grandes noites, único e fulminante. Resta-nos suplicar uma e outra vez: “Chega mais, chega mais”.
“Lança Perfume”
O homónimo de 79 é a obra-prima e primeiro sucesso massivo de vendas, mas o álbum seguinte, em 1980, outro homónimo, é o vinil que está na prateleira de qualquer casa brasileira — e portuguesa — que se preze. Este clássico pop brasileiro é a afirmação definitiva de Rita Lee, com o carro-chefe “Lança-Perfume”, a canção espirituosa que versa sobre duas temáticas que diziam muito a esta compositora: sexo e drogas. A protagonista suplica que lhe façam de “gato e sapato” — “e me deixa de quatro no ato” — e equipara a dádiva a um lança-perfume — “tsssss” — o célebre alucinógeno de carnaval dos anos 20.
“Saúde”
“Me cansei de lero-lero/ Dá licença, mas eu vou sair do sério/ Quero mais saúde”. Desculpe Rita Lee, pasmou-se o público em 1981, está a dizer-nos por cima deste maravilhoso synthpop que deixou-se da “porra-louca”, agora é saudinha? Não era ironia, a cantora estava grávida do terceiro filho, o resultado é um período de infalível sobriedade; nada que tivesse interrompido a fase áurea pop da dupla Rita e Roberto, com um kamasutra de canções cada vez mais extenso — e a censura tenta mesmo travar a pouca-vergonha de “Banho de Espuma”:
“Fazendo massagem, relaxando a tensão
Em plena vagabundagem, com toda disposição
Falando muita bobagem, esfregando com água e sabão”
“Cor de Rosa Choque”
O registo agudo acima do habitual e as melodias de guitarra em resposta são o êxtase pop de Rita Lee. E a letra é uma conquista à parte, quem mais colocaria estas três frases imortais numa mesma canção:
“Mulher é bicho esquisito
Todo mês sangra
Um sexto sentido maior que a razão”
O álbum de 1982 é um conjunto inverosímil de canções, de uma dupla aparentemente impermeável ao erro, desde a nostálgica homenagem às drogas de pré-adolescente — “No escurinho do cinema/ Chupando drops de anis” — ao desejo absurdo de regressar para o ventre da mãe — “Quero voltar invisível/ Pra dentro da barriga da mamãe”. Resultado? O maior sucesso da carreira e um dos álbuns mais vendidos da história do Brasil.
“Vítima”
O tenebroso órgão sintético que abre o álbum de 1985 augura uma cena macabra, discorre de guerra, restos mortais e um mundo cruel. E “Vítima”, duas canções à frente, retoma o clima sinistro, encoberto de synth, uma protagonista sadomasoquista acaricia um punhal e aceita o olhar voyeur de um homicida. Canções alegres, nem vê-las; e ninguém conseguia justificar o que levou a mestre da pop brasileira a tal desfeita, o álbum mais atípico desta discografia, pejado de new wave sombria. Mais tarde, na autobiografia, revelou que foi o início do período em que a balança entre vida pessoal, concertos e excessos, perdeu o equilíbrio.
“Pagu”
A década de noventa foi a travessia do deserto de Rita Lee, ou como a cantora contextualizava, “a fase cachaceira”. Depois de décadas entre drogas, o álcool levou a melhor da cantora, os desmaios eram uma ocorrência regular, e a queda de um segundo andar foi o definitivo grito de alerta. Contudo, o “Bowie das selvas” regenerou-se e reservou o último renascimento para o novo milénio, no álbum 3001, um regresso ao rock’n’roll, e mais um imortal hino de empoderamento feminino sui generis, na companhia de Zélia Duncan:
“Porque nem toda feiticeira é corcunda
Nem toda brasileira é bunda
Meu peito não é de silicone
Sou mais macho que muito homem”
“Reza”
Aos 65 anos, Rita Lee anunciou a reforma dos palcos e lançou o derradeiro álbum de originais: Reza. A faixa-título é uma invulgar prece, uma súplica de menos praga e mais amparo, e uma confissão apropriada que antecedeu os anos de reclusão e reflexão da cantora e compositora suprema do rock e pop brasileiro:
“Deus me proteja da sua inveja
Deus me defenda da sua macumba
Deus me salve da sua praga
Deus me ajude da sua raiva
Deus me imunize do seu veneno
Deus me poupe do seu fim”