Preciso de fazer uma confissão no arranque deste texto. Dita o profissionalismo que eu não deixe uma ignorância minha intrometer-se nessa função tão essencial à condição humana que é a crítica de séries. Por isso, aqui vai: o único vinho que eu compro é aquele de pacote, passível de ser confundido com uma embalagem de leite meio gordo. Calma, não o bebo, só o uso para cozinhar. Não sou, como se percebe, uma apreciadora encartada de vinho. Não cedi nem durante os confinamentos da pandemia, quando os ecopontos do vidrão pareciam a linha verde do Metro em hora de ponta só com metade das carruagens. E isso causa alguma areia na engrenagem quando se está a ver uma série na qual a coisa mais importante da vida é a mais valiosa adega privada de néctares do mundo, como se passa com “Gotas Divinas”, a produção dramática franco-japonesa da Hulu Japan que se estreia em todo o mundo através da Apple TV+.
Se é daqueles que funciona melhor com uma comparação, é fácil chegar a ela: “Gotas Divinas” é um cruzamento entre um “Succession” dos vinhos e um “Gâmbito de Dama” engarrafado. Um pai rico incapaz de demonstrar afeto à sua filha? Temos. Disputas de poder com palavreado técnico a roçar o hermético? Também. A ideia de passagem de testemunho e das fissuras da vida familiar? Temos e temos. Mas não espere encontrar nestes oito episódios a graça e o sarcasmo que pautavam a saga dos Roy. Se é possível apontar um defeito óbvio na série de Quoc Dang Tran é que se leva muito, muito a sério. O resultado não é nunca divertido, mas tem outros méritos. “Gotas Divinas é meticuloso, cinematográfico, sofisticado e refinado. Como uma boa garrafa de (inserir aqui um vinho muito apurado e caro, que eu calculo que não seja Casal da Eira).
[o trailer de “Gotas Divinas”:]
Mas vamos à sinopse. O francês Alexandre Léger (Stanley Weber), criador do reputado Léger Wine Guide e figura de proa da enologia, morre aos 60 anos na cidade de Tóquio. Para trás deixa uma filha, Camille (Fleur Geffrier), que vive em Paris e não vê o pai desde os nove anos, quando este se separou da sua mãe. Ao voar para o Japão para o funeral e a leitura do testamento, descobre que o pai lhe deixou uma casa de 7 milhões de dólares e a mais reputada coleção privada de vinhos do mundo. Porém, para ter acesso à herança, Camille tem de competir com um enólogo brilhante, Issei Tomine (Tomohisa Yamashita), um protegido do seu pai a quem este chamava de “filho espiritual” e que colocou de lado um futuro brilhante no negócio de família para abraçar o mundo dos vinhos. A competição tem três rondas, cada uma delas referente a uma garrafa. Mas Camille, treinada pelo pai na infância, não bebe álcool e chega mesmo a sangrar abundantemente do nariz perante qualquer contacto etílico. Só que esta competição representa uma nova tentativa de se ligar e de perdoar o pai que a abandonou, pelo que sente que não a pode negar.
Não vou escamotear o óbvio — muito do encanto de “Gotas Divinas” vem desta fusão entre o drama francês e o ritualismo japonês. Na mão de realizadores, guionistas e atores americanos, a série seria provavelmente mais engajadora (os oito episódios compõem aquilo a que se chama de “slow burner”, sendo muito gradual no seu avanço narrativo), mas também mais óbvia nos seus clichês. A premissa não é soberba, mas resulta num produto de requinte dado o seu contexto cultural.
Originalmente, “Gotas Divinas” foi uma saga de manga em 44 volumes, da lavra de Tadashi Agi, o pseudónimo da dupla de irmã e irmão Yuko e Shin Kibayashi — também eles acérrimos conhecedores de vinhos, o que resulta numa atenção ao detalhe e à veracidade que tem deixado a comunidade enóloga a bater palminhas. Nos livros, ambos os protagonistas rivais são homens — mas, felizmente, a opção por transformar um deles numa mulher não incorreu na tendência batida de criar aqui uma tensão romântica ou sexual. Esta não foi a primeira experiência de adaptação a série: existiu uma tentativa coreana em 2008 que não chegou a avançar e uma japonesa que se estreou em 2009 com resultados modestos. Esta foi, isso sim, a primeira tentativa de tornar esta saga multilínguas e multiculturas.
“Gotas Divinas” não tem problemas em demorar-se nos detalhes, sem pressa para nos dar logo toda a informação, sobretudo quando a narrativa entra pelos caminhos do mistério e do thriller. O resultado é uma série com inegável qualidade, mas talvez um pouco gélida, contida e cerebral. Os diálogos não têm muito subtexto, mas claro que, como sempre acontece, não é mesmo uma série (só) sobre vinho — é sobre família, aceitação e trauma. Menos sobre as ressacas do álcool, mais sobre as ressacas da vida.