Há coincidências tenebrosas e perguntas que nunca se podem antecipar. Numa entrevista, num set de rodagem, numa segunda-feira normal. E há acontecimentos que, por muitas contas que se façam, são praticamente impossíveis de antecipar. Kamal Lazarq saiu de Cannes, onde estreou a sua primeira longa-metragem, “Hounds”, filmada em Casablanca, com o Prémio do Júri Un Certain Regard. Falámos com o realizador marroquino em França, sem na altura conseguir confirmar se o filme teria estreia marcada para Portugal. Agora sabemos bem que passa esta terça-feira, dia 12 de setembro, no Cinema São Jorge (19h00, sala 3).

Das boas notícias, passemos para a tragédia que ainda se abate naquela região do norte de África, depois de um terramoto ter feito quase três mil mortos (pelo menos). A conversa ficou guardada até agora, não houve, portanto, tempo para abordar o pesadelo que por ali continua a ser vivo. Foi sobre “Hounds” que falámos, uma história em que pai e filho são apanhados numa teia de crime em movimento que envolve uma morte nos subúrbios pobres de Casablanca. A missão é simples, macabra, trágica e cómica: desfazerem-se de um cadáver. Ou se enterra num poço, ou se atira ao mar ou se esturrica num forno. Kamal Lazarq só trabalha com não atores, os que conhece, observa e conquista entre bairros e cafés. “Há muitas histórias por contar nesses locais”, disse-nos. Levou os atores principais, “pela primeira vez”, até França. Não foi possível saber se, depois do terramoto, a equipa que fez o filme se encontra bem. Porque, tal como na sismologia, neste filme sabemos que algo vai correr muito mal, só não sabemos quando, nem quantas vezes.

“Este filme é a continuidade de uma curta-metragem anterior, a ‘The Man with a Dog’ que também começa com uma noite no submundo de Casablanca. O início é um thriller mas, depois, o que acontece é ficção. A inspiração fui buscá-la às histórias destas pessoas dos bairros pobres da cidade, que têm de sobreviver com pequenos trabalhos”, diz. Em comum, os filmes têm a noite e uma luta de cães. No primeiro, na zona costeira de Marrocos, um homem vê o seu labrador ser roubado, indo até às últimas consequências para o conseguir recuperar.  Em “Hounds”, Dib (Abdellah Lebkiri), um mafioso que perde numa luta canina, está decidido a vingar-se do tipo que o venceu. Vai daí, pega em Hassan (Abdellatif), o pai central desta história, e muito pouco apto para este tipo de crimes, que logo procura o filho Issam (Ayoub Elaid) para o ajudar. Nos dois filmes existe sempre um mapa de personagens de má ralé, pobres, sem esperança, criminosas, que o par familiar encontra: ou os ajuda, porque na pobreza também há altruísmo, ou os destrata, porque a pobreza assim os tornou. É um retrato social duro que começa com graça e depois fala muito a sério — e, por vezes, mesmo muito a sério –, onde a religião muçulmana vai colocar em cheque o amor entre pai e filho.

[o trailer de “Hounds”:]

Podia pensar-se que Kamal Lazarq, ao fazer uma primeira longa-metragem, se tivesse desdobrado em horas infinitas para envagelizar os não atores na nobre arte da representação. Mas não. O truque para o foco nunca sair de uma história que parece tirada a papel químico de uma realidade que conhece é manter a mente aberta. “Conheci elementos do meu cast nessa curta-metragem, o mais importante foi o diálogo que tive com a equipa técnica. Disse-lhes que o objetivo era que o actor se sentisse livre. Nunca dei falas aos actores para aprenderem. expliquei-lhe os pontos centrais e depois foi encontrar a imagem e o tom certos. Foi quase como se se esquecessem que estavam a filmar”, contou. Seis semanas de rodagem feitas à noite, com muito poucas horas de sono. “Depois, a certa altura, os atores esqueceram-se e transformaram-se nas personagens. A tensão entre os dois era real”.

À cabeça, e porque as comparações são sempre inevitáveis, “Hounds” faz lembrar “Good Time”, dos Safdie Brothers, tresloucada viagem pelo submundo de Nova Iorque, onde Connie Nikas (Robert Pattinson) tenta desesperadamente arranjar dinheiro para resgatar o irmão (Benny Safdie) portador de uma deficiência mental. É um dos exemplos que Kamal Lazarq dá ao Observador como fonte de inspiração. Nunca seria suficiente como enquadramento, mas é mais um momento que testemunha a relação que Lazarq tem com o cinema: primeiro é um espectador. “É difícil explicar porque quis tornar-me realizador mas fui descobrindo alguns filmes e percebi o poder do cinema. Queria ser jornalista mas mudei. Claro que é um risco ser realizador em Marrocos, mas quero continuar neste universo. Estou muito ligado a Casablanca. Queria que ‘Hounds’ fosse universal mesmo sendo um filme local. Há muito por contar, quando não há nada a perder, tornas-te numa personagem”. A veia artística apoderou-se do lado documental.

Para o futuro, já se percebeu que Kamal Lazarq não quer sair deste lugar. Quando questionado se estaria interessado em vir filmar para Portugal, país tão próximo de Marrocos e cada vez mais atrativo para produções estrangeiras — ainda que as questões com o cash rebate continuem a dar voltas à cabeça do pessoal do cinema –, só faltou ao realizador marroquino acenar negativamente com a cabeça. As reações que levou da riviera francesa não parecem dar-lhe qualquer sensação de deslumbramento. Nada mau para quem umas semanas antes ainda estava a finalizar “Hounds”. É o primeiro e, para já, único realizador da família. A primeira longa-metragem mostrou-lhe as dificuldades de assegurar financiamento e de estar constantemente a mudar o guião, como se estivesse permanentemente a fugir de um crime que o persegue num qualquer subúrbio de Casablanca. As tais coincidências tenebrosas.

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