O Rei Luís XV tem um horário apertado e bastante monótono. O seu pajem principal, La Borde (Benjamin Lavernhe), acorda-o todas as manhãs, abre as persianas e as portas. Família, médicos, maquilhadores, todos, um por um, juntam-se num ritual de Versalhes em que nunca podem virar costas ao rei — à saída, sempre de frente para Luís, o Bem Amado, numa marcha lenta até à saída. Do outro lado do vidro a assistir a todo o procedimento está Madame Barry, primeiro Jeanne Bécu e logo depois Condessa, primeiro prostituta e logo amante, culta, radical contra os costumes, que desafiou a monarquia francesa do século XVIII, anos antes do início da revolução francesa.

A cena pertence a “Jeanne Du Barry”, filme realizado e protagonizado por Maïwenn e escolhido para abrir a 76*edição do Festival de Cannes, esta terça-feira. Escolha polémica e tensa, dentro e fora do festival, que fez manchetes de jornais e atravessou conferências de imprensa nos últimos dias. À chegada à primeira passadeira vermelha, o ator norte-americano só recebeu aplausos e deixou autógrafos. Dentro do Palais des Festivals, a história foi outra: até Brie Larson, atriz norte-americana (“Room” e “Captain “Marvel) que faz parte do júri de Cannes, teve de desviar-se de uma pergunta sobre “Jeanne du Barry”, que envolvia o movimento #Metoo ou “Time’s up”.

Porquê? Porque o rei é interpretado por Johny Depp, ator que andou a trocar acusações de violência com a sua ex-companheira Amber Heard num batalha judicial digna de uma série da Netflix (onde curiosamente vai estrear o filme de Maïwenn). Entretanto, o diretor artístico de Cannes, Thierry Fermaux, decidiu fechar este assunto ao dizer aos jornalistas presentes na capital da Riviera francesa que nem sabe sequer sobre o que tratou a batalha judicial de Depp quando questionado por ter sido este o filme escolhido para abrir o festival.

[um excerto de “Jean Du Barry”:]

Retomemos. A imagem do vidro que o separa rei de Jeanne du Barry é perfeita: Maïwenn, que também  tem a sua quota de polémicas recentes, depois de ter admitido ter cuspido num famoso jornalista francês, joga noutra divisão em relação a Johny Depp que, num francês convincente, nunca consegue largar-se de um certo olhar vazio que não preenche a caricatura que está a fazer. Afinal, o rei Luís XV era conhecido por ter muitas amantes, sendo du Barry a preferida. Preenchido por desejos insaciáveis, surge aqui como símbolo de uma monarquia prestes a ruir.

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Nunca se saberá se Maïwenn, que demorou três anos a escrever o guião, quis ser co-protagonista com uma mega estrela de Hollywood caída em desgraça (será que caíu mesmo?) para benefício da própria carreira — chegou a ser premiada em Cannes pelo filme “Polissia”, mas “Jean du Barry” é já o oitavo filme na carreira e nenhum outro foi tão badalado. A verdade é que acaba por conseguir. O filme leva o espectador pela história de uma mulher que rompe a dentro pela monarquia logo desde criança. Sem ter nascido num berço de ouro, passa por conventos, acaba expulsa e transforma-se numa prostituta de luxo em Paris que chega à corte francesa. Depois, já dentro dos aposentos do rei, choca ao vestir-se como ele em cerimónias oficiais, escandaliza as filhas de Luís XV e cuida de um miúdo africano “oferecido” (sim, é literalmente oferecido) pelo monarca francês à sua amante. Tudo controverso. Não se torna rainha porque a igreja não o permite. Expulsa depois da morte do rei, acabaria morta na guilhotina durante a Revolução Francesa. Não atinge a coroa, mas belisca-a até ao limite em todo o lado.

Em quase duas horas, Johny Depp só surge, pela primeira vez, ao fim dos primeiros trinta minutos. Antes, durante e depois da sua chegada, é sempre Maïwenn que carrega o filme às costas. Talvez pelas semelhanças que confessa ter com a sua personagem. “Temos em comum o temperamento, o apetite pela vida, a curiosidade e o complexo de inferioridade”, confessou a realizadora em entrevista à Vogue. Em planos  gerais cuidados que denotam o esforço de filmar época à altura de quem já faz o género há muitos anos, a realizadora procura pintar um episódio da monarquia francesa para contar a história de uma feminista à frente do seu tempo.

Não deixa de ser curioso que o ator principal, envolvido num caso de de violência doméstica (e a quem o tribunal deu razão, recordemos), tenha voltado à elite do cinema num filme que acaba por ser uma metáfora de diminuição masculina. O espelho que divide os dois protagonistas mostra um rei desgraçado, traidor, doente e deprimido e uma amante feroz, cuidadora, alegre e independente. Johnny Depp foi a terceira escolha e existem rumores que os dois andaram às turras durante a rodagem. Tanto na passadeira vermelha como nas imagens da cerimónia de abertura de Cannes, pareciam almas gémeas.

Ainda que o humor esteja praticamente sempre presente em “Jeanne du Barry”, denotando-se o prazer de Maïwenn em olhar para a história  tentando desconstruí-la para deleite de quem nada quer com a monarquia nos dias de hoje — os décors, o guarda roupa e a cenografia assim o defendem –, muitos podem ficar reféns de um terceiro ato final. São momentos corrosivos como o exame às partes íntimas de Jeanne antes de “entrar na cama do rei”, com a protagonista a pedir, de forma inocente, ajuda a La Borde para que traduza a intrusão médica que está prestes a acontecer, que saltam mais à vista. Mas nenhum outro conflito forte, sem ser a morte de Luís XV, ajuda a empurrar o filme para um patamar que até jornalistas na sala Debussy — ou seja, os que não conseguiram entrar no Lumiérre em Cannes — vaticinaram. “Este é um filme de Óscar”, ouviu-se.

“Jean du Barry” será estreado em Portugal, ainda que a data não esteja marcada. Resta saber o que a realidade quererá com cada um dos protagonistas. Se um comeback de uma das maiores estrelas de Hollywood que, para já, conseguiu uma ovação de sete minutos em Cannes; se uma realizadora francesa que sai da Riviera para uma rota maior; se um arrastar de uma certa ideia de que os festivais da cinema são, muitas vezes, um lugar para contrariar o que se diz e escreve na praça pública e nas redes sociais. Rei morto, rei cancelado, ou um rei que nunca foi a lado nenhum?