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A ansiedade continua a ser a estrela de "Black Mirror"

Este artigo tem mais de 1 ano

Charlie Brooker poupou-nos na pandemia. Agora, regressa à Netflix com cinco episódios construídos a partir da melhor das ferramentas: olhar para o dia a dia e antecipar a angústia que está por vir.

Salma Hayek é uma das estrelas convocadas para a nova temporada — a sexta —, além de outros nomes como Aaron Paul ou Josh Hartnett
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Salma Hayek é uma das estrelas convocadas para a nova temporada — a sexta —, além de outros nomes como Aaron Paul ou Josh Hartnett

Salma Hayek é uma das estrelas convocadas para a nova temporada — a sexta —, além de outros nomes como Aaron Paul ou Josh Hartnett

No universo do consumo cultural surge com relativa frequência a ideia de que certa banda era boa quando tocava em pequenos clubes. A ideia passa pela manutenção das coisas “puras”, seja lá o que essa dita pureza represente. Ou seja: quanto mais gente conhece certa banda, mais ela se corrompe para agradar a uma maioria. À medida que os números dessa maioria crescem, mais a pureza se dilui. É preciso fazer cedências para agradar a muitos. Uma chatice. Charlie Brooker não é esse tipo.

Não o era quando surgiu em “Brass Eye” no início do século, quando criou “Nathan Barley” ou “Dead Set” e foi conquistando espaço na televisão britânica – e na imprensa, com a coluna que assinava no The Guardian. “Black Mirror” surge em 2011 e nestes doze anos só há um apontamento a fazer a nível de qualidade: é muito melhor quando joga em casa, ou seja, quando a coisa acontece no Reino Unido. Não que as duas primeiras temporadas sejam as melhores – não são, se for mesmo preciso escolher, que seja a terceira, a primeira na Netflix —, mas os episódios “britânicos” têm uma especificidade que tornam a mensagem mais forte, menos genérica. E a especificidade é feita de locais, referências, imaginários, um passado, uma história, uma forma de agarrar na cultura que o criador da produção melhor conhece. No fundo, “Black Mirror” é melhor quando não se centra em tecnologia, mas nas pessoas e nas suas angústias.

Lembremo-nos do primeiro episódio, “The National Anthem”: tudo acontece não num possível futuro, mas no aqui e no agora. Foi originalmente transmitido em 2011 e a nossa capacidade de nos distrairmos com o entretenimento só piorou, não melhorou. A mensagem deixada no final do episódio é hoje mais poderosa do que há doze anos. Mais aterrorizador ainda, “The Waldo Moment”, último capítulo da segunda temporada, que obriga a pensar em como a política – e a respetiva comunicação – tem vindo a tranformar-se. Ou “Hated By The Nation” e a forma como Brooker trabalha o ódio e a morte (e, desde então, o terreno para o ódio só cresceu).

[o trailer da sexta temporada de “Black Mirror”:]

A sexta temporada que chega esta quinta-feira, 15 de junho, à Netflix é a menos tecnológica de todas, a que menos faz pensar na tecnologia durante os episódios. E — adivinhou — os dois melhores episódios passam-se no Reino Unido: “Loch Henry” e “Demon 79”, o segundo e o quinto, respetivamente. Contudo, é também a temporada que mais olha para si mesma — isto é, para o entretenimento, para a cultura que virou conteúdo e que enche as plataformas de streaming.

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A quinta temporada (2019) estava cheia dela própria. Tem um ótimo episódio não-tecnológico, “Smithereens”, e um cuja ficção parece estar demasiado próxima da realidade, “Rachel, Jack and Ashley Too”, graças aos avanços da Inteligência Artificial. Esse conjunto de episódios parecia ignorar a importância e a relevância de “Black Mirror”, ou seja, fazia render o sucesso, ignorando a influência no entretenimento daquela década. Houve um período em que várias séries tiveram o seu episódio “Black Mirror”, como “Orville” (““Majority Rule”) ou até “Ficheiros Secretos”, que preenchia a nossa necessidade de ansiedade pelo futuro nos 1990s, num inexplicável e brilhante episódio fora do baralho no seu último suspiro (“Rm9sbG93ZXJz”).

A sexta e nova temporada volta à terra. Brooker decidiu – e bem – não nos dar nenhum “Black Mirror” na pandemia e, certamente, passou muito tempo na pandemia a pensar para onde isto poderia ir. Melhor, a consumir conteúdo para se inspirar. E é nesses momentos que Brooker mais acerta no alvo, quando olha para o que todos vemos, reflete sobre isso e mostra-nos para onde estamos a ir.

“Joan Is Awful” abre a temporada e é o mais tecnológico dos episódios, com Brooker a apresentar um futuro bem real para o streaming. Joan (Annie Murphy) é uma tipa banalíssima que, no final de um dia, senta-se com o noivo para ver televisão e descobre que na Streamberry (a Netflix lá do sítio) há uma nova série com Salma Hayek chamado “Joan Is Awful”. A Joan da série é parecidíssima com a Joan real, que descobre que a série é sobre ela, sobre os colegas, os patrões, os ex-namorados, o mundo inteiro. De repente, na televisão, há uma série sobre nós (e pensamos logo noutro episódio brilhante, “The Entire History of You”). Não vale a pena dissecar o episódio para não estragar, mas envolve um computador quântico, inteligência artificial e a tendência dos humanos para a autodestruição: neste caso, do entretenimento. Um dia deixaremos de ser a personagem principal das nossas vidas.

Mais do mesmo? Inevitavelmente. Charlie Brooker reconhece que não há muito mais para onde ir e, por isso, conta as mesmas histórias de forma diferente

“Loch Henry” explora o fascínio pelos documentários de true crime. É aquela típica crítica ácida de Brooker sobre os hábitos de consumo, mas seguindo o fascínio com o cinema de terror britânico dos 1970s e a paixão pelos segredos dos locais recônditos do Reino Unido. O encantos pelos setentas repete-se em “Demon 79”, o momento exagerado da temporada, “Black Mirror” no seu melhor. Uma história que envolve demónios e uma rapariga pacata (Anjana Vasan) que sente o mundo a mudar contra ela própria. O momento mais moral desta temporada, onde se joga com a ideia de praticar o bem vs. mal: para salvar o mundo, a protagonista tem de matar três pessoas em três dias.

Começa como algo pragmático – matar para salvar – mas, à medida que vai avançando, cresce a ideia de que pode ser bom parar (matar) o mal a tempo. É um episódio que surge com a chancela Red Mirror (muitas interpretações aqui) e é o momento mais Adam Curtis da carreira de Brooker. Sobram dois episódios, o quarto, “Mazey Day”, o mais curto e pastilha elástica do grupo (há sempre um assim, nas temporadas da Netflix), sobre paparazzi e uma atriz que procura a cura para um problema. E “Beyond The Sea”, o blockbuster, com Aaron Paul, Josh Hartnett, Kate Mara e até um Culkin (Rory, o mais novo do clã).

É o episódio mais longo, oitenta minutos, com uma nobre qualidade: não tenta ser um filme, é mesmo televisão. Ou se quisermos colocar as coisas noutros modos, seria um ótimo conto de ficção científica, nunca daria um bom romance. Essa consciência torna “Beyond The Sea” num momento televisivo particularmente especial, que nunca nos prepara para o final (é bom saber que “Black Mirror” ainda consegue surpreender). Aaron Paul e Josh Hartnett interpretam dois astronautas numa versão alternativa de 1969 que se veem metidos numa situação que os ultrapassa e que têm de resolver com os (escassos) meios ao dispor. Tudo acontece numa situação muito fechada em si mesma, com poucos elementos desviantes e uma cadência que confere importância a cada cena.

Mais do mesmo? Inevitavelmente. Charlie Brooker reconhece que não há muito mais para onde ir e, por isso, conta as mesmas histórias de forma diferente. “Black Mirror” ainda nos deixa ansiosos com o futuro e isso é bom. Nestes novos episódios dedica-se ao puro prazer de contar histórias, sem ter uma agenda (um problema que pesou na quinta). E dá ao mundo “Demon 79”, um “e se” macabro, violento e reflexo de tempos preocupantes e desesperantes. Voltando ao exemplo das bandas, seria impossível escrever hoje um “The National Anthem”, mas não há quem escreva hoje algo tão oportuno e “don’t give a fuck” como “Demon 79” como Charlie Brooker.

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