Quem começa a subir a feira do livro de Lisboa, deixando atrás de si a estátua do Marquês de Pombal, e envereda pela rua mais à direita, onde as sombras descem ao inicio da tarde e o sol só chega já depois das 17 horas, depara-se com livros, stands pouco coloridos, dir-se-ia quase circunspectos. Não há praças, auditórios, nem mesas para autógrafos. Nos stands não se vendem sacos de pano cru, com as suas inevitáveis frases de auto-ajuda literária, penduradas em ganchos de ferro como galinhas mortas e depenadas. Sobre todos aqueles espaços a abarrotar de livros velhos cai uma amarga e doce nostalgia do tempo em que se ia à Feira do Livro com pouco dinheiro mas muito entusiasmo, comprar mais baratos livros velhos, edições com defeito, fundos de catálogo de editoras mortas, alfarrábios (palavra árabe para “livro” que nos ficou no português, embora esteja a cair em desuso) com folhas amareladas pelo tempo e aquele cheiro único da passagem das horas que misturada com o papel e tinta impregna os livros. Os pavilhões de madeira ostentam nomes que não fazem escala nos jornais, nas revistas: Letra Livre, Maldoror, Armazém 111, Livraria, Júlio Carreira, Livraria de História Ultramarina, Distribuidora Saudade, Tigre de Papel, Edições do Saguão, Livros de Bordo.

Letra Livre, livraria e alfarrabista da Calçada do Combro tem, entre outros os fundos de catálogo da &etc, Fenda e Hiena

Mas, ao contrário do que possa parecer na suas bancas encontra-se tudo: de As 50 Sombras de Gray a Dostoievsky, de livros raros de história ultramarina e colonial do ponto de vista mais conservador aos raros livros e quase esgotados como Documentário de Amilcar Cabral. De livros feitos para fazer dinheiro a obras primas da literatura pela módica quantia de 5 euros, a raridades bibliográficas que custam centenas ou livros importados, coleções que podem chegar aos milhares. É o lado B da feira do livro: o das pequenas editoras independentes, dos alfarrabistas, das livrarias especializadas, onde se encontraram preciosidades que não se encontram em mais lado nenhum como os fundos de catálogo de editoras míticas como a Hiena, a &Etc, a Civilização, a Fenda, a Cotovia, a Sá da Costa, a Bizâncio, ou livrarias como a Travessa, a Tigre de Papel e a Miosótis, que por estes dias se desdobram entre os seus estabelecimentos fixos e a feira. É também aqui que estão os stands das editoras universitárias cujos livros, para nossa infelicidade raramente aparecem nas livrarias, mas o que publicam está entre o melhor sangue que se injeta na cultura portuguesa.

Subir pela rua B da feira do livro não é apenas mais um passo no tradicional passeio pela feira. Subir, deter-se, apurar o faro, esgravatar naquelas bancas é também um gesto político: é escolher tantas vezes a literatura que não foi totalmente submetida aos critérios da eficiência, da produção de dinheiro como único fim do livro e da leitura, é escolher o livro ainda visto como uma obra de arte capaz de desassossegar, não pela girândola das novidades com o seu ciclo infernal de excitação e cansaço, de compulsão e monotonia. Esta é a feira dos verdadeiros leitores, dos que amam os livros, o papel, que sabem apreciar uma edição bem feita, bem colada, com caracteres bonitos e capaz cujo design já tem ou terá um espaço próprio nas estantes da casa, do coração ou da memória. Aqui é onde é mais provável encontrar as tais obras que, como dizia o escritor Rui Nunes, “nos ensinam a ler”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O livro de poemas, “O Sábio de Bandiagarra”, de Zetho da Cunha Gonçalves, foi o livro que o músico Bob Dylan comprou na Feira do Livro de Lisboa

Foi também a esta viela obscura e sem carnaval que veio ter, no sábado à noite, o velho judeu, senhor Robert Allen Zimmerman, mais conhecido por Bob Dylan. A história foi contada ao Observador pelo livreiro Filipe Rodrigues, que nessa noite fazia umas horas extra no stand da editora Maldoror: “a rua estava deserta, eram umas dez e meia da noite, quando vi aproximar-se um tipo com muito mau aspeto, com uma máscara sanitária na cara, um boné enfiado na cabeça e por cima dele o capuz da camisola. Com ele vinha uma mulher, mas foi ele quem primeiro se aproximou da minha banca. Começaram a falar muito baixo ele e apontaram para o livro de poesia de Zetho da Cunha Gonçalves, O Sábio de Bandiagarra. Só quando ele levantou a cabeça e eu o olhei nos olhos, aqueles olhos que eu conheço tão bem, é que tive uma intuição de quem era e perguntei-lhe: Do i know you? Ele fechou a cara e resmungou um ‘I supose you do’. Eu, que ouço e leio tudo do Bob Dylan desde sempre, fiquei um pouco nervoso, mas sabendo como ele detesta ser incomodado, não me atrevi a dizer mais nada. Entretanto, a mulher pagou o livro e quando dei conta já ele tinha desaparecido na noite. Infelizmente, no momento dessa visita inusitada, o poeta e autor daquele livro, que está sempre por aqui, tinha ido jantar e a partir de agora será conhecido como o poeta português que podia ter dado um autógrafo ao Bob Dylan e não deu, conta ainda o livreiro entre gargalhadas. Filipe Rodrigues, acredita que o músico e prémio Nobel da Literatura, se terá aproximado daquele stand devido ao nome Maldoror, que remete para o livro maldito Os Cantos de Maldoror de Isadore Ducasse, Conde de Lautréamont. Esta obra, curiosamente, também está à venda neste stand numa edição notável feita pela extinta editora Fenda, traduzida pelo poeta Pedro Tamen.

Livros manuseados, velhos, imperdíveis

Se nos detivermos no stand que atraiu Bob Dylan, o dos livros Maldoror, quer na sua casa-mãe, a livraria e alfarrabista Letra Livre, uma dos melhores de Lisboa, podemos encontrar obras esgotadas como a melhor antologia de poesia Surrealista portuguesa, organizada pelo especialista Perfecto E. Quadrado, A Única Real Tradição Viva, mas lá estão, por exemplo, Teorema de Pier Paulo Pasolini, numa edição da extinta chancela Quasi. Vasculhando um pouco mais nos livros que são remetidos para os cantos dos pavilhões, descortinamos uma gema em bruto para todos os amantes do romantismo alemão: Os Discípulos de Saïs de Novalis, uma incursão do autor pela cidade egípcia de Saïs e os seus ancestrais rituais de iniciação. Aqui também se encontram ensaios importantes para entender a cultura contemporânea, feitos por pensadores que foram bem mais longe que o popular Yuval Noah Hariri, são eles o insólito Os Não Lugares, do antropólogo francês Marc Augé, ou o famoso manifesto futurista de Marinetti, obra fundamental do Modernismo e que muito influenciou Almada Negreiros ou Fernando Pessoa.

Coleção de livros de Ficção Científica ” Argonauta”, depois de deliciar as crianças e adolescente dos anos 70 e 80, espera os leitores do século XXI

Subindo um pouco mais temos o Armazém 111, onde resistem muitos romances clássicos, da editora D. Quixote, do tempo em que esta era também uma editora independente e publicava o que de melhor se podia ler neste país. Restos destas coleções, que curiosamente não estão à venda no asséptico stand da editora, hoje pertença do grupo Leya, podem encontrar-se nos alfarrabistas como este. Também aqui, perdido entre dezenas de livros que já foram novidades mas revelaram ser apenas nulidades, está o livro de contos do autor neorealista que o Neorealismo esqueceu: Os Putos de Altino do Tojal, provavelmente o escritor que melhor escreveu sobre a infância esperançosa e desiludida das crianças de qualquer tempo. Ao lado estão também os livros da coleção Argonauta, histórias de ficção cientifica, que fizeram a delícia de muitas crianças e jovens nos anos 60 e 70 e 80 e que continuam disponíveis para serem também descobertos pelas crianças ou os adultos do século XXI. O Armazém 111 dispõe de várias dezenas de exemplares em bom estado ansiosos por serem lidos, agora que o futuro continua à espera de acontecer.

Já nas bancas da antiga Bizâncio, gostaríamos de destacar uma soberba coleção de livros de história sobre várias cidades do mundo, mas onde os factos históricos, os lugares, são apresentados como se fossem guias turísticos de uma cidade atual, visitável por qualquer turista.  O primeiro em que os nossos olhos batem é o Antigo Egito, mas há muitos outros volumes disponíveis. Um projeto editorial único e ideal para atrair os mais novos para o fascínio que há no conhecimento do nosso passado.

Continuando a subir a rua, passamos pelo alfarrabista Júlio Carreira, um habitual nos sábados na rua Anchieta, no Chiado, em Lisboa, e, segundo os entendidos, um dos alfarrabistas com a melhor relação qualidade preço. Como sugestão deixamos uma pequena obra-prima da poesia em prosa, A Casa na Duna, do poeta Carlos de Oliveira. Um pouco mais acima, as bancas da editora Saída de Emergência, especializada em literatura fantástica, podem ferir os sentidos a muitos, mas vale a pena parar ali não para descobrir os autores atuais, mas os pais e fundadores da mesma, como As Obras Completas de H.P Lovecraft, um dos mais importantes escritores de histórias de terror, que criou um género próprio e influenciou outros mestres como Stephen King ou Joyce Carol Oates.

No stand da Saída de Emergência pode-se encontrar o seu vasto catálogo de literatura fantástica e de terror

Deixando para trás o furor da praça Penguin Random House, temos um dos melhores achados desta feira: não é para todos os bolsos mas é para todos os sonhos. Chama-se Distribuidora Saudade e é a principal distribuidora de livros brasileiros em Portugal. Fora da feira e através da internet pode-se aceder ao seu catálogo de mais de 7 mil títulos, e comprar ou encomendar livros. Contudo vale a pena entrar no pavilhão apertado porque ali há muita coisa a merecer a nossa atenção, até porque muitas delas não estão  publicadas em nenhuma editora portuguesa.

Uma vez que a saúde mental tem sido um dos assuntos mais em voga das agendas noticiosas vale a pena chamar a atenção dos leitores: aqui pode encontrar as obras completas de Sigmund Freud, 20 volumes, traduzidos diretamente do alemão, mas também as obras completas de Carl J. Jung, 35 volumes, embalados numa vistosa caixa vermelha. Também aqui e só aqui, está aquele que é considerado o livro mais importante da história da psiquiatria: Memórias de um Doente dos Nervos, de Daniel Paul Schreber, um dos únicos esquizofrénico que conseguiu escrever sobre a sua doença. O livro foi analisado pelo próprio Freud e muitos outros psicólogos e psiquiatras ao longo das décadas. Apesar disso nunca teve uma edição em Portugal. Antes de sair vale a pena deixar registado que por lá estão também muitos volumes de ciências sociais e filosofia da coleção Debates, da editora Perspetiva e quatro dos livros a poeta argentina Alejandra Pizarnik ( Os Trabalhos e as Noites, A Extração da Pedra da Loucura, A árvore de Diana e O Inferno Musical).

A Distribuidora Saudade traz-nos livros editados no Brasil entre eles estão raridades absolutas como este Memórias de Um Doente dos Nervos, o único livro em que um esquizofrénico analisa a própria doença

Quem não procura novidades mas sim literatura, cultura e até transgressão não pode deixar de parar no stand da Imprensa da Universidade de Lisboa, pois esta pode ser a sua única oportunidade de ver ao vivo os seus livros que, não obstante serem de uma instituição pública, teimam em não se fazer divulgar para o grande público. Porém, parece óbvio que o público das letras gostará de saber que foi editado o livro Contra Toda a Esperança de Nadejda Mandelstam, mulher do poeta Ossip Mandelstam morto pelo regime estalinista, os Ensaios e Cartas Escolhidos, do poeta F. Hölderlin ou  O Sobrinho de Rameau, de Denis Diderot, um diálogo filosófico que influenciou, por exemplo, Thomas Bernhard e o seu O Sobrinho de Wittgenstein.

Agora se virarmos à esquerda descobrimos que a rua B se desdobra em duas e continua jardim abaixo. Vamos então ao encontro às Edições do Saguão, pequena editora Independente, que acolhe outras pequenas editoras independentes que não teriam como pagar um pavilhão próprio. Entre elas estão os belos livros da Projecto Ymago, da Dois Dias Edições, e os restos da extinta editora Cotovia. É desta última que deixamos como sugestão a todos, mas em especial aos que hoje gostam de empunhar o discurso feminista: Cassandra, figura mítica da guerra de Tróia é aqui levantada do chão e posta a falar, no momento em que é levada como escrava para a Grécia dos vencedores. A sua voz insuflada pelo enorme talento da escritora Christa Wolf, fala do que é ser uma mulher, um corpo, uma voz tornada objeto, desapossada da sua individualidade e da sua dignidade. Também editado por André Jorge e Fernanda Mira Barros, está o livro Documentário com textos de/e sobre Amilcar Cabral, líder do PAIGC, na Guiné Bissau, e que está neste momento a ser alvo de uma exposição no museu do Aljube. E, não por acaso. é também aqui que estão as obras mais recentes de Silvina Rodrigues Lopes e Maria Filomena Molder, as pensadoras mais brilhantes desta atualidade portuguesa, mais precisamente O Nascer do Mundo em Suas Passagens e 3 Conferências, respetivamente.

A feira do Livro é também o melhor momento para descobrir o universo das pequenas editoras independentes e o seu trabalho a contrapêlo dos livros como mercadoria

Na mesma rua podem encontrar-se outros livros que nos ensinam que tudo é imprevisível e só nos resta aprender a não ter medo de estarmos sós. São os livros da VS Editor, de onde destacamos Fernanda do poeta surrealista Ernesto Sampaio, uma história de morrer de amor vivida pelo escritor surrealista e a atriz Fernanda Alves. Mas também, no stand da Fundação Calouste Gulbenkian, não esquecer que se podem comprar, com significativo desconto de feira, os três volumes de Crónicas de Agustina Bessa-Luís. Ali mesmo ao lado podemos e devemos parar na editora E-Primatur que, nos últimos anos tem feito um esforço que merece o nosso reconhecimento, ao editar autores portugueses esquecidos como Mário-Henrique Leiria, Bernardo Santareno, e reabilitar a famosa coleção negra Livro B, da qual destacamos as obras de Judith Teixeira, escritora, homossexual que chocou os bons costumes portugueses durante a primeira metade do século XX.

Nós ficamos por aqui, mas o leitor, se ainda tiver fôlego para subir a rua da esquerda, ou a rua A, onde estão os conglomerados Leya e Porto Editora, a Presença tornada pusilânime editora de bestsellers e literatura do coração, pode também encontrar bons livros a 5 ou 10 euros nas bancas de saldos da Relógio D’Água. Notamos que os livros são sempre os mesmos mas um neófito pode regalar-se com boas edições de obras de Marguerite Duras, Clarice Lispector ou Georg Simmel, um ensaísta alemão do principio do século XX que escreveu ensaios visionários sobre a cultura tornada uma das industrias mais poderosas do capitalismo e seus efeitos na arte e na literatura.