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Insultos, treinos com a coluna fraturada e abusos sexuais. O lado negro da ginástica feminina

O caso de Larry Nassar foi o rastilho. Depois do abuso sexual, olha-se agora para outras formas de dominação dos treinadores. Especialistas não têm dúvidas: é “uma cultura de intimidação”.

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Jogos Olímpicos de 1996, Atlanta. Kerry Strug podia ganhar o ouro para a seleção norte-americana feminina de ginástica com o seu salto no cavalo. Mas, ao aterrar no tapete, o seu pé direito falhou. Kerry saiu a coxear. A pontuação foi prejudicada pela aterragem, é claro, e Kerry tinha de decidir se repetia ou não o salto, mesmo com o pé magoado. Ao chegar ao pé do selecionador nacional, Béla Károlyi, ouviu: “Tu consegues, esquece isso!”. “Temos mesmo de fazer isto?”, perguntou-lhe a jovem. Depois, pensou na medalha de ouro e decidiu voltar a tentar. Preparou-se, correu, fez o ensaio, aterrou perfeitamente. E, de imediato, levantou o pé direito, que lhe doía agora ainda mais. Agradeceu ao público, que estava em êxtase, ao pé coxinho. Depois, ajoelhou-se — não conseguia sair do tapete pelo próprio pé.

Um ano depois, Kerry Strug continuava a defender a decisão de ter tentado o segundo salto. “Era a minha vez e eu ia provar isso”, disse à Sports Illustrated. “Fiquei chateada com o facto de as pessoas terem culpado o Béla [pela decisão]”, acrescentou. “Se for um rapaz, está tudo bem, ele é rijo. Se for uma ginasta mulher, acham logo que estamos a ser vítimas de abuso e a estragar os nossos corpos. É a mesma coisa: o atleta quer e o treinador ajuda a chegar lá.” Kerry tinha 19 anos quando se lesionou em Atlanta. Fazia ginástica artística desde os três.

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A imagem de Kerry Strug levada ao colo pelo treinador Béla Kábrolyi nos Jogos de Atlanta: heroísmo ou abuso? A atleta repetiu um exercício lesionada e nem podia andar

Mike Powell/Allsport/Getty Images

Passaram-se 24 anos desde esta entrevista. Agora, em 2021, a discussão sobre os limites das ginastas está completamente na ordem do dia. A favorita Simone Biles está no olho do furacão, depois de ter anunciado que desistia de duas provas por problemas mentais. É o culminar de uma discussão que a ginástica artística norte-americana iniciou após o escândalo de abuso sexual que envolveu o ex-médico da seleção dos EUA, Larry Nassar. “Se ser abusada sexualmente por um médico não é normal, será que o resto também não é?”, perguntam-se alguns. As dietas rígidas, que tantas vezes levam a distúrbios alimentares. Os gritos e os insultos de alguns treinadores. O treinar e competir com lesões graves. Até, como no caso de Biles, competir quando uma atleta não se sente mentalmente preparada já é colocado em causa.

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“Aos olhos do público, os Olímpicos são só brilho, glória e sorrisos”, comenta ao Observador Natalie Barker-Ruchti, professora de Gestão Desportiva que se especializou no que considera serem os abusos que ocorrem na ginástica artística feminina. “Aquilo que os media não cobrem é a realidade de anos de preparação dura. Isto não é novo: o Little Girls in Pretty Boxes foi publicado em 1995”, diz, referindo-se ao livro da jornalista norte-americana Joan Ryan, que detalha em pormenor o tipo de treino que é dado às ginastas nos EUA.

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“Tinha 14 anos quando o Larry me disse que me estava a fazer uma 'manipulação interna'. Disse-me que a dor que eu tinha num músculo da coxa podia ser aliviada se os músculos em torno dela estivessem relaxados. Ele disse que isto iria necessitar de ‘massagem interna’. Não pediu permissão para realizar o tratamento, era mais como se me estivesse a avisar do que ia acontecer. Eu nunca disse que não. Não lhe disse para parar quando me deu vontade de vomitar, tal era o desconforto. Com 14 anos, parte de mim sabia que aquilo não estava certo; mas nunca lhe disse para nunca mais me fazer aquilo”
Testemunho de Rachel Haines no seu livro Abused: Surviving Sexual Assault and a Toxic Gymnastics Culture, sobre os abusos do treinador Larry Nassar

Mas também não se pense que tal é apenas coisa do passado. Isso mesmo garante ao Observador Robert Andrews, preparador psicológico com décadas de experiência a acompanhar jovens ginastas (incluindo membros da seleção olímpica norte-americana de 2016, como Simone Biles): “Ainda esta semana falei com uma rapariga que me disse que tinha um treinador abusivo. Tentei convencê-la a sair daquele ginásio e a primeira coisa que ela me disse foi: ‘Isto é ginástica, faz parte.’ Dei-lhe argumentos contrários e ela acrescentou: ‘Não quero sair, porque senão parece que quem ganhou foi o meu treinador.’ É isto, elas sentem que, se saírem, é porque não eram boas o suficiente para aguentar aquilo. Isto permite que o abuso continue. E há pais que pensam o mesmo e dizem que ‘ser atleta olímpico é difícil’. Sim, é, fisicamente. Mas não tem de ser assim tão duro.”

“O que este escândalo demonstrou é que há uma cultura muito mais lata que permitiu e facilitou os crimes de Nassar”

A discussão pública só surge agora porque antes houve Larry Nassar. O médico da seleção feminina de ginástica dos EUA e da Universidade do Michigan molestou cerca de 500 adolescentes e jovens, nove delas atletas olímpicas, fazendo os abusos passarem por tratamentos médicos. Foi condenado a três penas de prisão diferentes: uma de 60 anos, outra de 40 a 175 anos e um terceiro tribunal condenou-o a outros 40 a 125 anos de prisão. O caso chocou a América e o mundo, não apenas pelo abuso sexual em massa, mas pelo padrão retorcido com que Nassar manipulava as vítimas, fazendo-se passar muitas vezes pelo membro mais simpático da equipa — o adulto em quem podiam confiar.

Um exemplo claro é o testemunho de Rachel Haines, presente no seu livro Abused: Surviving Sexual Assault and a Toxic Gymnastics Culture (sem edição em português): “À altura, tinha 14 anos. Tinha 14 anos quando o Larry me disse que me estava a fazer uma ‘manipulação interna’. Disse-me que a dor que eu tinha num músculo da coxa podia ser aliviada se os músculos em torno dela estivessem relaxados. Ele disse que isto iria necessitar de ‘massagem interna’. Não pediu permissão para realizar o tratamento, era mais como se me estivesse a avisar do que ia acontecer. Eu nunca disse que não. Não lhe disse para parar quando me deu vontade de vomitar, tal era o desconforto. Com 14 anos, parte de mim sabia que aquilo não estava certo; mas nunca lhe disse para nunca mais me fazer aquilo.”

Larry Nassar. A história do monstro que abusou de centenas de atletas durante mais de 20 anos

Nassar voltaria a fazer o mesmo a Haines mais tarde, quando esta se lesionou num treino e partiu um osso da coluna. O médico explicou-lhe que, se queria manter vivo o sonho de se tornar campeã nacional, não poderia ir a um médico normal, porque iria ser imediatamente operada. Pediu-lhe para que confiasse em si. Deu-lhe ibuprofeno e continuou o seu “tratamento” de “massagens internas’” durante meses.

Larry Nassar, médico da seleção feminina de ginástica dos EUA e da Universidade do Michigan molestou cerca de 500 adolescentes e jovens, 9 delas atletas olímpicas

AFP/Getty Images

O caso de Haines é semelhante ao de centenas de outras ginastas norte-americanas. E a ideia de continuar a treinar mesmo com a espinha partida não é chocante para a maioria das praticantes de alto nível da modalidade. “É como se fosse um culto”, resumiu Sarah Klein, uma das vítimas de Nassar, à Newsweek, na semana passada. “Pensa-se só: é assim que se fazem as coisas aqui.”

“O que este escândalo demonstrou é que há uma cultura muito mais lata que permitiu e facilitou os crimes de Nassar”, resume Barker-Ruchti ao Observador. “É uma cultura de medo, intimidação e silenciamento ativo das ginastas.” Após a condenação de Nassar, a Federação de Ginástica norte-americana pediu uma investigação independente — e esta concluiu que era necessária uma “mudança cultural total”. “Até aqui, as investigações que existiam eram sobretudo internas. Com o caso de Nassar, foi algo que nunca vimos. Isso levou ao documentário Atleta A (Netflix), que explica de forma muito clara o caso. Foi visto por muita gente e isso iniciou uma onda de ginastas a refletirem sobre as suas próprias experiências e a falarem em público. Nem sempre de abuso sexual, mas sempre de alguma forma de abuso que está ligada a esta cultura de intimidação e silêncio”, afirma a investigadora.

“O meu trabalho é o de empoderar os atletas física e emocionalmente e os treinadores abusivos não gostam quando uma pessoa como eu entra no seu ginásio. Dou-lhe um exemplo. Uma vez estava a trabalhar com um grupo de raparigas, a ver um treino e uma fez-me um aceno com o dedo mindinho. No final do treino perguntei-lhe o porquê de acenar assim. A resposta dela: ‘Se o meu treinador me visse a acenar-lhe normalmente ia castigar-me com mais exercícios extra’”, relata. “Não acha isto de loucos?”
Robert Andrews, que se demitiu de aconselhar as equipas norte-americanas nos nacionais, mundiais e nos Jogos Olímpicos após os Jogos de Londres 2012, ao Observador

A antiga campeã nacional Jennifer Sey resume assim a situação no documentário: “Regra geral, o abuso emocional e físico eram habituais e nós sentíamo-nos tão abatidas com isso e tornávamo-nos tão obedientes que, quando sabíamos que havia um agressor sexual entre nós, não dizíamos nada. Sentíamo-nos impotentes.”

Foi precisamente essa cultura que fez com que Robert Andrews se demitisse de aconselhar as equipas norte-americanas nos nacionais, mundiais e nos Jogos Olímpicos após os Jogos de Londres (2012). Em 2017, escreveu um artigo onde denunciava o que considerava ser uma “cultura de menorização” das atletas, que acabam por desenvolver relações tóxicas com a maioria dos treinadores.

Ao Observador, explica que se foi apercebendo disso ao longo de 15 anos de carreira. “O meu trabalho é o de empoderar os atletas física e emocionalmente e os treinadores abusivos não gostam quando uma pessoa como eu entra no seu ginásio. Dou-lhe um exemplo. Uma vez, estava a trabalhar com um grupo de raparigas, a ver um treino e uma fez-me um aceno com o dedo mindinho. No final do treino perguntei-lhe o porquê de acenar assim. A resposta dela: ‘Se o meu treinador me visse a acenar-lhe normalmente ia castigar-me com mais exercícios extra’”, relata. “Não acha isto de loucos?”

O desporto onde a puberdade é vista como um problema — mas só nas raparigas

Grande parte deste controlo é possível porque a maioria das atletas de elite na ginástica começam a treinar muito cedo. Na maioria dos desportos, a idade traz uma vantagem ao atleta — mas, no caso da ginástica artística feminina, a chegada à puberdade continua a ser vista como um problema. “Quando uma rapariga começava a usar soutien, os treinadores puxavam-no e as outras rapariga gozavam com ela”, relatou a ex-ginasta Sara Tank Ornelas à Associated Press.

“Para muita gente, este é um desporto de meninas. É um desporto que tem exigido que elas se especializem muito novas, o que não acontece muitas vezes noutros desportos. E a razão para isso é porque se assume que uma rapariga só consegue ser bem-sucedida se tiver um corpo de criança. Com a puberdade o corpo muda, ganham-se curvas — e pode deixar-se de ser tão inocente como se era até então”
Natalie Barker-Ruchti, professora de Gestão Desportiva que se especializou no que considera serem os abusos que ocorrem na ginástica artística feminina

Os números revelam que a tendência do desporto ao longo dos anos tem sido a de criar campeãs cada vez mais baixas e magras. Segundo contas do De Correspondent, até à década de 1970 as atletas tinham em média 1,60m de altura e 60 quilos de peso. Nos mundiais de 1987, a média já estava em 1,54m e 45kg. Em Sydney (2000), era de 1,52m e 43kg.

“Para muita gente, este é um desporto de meninas”, resume Barker-Ruchti. “É um desporto que tem exigido que elas se especializem muito novas, o que não acontece muitas vezes noutros desportos. E a razão para isso é porque se assume que uma rapariga só consegue ser bem-sucedida se tiver um corpo de criança. Com a puberdade, o corpo muda, ganham-se curvas — e pode deixar-se de ser tão inocente como se era até então”, acrescenta. John Carney, professor da Universidade de Queensland, garantia num artigo recente do The Guardian que não há qualquer evidência científica que sustente a ideia de que uma rapariga só se pode tornar boa ginasta enquanto ainda é pré-adolescente: “Não há nenhuns dados que reúnam consenso científico sobre isso”, afirmou.

“A ginástica artística masculina é um bom espelho para colocarmos em frente a isto”, acrescenta a professora da Universidade de Örebro, na Suécia. “Embora os rapazes também comecem em criança, a puberdade é até desejada, porque significa que se vai formar mais músculo. E a ginástica feminina também exige músculo.” Para a académica, todos estes problemas em torno da modalidade estão mais ligados a noções de género do que desportivas: “É um paradoxo muito interessante. Elas são muito femininas, mas os seus corpos são algo andrógenos. Se olharmos para elas, não são voluptuosas nem magras, no sentido [que é suposto para] uma mulher adulta. Os corpos daquelas raparigas estão numa fase em que não pertencem a nenhuma norma tradicional de género.”

Comenaci e Károlyi. A ponta do icebergue da cultura de abuso noutros países?

Nos primeiros Jogos do início do século XX, não era habitual encontrar estes “corpos andrógenos” entre as atletas. Foi apenas a partir da década de 1960 que se iniciou esta tendência, que ganharia verdadeiras raízes com a vitória de Nadia Comaneci, de apenas 14 anos, nos Jogos de Montreal. O “perfeito 10” que alcançou na competição ajudou a cimentar esta ideia: quanto menor a idade, melhores os resultados.

Comaneci era treinada por Béla Károlyi — o mesmo que viria a treinar Kerry Strug e dezenas de outras atletas olímpicas norte-americanas. De origem húngara, Károlyi foi escolhido pessoalmente por Nicolae Ceauşescu para ser o selecionador romeno de ginástica feminina. Mas, em 1981, Béla e a mulher Martha decidiram fugir da Roménia para os EUA. Aí, acabaram por tornar-se os treinadores de topo da modalidade. Os estágios da seleção norte-americana passaram a fazer-se no seu rancho privado, no Texas.

Os relatos do controlo exercido sobre as atletas ali são chocantes: as doses de comida eram minúsculas (o que chegou a levar algumas atletas a procurarem restos de comida no lixo) e os seus quartos eram revistados para assegurar que não havia comida escondida; o dia-a-dia do treino era pontuado por gritos e insultos, a maior parte das vezes com comentários que acusavam as atletas de estarem demasiado gordas; e foram várias as ginastas que foram obrigadas a continuar a treinar, mesmo com lesões graves. Como extra, sabe-se agora que Nassar cometeu muitos dos seus crimes naquele mesmo rancho e que Martha Károlyi foi avisada e nada fez. Em 2018, já depois do caso Nassar, a Federação de Ginástica norte-americana despediu os Károlyis e dispensou o seu rancho.

Béla Károlyi e a mulher Martha Károlyi fugiram da Roménia e começaram a treinar a seleção dos EUA no seu rancho no Texas: os relatos de abusos físicos são chocantes

Bob Levey/Getty Images for Hilton

Alegações que, a confirmarem-se, parecem encaixar-se no padrão exercido sobre Comaneci — também ela a viver atualmente nos EUA. O historiador romeno Stejarel Olaru publicou um livro este ano onde revela relatórios da Securitate (a polícia secreta de Ceauşescu) que falam dos abusos que Béla exercia sobre as suas atletas. “Vacas gordas” e “porcas” eram alguns dos termos que utilizava. “Batia nas raparigas até os seus narizes sangrarem e elas eram castigadas com recurso a exercícios físicos até chegarem a um ponto de exaustão”, pode ler-se num dos relatórios. A própria Comaneci disse em 1977, numa entrevista que foi censurada pelo Estado romeno, que frequentemente recebia chapadas, era insultada e ficava três dias sem comer.

O caso levanta uma questão sobre se a cultura de abuso sobre as ginastas é um exclusivo norte-americano — e se poderá passar-se o mesmo com o abuso sexual. Natalie Barker-Ruchti recusa atirar-se fora de pé: “Não posso falar numa prevalência mundial, porque não há dados para isso”, diz. “Aquilo que sabemos é o que o abuso sexual acontece em vários contextos como na igreja, na escola e sim, também na ginástica.”

Certo é que o escândalo de Nassar e o documentário Athlete A levaram ginastas de outros países a falar sobre a pressão que sentem e os maus-tratos de alguns treinadores. Já houve relatórios públicos a confirmar casos de abuso sobre as atletas em países como a Austrália, a Holanda e o Reino Unido. O padrão é sempre semelhante: insultos, controlo de peso ao grama, exercícios até à exaustão, obrigação de treinar lesionadas e medo das atletas em falarem.

“Elas aprendem a não ter voz, a serem dóceis, a respeitarem os treinadores. E até os pais não percebem o que se passa. Alguns contactam-me e perguntam: ‘Isto aconteceu à minha filha. É normal?’. Estão confusos. Porque as filhas estão a sair-se bem, estão num caminho de glória. Mas também são abusadas”
Natalie Barker-Ruchti, professora de Gestão Desportiva que se especializou no que considera serem os abusos que ocorrem na ginástica artística feminina

“Elas aprendem a não ter voz, a serem dóceis, a respeitarem os treinadores”, acrescenta Barker-Ruchti. “E até os pais não percebem o que se passa. Alguns contactam-me e perguntam: ‘Isto aconteceu à minha filha. É normal?’. Estão confusos. Porque as filhas estão a sair-se bem, estão num caminho de glória. Mas também são abusadas.”

No Ocidente, temos vários governos a começarem a prestar atenção ao tema e a desenvolverem as suas próprias investigações. Mas e no resto do mundo? O que se passa, por exemplo, nos antigos países da URSS ou na China, que produzem algumas das atletas mais fortes da modalidade? Para já, não sabemos muito. Mas há indícios. No caso da antiga União Soviética, a Radio Free Europe conduziu uma investigação em 2018 onde conseguiu que quatro colegas da famosa Olga Korbut — que acusou o treinador Renald Knysh de ter abusado sexualmente dela — confirmassem parte do seu relato. Para além de tentativas de abuso sexual explícito, as antigas atletas falam em linguagem obscena nos treinos e na entrega de brinquedos sexuais e revistas pornográficas às adolescentes por Knysh. Este nega por completo as acusações.

E no caso da China? O campeão olímpico de remo ​​Matthew Pinsent assumiu publicamente ter ficado chocado com o nível de brutalidade aplicado a crianças nos treinos de ginástica olímpica a que assistiu no país. Em 2012, a campeã mundial de ginástica Fan Ye confirmou à agência Reuters o radicalismo do sistema chinês, exemplificando como era lembrado à sua mãe que a filha tinha passado a ser “propriedade do Estado”. 

Quanto a abusos sexuais, há poucos relatos. Mas existe pelo menos um caso, registado em 2014, quando dois diretores da Escola Provincial de Ginástica de Hunan foram detidos por suspeitas de abuso sexual sobre três atletas com menos de 12 anos.

Nadia Comaneci, a primeira nota 10, perfeita, já relatou os abusos a que era submetida pelo regime de Ceausescu

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É inegável que os dados são poucos e que os números relatados quer na Europa de Leste quer na China, tanto em relação a abusos sexuais como outro tipo de abusos em geral, estão muito abaixo dos que conhecemos nos Estados Unidos. Mas Robert Andrews não tem medo de afirmar que estes países também têm uma cultura de abuso na sua ginástica artística feminina: “Na China, já vimos documentários onde se vê eles a fazerem alongamentos desumanos a crianças. E na Europa de Leste? Bom, conheço muitos treinadores de lá que vivem nos EUA. Não são todos, mas muitos deles têm uma cultura de treino que é simplesmente brutal.” A distância daí ao abuso sexual em alguns casos pode ser pouca.

Simone Biles, o exemplo da mudança

Nos Estados Unidos, que seguem na crista da onda relativamente à consciencialização sobre esta matéria, já não são apenas os abusos sexuais na ginástica que chamam a atenção. Em 2020, por exemplo, a treinadora Maggie Haney recebeu uma suspensão de oito anos por abusos de cariz não sexual a atletas, entre elas a campeã olímpica Laurie Hernandez. Em causa estavam comportamentos como puxões de cabelos e ameaças de que se suicidaria se as atletas deixassem de treinar com ela.

O debate está em marcha. Pode a ginástica artística feminina usar métodos de treino mais humanos e, mesmo assim, conseguir que as atletas se tornem campeãs olímpicas? Os especialistas ouvidos pelo Observador creem que sim. “Estou com esperança”, diz Natalie. “É claro que há céticos e infelizmente os mais céticos muitas vezes são as próprias sobreviventes. Mas há cada vez mais investigações e o público e os media estão cada vez mais atentos”, aponta. “Talvez uma mudança como a proibição de competir apenas a partir de certa idade [medida adotada pela Holanda] seja apenas superficial, mas creio que teremos outras mais profundas. Há uma ‘velha guarda’ de saída e temos a possibilidade de que esta nova guarda traga outros valores.”

Gymnastics - Artistic - Olympics: Day 4

Simone Biles, aos 24 anos, pode ter mudado a imagem da ginástica feminina antes de se despedir dos Jogos Olímpicos este ano em Tóquio

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Roberts concorda: “Isto está a mudar”, afirma. “Os treinadores abusivos eram a norma e hoje em dia começam a ser menos. E temos alguns a escrever livros revolucionários sobre isso, como a Aimee Boorman, que treinou a Simone Biles. Se tudo correr bem, talvez eles comecem a inspirar outros e a demonstrar que há uma forma diferente de treinar a ginástica artística feminina.”

É tempo de regressar a Atlanta, em 1996, e rever o salto que levou à lesão e à medalha de ouro de Kerry Strug. Quando caiu de joelhos no tapete, sem conseguir andar, Kerry foi levada ao colo por membros da equipa técnica. Os paramédicos queriam mandá-la para o hospital, mas Kerry recusou, porque queria subir ao pódio com as colegas. “Não te preocupes”, disse-lhe Béla Károlyi. “Vais ao pódio. Garanto-te.”

Para uns, esta é a imagem heróica do esforço de uma atleta, levada ao colo pelo seu treinador para receber a glória merecida. Para outros, é um símbolo da fragilidade das ginastas, dependentes da ambição dos seus treinadores mais velhos. No meio, restam dois factos: Kerry Strug tinha 19 anos quando se lesionou em Atlanta e nunca mais competiu em nenhuns Jogos Olímpicos.

Simone Biles desiste da final do all-around: “A sua coragem mostra, mais uma vez, o porquê de ser um exemplo para tantos”

Simone Biles, que também sofreu com os abusos dos Károlyis e de Nassar, desistiu esta terça-feira da prova por equipas depois de ter cometido erros num salto. “Tenho de focar-me na minha saúde mental e não colocar em perigo a minha saúde e bem estar. É horrível quanto estás a lutar com a tua própria cabeça”, disse, em lágrimas. A sua equipa de selecionadores não só concordou, como concedeu a todas as atletas norte-americanas “um dia de descanso mental”.

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