Foi uma das grandes novidades anunciada por António Costa para a plateia de socialistas em Évora, na noite desta quarta-feira: o Governo não vai acabar com as propinas — como se apressaram a anunciar na rede social X (ex-Twitter) alguns deputados do PS —, mas sim propor, no âmbito do Orçamento do Estado para 2024, que as propinas pagas no ensino superior público (exclui-se o privado) sejam devolvidas quando os estudantes começarem a trabalhar, e apenas se ficarem em Portugal.

O Executivo recusa avançar com estimativas de impacto financeiro da medida, com o número de abrangidos e com mais detalhes (remete para o OE 2024). Mas, segundo os dados da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC) para o ano letivo 2021/2022, compilados pela Fundação José Neves, e os cálculos do Observador, poderia chegar a mais de 60 mil recém-diplomados no espaço de um ano e custar mais de 60 milhões de euros. A estimativa é, porém, feita muito por alto: é que o Ministério do Ensino Superior não revela quantos recém-licenciados ou mestres emigraram no último ano.

Emigrar será, segundo o primeiro-ministro, um critério de exclusão para poder receber as propinas de volta (até porque o objetivo é fixar os jovens no país). As propinas serão devolvidas a quem ficar em Portugal e pelo período da licenciatura ou do mestrado (três ou quatro anos, dependendo do curso). Cada ano de propina paga é um ano de propina devolvida“, resumiu António Costa.

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O benefício chegará também a quem é abrangido pela Ação Social Escolar, que recebe uma bolsa que cobre o valor da propina. Neste caso, não será devolvida a propina paga, mas antes dado um prémio remuneratório para reforçar “o esforço que cada um fez na sua qualificação”, disse Costa. Atualmente, o limite máximo das propinas está fixado em 697 euros por ano: seriam, portanto, devolvidos, no máximo, nos vários anos 2.091 euros ou 2.788 euros (consoante a duração do curso e se o valor da propina se mantiver nesse patamar durante esse período).

A medida vai, também, abranger estudantes que finalizem o mestrado, mas como o custo que têm é maior, a devolução também será superior. Uma vez que há mestrados com valores muitos díspares, António Costa fixou o valor de 1.500 euros por cada ano de mestrado. Horas depois do anúncio, alguns deputados do PS acorreram à rede social X (ex-Twitter) a anunciar “o fim das propinas” — foi o caso de Miguel Costa Matos e Carlos Pereira.

No caso de Miguel Costa Matos, a rede social já sinalizou que a afirmação do deputado levou vários leitores a pedir para acrescentar contexto: “As propinas não acabaram — no pacote apresentado, o pagamento de propinas continua em vigor, sendo apenas aplicada uma devolução por cada ano de trabalho. A medida só tem em conta ex-estudantes empregados, e a segregação adjacente ao pagamento de propinas continua assente”, refere a nota de “contexto” adicionada por utilizadores.

E, de facto, as propinas não acabam. Miguel Herdade, diretor associado no Ambition Institute, no Reino Unido, e especialista que se tem dedicado ao tema da desigualdade no acesso à educação, sublinha isso mesmo: a proposta do Governo mantém uma “barreira” à entrada na universidade. Mas as propinas não são a “barreira” que mais afasta os jovens dos estudos superiores. Em alternativa, o especialista preferia ver medidas que enderecem entraves que considera maiores, como os custos da habitação.

Quanto custa a medida?

É a pergunta para um milhão de euros. O Observador questionou o Ministério do Ensino Superior sobre quanto custaria a devolução das propinas no próximo ano, mas fonte oficial não especificou. “Sobre a matéria anunciada pelo secretário geral do PS, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior não tem nada a acrescentar. Quando existirem mais detalhes comunicá-los-emos“, afirmou apenas. O Observador questionou, também, o gabinete do primeiro-ministro, mas fonte oficial remeteu para a proposta de Orçamento do Estado para 2024, que só será entregue no Parlamento a 10 de outubro.

Sem valores públicos, pode-se apenas fazer contas (muito) por alto, com base no número de estudantes graduados no último ano. O Observador pediu dados ao Ministério do Ensino Superior sobre o número de estudantes que terminaram licenciatura ou mestrado, bem como o número de licenciados e mestres que ficaram em Portugal no ano (ou anos seguintes) à conclusão do curso, mas ainda aguarda resposta.

Já a Fundação José Neves, que tem acompanhado e estudado a temática da empregabilidade e das qualificações dos jovens, compilou, ao Observador, dados da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC), segundo os quais, no ano letivo 2021/2022, 62.185 pessoas finalizaram uma licenciatura (38.335) ou mestrado (23.850, incluindo mestrado integrado) no ensino público.

Tendo em conta estes dados, é possível calcular uma aproximação de quanto custaria a medida se aplicada para quem se graduou em 2022 e assumindo, irrealisticamente, que ninguém sairia do país (António Costa sublinhou que a devolução apenas chegaria a quem ficasse em Portugal): com os licenciados gastaria, em conjunto, 26,7 milhões de euros num ano e com os mestres 35,7 milhões de euros (valores que se somaria nos dois anos seguintes aos novos licenciados). Ou seja: 62,4 milhões de euros num ano.

Há, ainda, porém, muitas dúvidas por responder: desde logo, como será feita a devolução, se a devolução será também feita se o estudante estiver desempregado, ou se o aluno, por algum motivo, tiver de prolongar a frequência do curso por mais do que três ou quatro anos.

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Em janeiro de 2019, na Convenção Nacional do Ensino Superior, três dos então governantes de Costa defenderam a eliminação, ou redução, das propinas: Manuel Heitor (então ministro do Ensino Superior), Pedro Nuno Santos (na altura, secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares) e Alexandra Leitão (então secretária de Estado da Educação). Os três já saíram do elenco governativo. Manuel Heitor e Alexandra Leitão viriam mesmo a assinar um manifesto pelo fim gradual das propinas, já este ano.

O próprio Presidente da República também endereçou o assunto, na mesma altura de 2019, considerando que a eliminação das propinas, numa perspetiva de médio prazo, seria um exemplo de “passos decisivos”. “Eu disse que era um passo muito importante no domínio do financiamento do ensino superior”, afirmou, então, citado pela Lusa. “Porque isso significa dar um passo para terminar o que é um drama, que é o número elevadíssimo de alunos que terminam o ensino secundário e não têm dinheiro para o ensino superior, porque as famílias não têm condições, portanto, têm de trabalhar, não podem permitir-se aceder ao ensino superior.”

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Em Portugal, o valor das propinas tem ficado congelado nos últimos anos. No ano letivo de 2018/2019, as propinas variavam de 657 a 1.063 euros, passando, no ano letivo 2020/2021, a um intervalo entre 495 até 697 euros por ano e a partir daí manteve-se inalterado o valor. Segundo a rede de informação Eurydice, no ano letivo de 2019/2020, 21,8% dos estudantes de licenciatura e 16% de mestrado recebiam bolsas por terem baixos rendimentos. Em Espanha, por exemplo, no ano letivo 2018/2019, eram 30,6% e 17,1%, respetivamente.

De acordo com o relatório “National Student Fee and Support Systems in European Higher Education” referente ao ano letivo de 2020/2021, da rede Eurydice da Comissão Europeia, Portugal aparece no grupo de 12 países europeus em que os alunos de licenciatura têm de pagar propina (na prática, no caso português, há bolsas de ação social para os mais carenciados conseguirem arcar com esse encargo). Já em sete países os estudantes a tempo inteiro estavam isentos, como é o caso da Dinamarca, Grécia, Chipre, Malta, Finlândia, Suécia e Turquia. Nos restantes, há isenções parciais.

Lá fora, de facto, há realidades muito distintas. Por exemplo, a rede Eurydice revela que Espanha faz parte do grupo de países em que há estudantes isentos do pagamento das propinas e que o valor depende da comunidade autónoma. No país, há isenções e reduções dependendo dos resultados académicos e das condições socio-económicas dos alunos: os estudantes que tenham terminado os estudos com distinção têm direito a isenção de propinas no primeiro ano do nível de estudos seguinte e o mesmo aplica-se aos estudantes do ensino secundário que ingressam em licenciaturas; já os estudantes com dificuldades socio-económicas, por sua vez, podem candidatar-se a uma bolsa do Ministério da Educação, que inclui a isenção de propinas para os estudantes com rendimentos mais baixos.

“Acho muito difícil que estes incentivos consigam competir com os ordenados no estrangeiro”, diz especialista

Depois de conhecida a medida, várias federações e associações de estudantes vieram a público defender que, embora positiva, não é suficiente. “Não vai colmatar as dificuldades de um estudante no ensino superior”, disse Catarina Ruivo, presidente da Federação Académica de Lisboa, citada pela Lusa.

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Em declarações ao Observador, o especialista em educação Miguel Herdade diz ter muitas dúvidas de que a medida vá ter os impactos desejados na fixação de jovens após os estudos. “Acho muito difícil que estes incentivos todos, somados, consigam sequer pensar em competir com ordenados como os que se praticam noutros países. É uma dificuldade que o país tem. Ninguém deixa de emigrar por causa de 697 euros por ano“, afirma.

Para o especialista, há um problema de fundo que a medida não resolve: o da desigualdade no acesso à educação. “Portugal tem um sistema de ensino muito desigual, em que a quantidade de dinheiro que os pais ganham e a sua escolaridade quase que ditam a capacidade de o aluno ter melhores ou piores notas na escola”, refere. Logo, as probabilidades de ir para a faculdade são menores. “A percentagem de alunos nascida em família pobres e com pais pouco escolarizados que entra para a universidade é de apenas 10%. Enquanto que a média de alunos que entra para a universidade todos os anos é de 50%”, acrescenta.

Em Portugal, os alunos mais carenciados podem receber bolsas que lhes permitam cobrir os custos com as propinas. Pelo que Miguel Herdade vê outros entraves mais significativos: os custos de habitação e de transportes (quanto a este último, o Governo propõe um passe gratuito sub-23), bem como “o custo de oportunidade de não começar a trabalhar mais cedo”.

Por isso, em vez da devolução do valor das propinas, Miguel Herdade preferia ver um mecanismo mais “robusto de financiamento destes jovens pelo Estado”, seja através de “bolsas mais generosas”, seja de mecanismos de empréstimos com garantias públicas, como acontece em países como Inglaterra ou a Austrália. Em Inglaterra, onde o especialista mora e trabalha, o modelo é o “oposto” àquele que António Costa propõe: os estudantes não pagam propinas enquanto frequentam o curso, só depois, quando começam a trabalhar e apenas desde que ganhem acima de um determinado patamar.

Se ao fim de 30 anos, o ex-estudante não tiver conseguido pagar o empréstimo, o Estado assume o custo. Segundo Miguel Herdade, a medida levou a um aumento considerável (na ordem dos 70% desde 2006, quantifica) do número de estudantes com menos capacidade financeira a entrar na universidade. Ainda assim, admite que em Portugal a opção seria questionável — pelo elevado endividamento que as famílias já têm e pelo “peso” que a amortização do empréstimo ao Estado teria no bolso do trabalhador.

Para Miguel Herdade a certeza é de que queria ter visto uma análise custo-benefício da medida anunciada por António Costa. “Tenho sérias dúvidas que seja capaz de manter em Portugal qualquer jovem que pense em ir-se embora. Não é só a diferença salarial que é muito grande para os outros países — é uma competição difícil de fazer. Mas as perspetivas de vida e de ambição profissional ditam a saída de jovens”, conclui.