“Começou por saltar diretamente para uma posição de apoio na barra alta, depois afastou-se dela, para executar uma cambalhota frontal, e voltou a agarrar-se à mesma. A sua coreografia foi marcada por momentos de equilíbrio requintado, com a execução de pausas de mão e as suas conhecidas cambalhotas de torção completa entre barras. Para terminar, voou pelo ar antes de fazer uma aterragem perfeita. Tudo isto em apenas vinte segundos”. No fim, estava um “perfeito 10” à espera de Nadia Comăneci.
A ginasta romena fez história nos Jogos Olímpicos de Montreal, em 1976, ao tornar-se na primeira atleta a conquistar uma pontuação que não cabia sequer no ecrã: “Fiquei confusa quando apareceu 1.00, pois sabia que não me tinha saído mal. Claro que não esperava um 10, mas pensei que valia um 9.00 ou 9.95”, disse, numa entrevista ao jornal El Mundo, em 2016, 40 anos depois do feito histórico.
Nadia Comăneci tinha apenas 14 anos quando fez história no mundo. Mas nem tudo foi um mar de rosas para a atleta. Em 1977, tentou suicidar-se, ao beber lixívia, por não aguentar a pressão que lhe era colocada. Já em novembro de 1989, fugiu da Roménia, apenas um mês antes da revolução colocar fim ao governo comunista de Nicolae Ceaușescu, que durou quase 20 anos.
Foi por aí que o autor e historiador romeno Stejarel Olaru, 50 anos, quis pegar, quando pensou em escrever um livro sobre a atleta, que atualmente tem 61 anos, e que inclui ao detalhe o seu mais famoso exercício. Após visitar a cidade natal de Nadia, Onesti, perguntou-se se alguém já tinha contado a sua história pelos olhos da Securitate, a polícia secreta romena que vigiava os cidadãos. Quando percebeu que não, colocou os auscultadores e ouviu atentamente cada um dos seus relatos.
“Toda a Roménia sabia que ela [a polícia secreta] existia, que espiava as pessoas contra o regime e que era preciso ter cuidado com o que se dizia, porque estava certamente a ouvir”, explicou ao El Pais, esta quarta-feira.
Nadia Comăneci não era exceção. Sendo “a ginasta mais conhecida do mundo”, tinha ainda mais olhos postos em cima. Tanto que, segundo o livro “Nadia Comaneci and the Secret Police – A Cold War Escape”, lançado em abril deste ano, quando a atleta fugiu do país, “a sua mãe, irmão e cunhada juntaram-se para debater que estratégia iam seguir para os interrogatórios”.
“Como estavam conscientes de que as suas casas tinham microfones” — uma manobra bastante comum da Securitate, além da de mobilizar pessoas para espiar outras — ” puseram um disco de música clássica a dar, em alto e bom som, para que as suas palavras não fossem captadas”, cita o jornal espanhol.
“Vacas gordas”, “porcas” e “gansos bêbedos”: os insultos ouvidos pelo “rancho de Karolyi”
Stejarel Olaru, contudo, destaca o momento da chegada dos treinadores Bela e Martha Karolyi — o casal conhecido pelo seu “rancho” de ginastas, tendo treinado as melhores do mundo, desde Nadia até Simone Biles, e que foi despedido em 2018, após o escândalo da prática de abusos vir a público — como aquele em que a pressão da polícia secreta começou a aumentar.
Desta forma, o livro contém diversos testemunhos de conversas obtidas através das escutas deixadas pela Securitate em casa da atleta e no centro de treinos. “Vacas gordas” e “porcas” foram apenas dois dos vários insultos que as ginastas ouviam todos os dias dos seus treinadores.
O peso foi sempre uma assombração na vida das ginastas. No entanto, para o “rancho de Karolyi” este atingia extremos, sendo que a agulha da balança não podia mover nem um milímetro, quando se pesavam.
Ele chamou-me gorda, disse que era uma viúva com 15 filhos e um ganso bêbedo”, confidenciou a ginasta à sua companheira de equipa Teodora Ungureanu, sobre os abusos verbais de Bela Karolyi, em dezembro de 1977.
A propósito deste testemunho, retirado de uma conversa em casa da ginasta, o historiador explicou a obsessão que o treinador tinha com o corpo das atletas. Além de serem proibidas de comer e de serem pesadas todos os dias, quando engordavam, eram restritas a uma dieta à base de água durante vários dias.
Se isto não fosse suficiente, ainda tinham de ver o próprio treinador a deliciar-se com os pratos de comida que ingeria à sua frente: “O Bela é mesmo sádico. Fica à mesa, na presença das miúdas esfomeadas, a comer sem parar”, confessou Geza Pozsar, o coreógrafo da equipa, que foi um informador da polícia secreta.
Insultos, treinos com a coluna fraturada e abusos sexuais. O lado negro da ginástica feminina
Apesar destes testemunhos, Nadia nunca mostrou ter uma má relação com o seu treinador. Além de nunca ter denunciado qualquer abuso, ainda colaborou com ele e a sua mulher nos EUA, para onde fugiu.
Mesmo após o escândalo sexual de Larry Nassar, o osteopata da Federação de Ginástica dos EUA, ter desencadeado, tendo sido até o mote para a série da Netflix “Atleta A”, a ginasta optou por nunca abordar o tema. E nem com o próprio autor do livro quis falar sobre os factos.
Stejarel Olaru explicou ainda ao jornal espanhol que preferiu não referir qualquer dado sobre a vida amorosa de Nadia, casada com o também ginasta Bart Conner, há 27 anos: “Analisei todos esses documentos, mas não encontrei nenhum conteúdo político. Na minha opinião, tudo isso pertence à sua vida privada e não era o meu lugar escrever sobre esses dados”, rematou.