A região de Lisboa e Vale do Tejo continua a não conseguir atrair jovens médicos de família, mostram os resultados do concurso para a colocação dos chamados médicos de família, enviados ao Observador pela Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo ARS-LVT. E nos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACeS) que já estavam numa situação de carência essa tendência é ainda mais visível, com várias unidades arrastadas para uma espécie de círculo vicioso, em que a falta crónica de médicos torna difícil a colocação de novos profissionais. A situação mais preocupante verifica-se na zona a norte da capital, onde há centros de saúde com taxas de ocupação de vagas para recém-especialistas abaixo dos 10%. Pior: os poucos médicos que entraram nestes ACeS não chegam para compensar as saídas que ocorreram este ano, agravando, assim, o défice e dificultando o acesso das populações aos cuidados de saúde.
Em Maio, a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), o ‘braço’ do Ministério da Saúde que gere os concursos, abriu um procedimento concursal (o primeiro deste ano) para colocar especialistas em Medicina Geral e Familiar, vulgarmente designados como médicos de família. Sem surpresa, os resultados desse concurso mostram agora uma grande diferença entre a região Norte (com uma taxa de ocupação das vagas quase total) e as restantes regiões do país. Na região de Lisboa, apenas 19% dos lugares foram ocupados (112 das 582 vagas). No Alentejo e no Algarve, os resultados foram ainda piores: apenas 16% das vagas foram preenchidas.
Reportagem. Porque é que nuns locais todos têm médico de família e noutros não?
No entanto, dentro da região de Lisboa e Vale do Tejo (que abarca os distritos de Lisboa e Setúbal, e parte dos distritos de Santarém e Leiria), há realidades distintas — alguns ACeS registaram taxas de colocação bem acima da média regional, enquanto outros continuam a marcar passo e não conseguem, concurso após concurso, preencher as dezenas de lugares em falta.
Zonas a norte da cidade de Lisboa continuam a ter as piores taxas de colocação e cobertura da população
Os dados da ARS-LVT deixam claro que os centros de saúde dos agrupamentos a norte da cidade de Lisboa foram os que apresentarem menores taxas de colocação. Dos sete ACeS que ficaram abaixo da média regional — de 19% — cinco situam-se nessa zona. O ACeS da Lezíria (que abrange 10 concelhos do distrito de Santarém) teve a pior performance: não conseguiu atrair nenhum médico para as 26 vagas em aberto. No ACeS do Estuário do Tejo (que junta vários concelhos, entre os quais Vila Franca de Xira e Alenquer), foram preenchidas apenas 5% das vagas. Este agrupamento tinha o maior número de lugares em aberto de toda a região (60), devido ao elevado défice de médicos de família (45% da população não tem clínico atribuído), mas só entraram três médicos vindos do concurso concluído em maio. Já no ACeS do Médio Tejo (que abrange 11 concelhos do norte do distrito de Santarém), foram ocupados 8% dos lugares (3 em 37).
O quarto ACeS com menor taxa de colocação foi o do Oeste Sul (que junta concelhos do distrito de Lisboa como Torres Vedras e Mafra), onde 10% das vagas foram ocupadas (5 em 55). Este é o segundo agrupamento com menor taxa de cobertura na zona de Lisboa e Vale do Tejo, com 38% da população sem médico atribuído. No ACeS do Oeste Norte (que abarca vários concelhos do sul do distrito de Leiria), os resultados do concurso não foram melhores: 12,5% das vagas ocupadas (4 em 32). Já o ACeS do Arco Ribeirinho, na margem sul do Tejo, conseguiu preencher apenas 15% das 55 vagas abertas. Isto é, durante o verão, entraram oito médicos. Já o ACeS de Sintra, onde foram abertas 51 vagas, teve a mesma percentagem de clínicos colocados: 16%.
Défice tem vindo a agravar-se em vários agrupamentos
Ainda que estes agrupamentos tenham conseguido atrair alguns médicos, estes não são suficientes, em muitos casos, para compensar as saídas registadas desde o início do ano, o que agrava o défice de clínicos colocados nos centros de saúde. Vejamos três exemplos: no ACeS do Estuário do Tejo, o pior do país em termos de cobertura, entraram três médicos. Mas, desde o início do ano, já saíram deste agrupamento 17 médicos (dos quais 12 que se aposentarem e dois que denunciaram os contratos, ou seja, rescindiram o vínculo com as suas unidades). No ACeS do Arco Ribeirinho, que abrange alguns dos concelhos imediatamente a sul do estuário do rio Tejo, registaram-se oito entradas. O problema é que, em 2023, já saíram 11 médicos (nove reformaram-se, dois rescindiram os contratos). Mais a norte, no ACeS do Oeste Sul, o défice, até ao momento, situa-se em oito médicos. Isto é, mesmo com as cinco entradas registadas no verão, a capacidade de resposta é agora menor do que no início do ano — isto porque, entretanto, saíram do agrupamento 13 médicos (6 por aposentação, cinco por rescisão de contrato).
Esta realidade não surpreende o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar. “É este saldo negativo entre as entradas e as saídas de médicos que leva ao aumento constante do número de utentes do SNS sem médico de família atribuído”, diz, ao Observador, Nuno Jacinto. O responsável explica que um dos fatores que explica as saídas de profissionais são as aposentações, que, entre 2022 e 2024, atingem o pico. Algo que, sublinha, “a tutela já sabia que iria acontecer”. No entanto, “outros médicos saem porque estão descontentes, seja os que acabam a especialidade e decidem não continuar no SNS ou os que, estando há vários anos no SNS, decidem dar outro rumo à sua vida”.
Em suma, os agrupamentos que estavam numa situação mais crítica em termos de utentes sem médico atribuído foram também aqueles que revelaram menor capacidade para atrair profissionais recém-especialistas. “Este é um ciclo que se vai perpetuando. Quanto maior carência de médicos tem um agrupamento, mais penoso se torna trabalhar lá, o que agrava a carência”, explica o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar. Nuno Jacinto sublinha que quanto mais incompletas são as equipas médicas que trabalham nos ACeS menor capacidade esse agrupamento vai ter para formar especialistas, o que diminui o número de médicos que acabam por ficar nestes agrupamentos. “Sabemos que muitos dos médicos recém-especialistas querem ficar colocados no local onde fizeram a sua formação. Ora, se não houve formação nesses locais, ou se se formarem poucos médicos, a dificuldade de atrair profissionais de fora é maior”, refere o médico, acrescentando que, “nos concursos seguintes, esses centros de saúde vão ser ainda menos atrativos”.
Custo de vida afasta profissionais de Lisboa. “Nada é feito”, lamentam médicos de família
No entanto, mesmo nos restantes ACeS, que ficaram acima da taxa média de colocação da região (19%), a dificuldade na atração de profissionais é evidente. Dos 15 agrupamentos da região de Lisboa e Vale do Tejo, só um teve mais de um terço das vagas ocupadas (foi o de Lisboa Ocidental e Oeiras, onde apenas sete dos 27 lugares ficaram desertos — taxa de colocação de 74%).
“Lisboa e Vale do Tejo tem uma dificuldade crónica de atrair médicos de família, que se tem agravado ao longo dos anos”, reforça Nuno Jacinto. Para o responsável, este cenário é causada por vários fatores, entre os quais um menor número de USF modelo B nesta região (um tipo de centro de saúde que oferece aos médicos melhores condições de trabalho e uma remuneração 30 a 40% superior e que tem maior predominância nas regiões Norte e Centro). Outra explicação é o custo de vida, que “é elevadíssimo”, nomeadamente no que diz respeito à habitação e às creches, dois “fatores decisivos, para os médicos que se queiram mudar de outra região para Lisboa e que tenham de levar a família consigo”.
Nuno Jacinto lamenta que “nada esteja a ser feito para corrigir a situação”. Para a associação que representa os médicos de família, uma das medidas que poderiam ser tomadas é a oferta de casas de função para médicos que venham de fora de Lisboa (algo que está a ser oferecido aos médicos cubanos e brasileiros, realça o responsável).