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Medicina, inteligência artificial e o fator humano

Este artigo tem mais de 1 ano

Foi sob o mote da Educação que começou o segundo dia de trabalhos das Conferências do Estoril — mas foi o acesso à Saúde, em contextos sociais e geográficos diferentes, que dominou a manhã de sábado.

Aaron Ciechanover perguntou: podemos viver mais de 100 anos?
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Aaron Ciechanover perguntou: podemos viver mais de 100 anos?

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Aaron Ciechanover perguntou: podemos viver mais de 100 anos?

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Estará a imortalidade ao alcance da espécie humana? Ou, pelo menos, uma esperança média de vida que ultrapasse a centena de anos? O israelita Aaron Ciechanover, Prémio Nobel da Química em 2004, colocou essas hipóteses na sessão da manhã deste sábado, o segundo dia das Conferências do Estoril, na Nova SBE, em Carcavelos. Para sustentar estas hipóteses, o cientista e professor baseou-se na própria História da Medicina: “Há 120 anos não havia antibióticos, TACs, cirurgias sofisticadas, não se faziam transplantes, muitas mulheres morriam de parto. A esperança média de vida não ultrapassava os 50 anos. Hoje, no Ocidente, ela chega aos 80 anos”.

Para o cientista, a medicina do século XXI terá de avançar agora no sentido do cuidado e do tratamento à medida: “Não há duas pessoas geneticamente iguais, por isso, não há duas doenças iguais. Se as doenças são personalizadas,  a Medicina terá de acompanhar essa tendência. Estamos a construir um atlas de genomas humano, o que pode ser uma ferramenta importante”. No entanto, adverte ainda Ciechanover, “as questões éticas são muitas e todo o cuidado é pouco com os hackers de genoma”.

Os trabalhos tinham começado com uma intervenção do ministro da Educação, João Costa, que relacionou a importância da educação com um futuro melhor: “Não pode haver pessimistas a trabalhar na educação. Educação é ter esperança”. Enumerou os diversos desafios da educação no futuro e as preocupações dos jovens de hoje, entre elas, as ameaças à paz, os conflitos e populismos emergentes e a sustentabilidade. “Há poucas coisas que, como governos, podemos forçar as pessoas a fazer. Mas nós forçamos os jovens a ir à escola e, por isso, temos responsabilidade sobre o que estamos a oferecer. Ter uma educação apenas baseada em conhecimento não é suficiente“. E acrescentou: “As escolas não podem fazer tudo, mas temos de considerar que há crianças que só fazem refeições completas na escola, só têm livros na biblioteca da escola e só têm o amor dos pais e dos colegas. Por outro lado, não queremos criar guetos nas nossas escolas para os alunos, cada vez em maior número, que não falam português e têm outras culturas”.

Aaron Ciechanover, premiado com o Nobel da Química em 2004

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

“Não se deixem cegar pelos números”

O painel da Saúde começou com uma mensagem em vídeo do diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, que se referiu ao uso das novas tecnologias pelo organismo internacional que dirige, uso que, sublinhou, nunca perde de vista a necessidade de não aumentar as desigualdades entre pessoas e entre regiões do mundo.

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Outro dos pontos altos da manhã foi a intervenção do estatístico norueguês Jo Roislien, que, um dia, sonhou ser estrela pop, intitulada “Don’t get blinded by numbers“: “O problema com os números na Medicina é que eles são apenas um meio para perceber o que se passa. Nas Ciências Naturais sabemos o que representa um número. Nas Ciências Sociais e nas Ciências Médicas, não podemos perder de vista os seres humanos”.

Em conversa com o Observador, Jo Roislien referiu o trabalho que faz na formação matemática de pessoal de enfermagem: “Para os enfermeiros, o mais importante é cuidar de alguém, mas também precisam de saber lidar com a informação que os números transmitem. Precisam de saber, mesmo que seja para rejeitar essa informação”. A falta de literacia matemática é um facto com que Jo está habituado a lidar nas sociedades ocidentais: “Ensinamos uma criança a ler e a interpretar um texto, mas ninguém os ensina a interpretar os números. E, no entanto, as crianças sabem que se eu tenho quatro doces e elas três, é uma injustiça”. E acrescenta: “Mas a matemática não chega. Eu continuo a pedir conselhos à minha mãe e aos meus amigos mesmo que tenha um doutoramento nesta disciplina”.

Jo Roislien não é um entusiasta da Inteligência Artificial: “Não acredito que o algoritmo nos consiga ajudar a encontrar o amor da nossa vida ou que produza uma canção capaz de nos comover”.

Jo Røislien falou a meio da manhã sobre o tema "Cego pelos Números".

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

No painel seguinte, Fola Davi, médico e artista, tomou o palco  para pintar, num quadro de ardósia, o rosto de uma criança que conheceu numa aldeia remota da Nigéria onde as chuvas são tão intensas quanto as secas. Fernando Bozza, médico de clinica geral e cientista no Brasil,  juntou-se a Fola David para discutir o humanismo e o acesso à saúde nos países mais pobres. Bozza começou por explicar que, quando a pandemia de Covid-19 surgiu, começou  a reparar que quando as pessoas chegavam ao hospital já estavam num estado tal em que já não havia como salvá-los, vinham para morrer. “Percebi que tinha de ir à procura deles na rua. Dar-lhes acesso aos diagnósticos, explicar a importância dos exames regulares, mas também o que se estava a passar naquele momento no país, pois tínhamos o próprio governo como principal produtor de desinformação”.

Fola David partilha uma experiência semelhante, na Nigéria, tendo vindo a dedicar a sua ação aos cuidados primários. “As comunidades com que trabalho estão muito longe da inteligência artificial, eles nem telemóveis têm. Os hospitais estão a quilómetros de distância, há comunidades onde o médico só aparece a cada três meses. Então, tentámos melhorar isso através da recolha de doações de medicamentos”.

O painel seguinte começou com uma introdução mais humana, por parte de Nelly Enwerem-Bromsom , que revelou estar nervosa, mas isso não a impediu de dar algumas das ideias mais relevantes da manhã. A ela juntou-se Eldar Shafir, professor de psicologia na universidade de Princeton.  Ambos discutiram o que precisamos de conseguir ainda para um desenvolvimento sustentável num contexto de escassez e de pobreza.

Nelly Enwerem-Bromsom à esquerda e Eldar Shafir à direita.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Nelly Enwerem-Bromsom começou por recordar o que já fora dito noutros painéis, para o relacionar com a forma como a ONU atua: “Temos de olhar para além dos indicadores económicos e de sucesso. As boas intenções não são suficientes para desenhar programas. Eu própria pensava que caía de pára-quedas num país, falava com meia dúzia de pessoas e sabia o que toda a gente lá precisava. Mas não tardou a concluir que desenhar programas e fazer relatórios é pouco. É preciso confiar que as pessoas tomam boas decisões se lhes derem os recursos diretamente, especialmente as mulheres.

Eldar Sharif passou os últimos anos a entender a mentalidade das pessoas que vivem em carência. “O contexto interessa e o contexto de pobreza é extremamente difícil. No final do dia, se se é pobre é difícil pensar noutra coisa para além disso.”

Este artigo faz parte de uma série sobre as Conferências do Estoril, evento de que o Observador é media partner. Resulta de uma parceria com a Nova Medical School, Nova School of Business and Economics e a Câmara Municipal de Cascais. É um conteúdo editorial independente.

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