Há uma redescoberta da literatura de viagens aos Açores que está a alimentar um opulento caleidoscópio de imagens da vida humana e natural daquele arquipélago português tornado escala tradicional para abastecimento, refresco e devaneio na rota oceânica entre Europa e Américas pelo capricho de correntes marítimas. Além dum corpus bibliográfico há muito identificado e estabelecido — canónico até, como o clássico Um Inverno nos Açores e um Verão nas Furnas dos irmãos Joseph e Henry Bullar (Londres, 1841); mas importa ter em mente a antologia Viajantes nos Açores, organizada em 2021 por Maria das Mercês Pacheco, que já alcançou segunda edição —, a crescente digitalização de livros, folhetos e periódicos pelas melhores bibliotecas do mundo é um convite direto à pesquisa e identificação — tanto por naturais empenhados como por novos residentes, quais bons coca-bichinhos da “pesca em-linha” — de mais e mais relatos de visita àquelas ilhas por gente de todo o tipo, cientistas, militares, homens de negócios, jornalistas, diplomatas, destemidos aventureiros, náufragos ou corsários dos sete mares…

Esse aluvião narrativo, também constituído por correspondência entre estrangeiros, tem interessado cada vez mais os editores açorianos, a secretaria regional de Cultura e os institutos culturais que mantêm atividade livreira, como agora sucede com este Onde se Esquece o Desfile do Tempo da jornalista norte-americana Fannie Brigham Ward (1843-1913), que entre setembro de 1895 e janeiro de 1896 publicou no Daily Inter-Ocean de Chicago estas 18 crónicas de viagem, com títulos tão sugestivos como Uma Acádia insular, Retratos duma cidade indolente ou No cimo de um vulcão extinto. O mesmo Núcleo Cultural da Horta que em 2015 divulgou os originais em língua inglesa no seu Boletim anual, num trabalho do professor emérito da Brown University George Monteiro (1932-2019), apresenta-os agora em tradução cuidada levada a cabo por Maria Leonor Sampaio da Silva, a professora da Universidade dos Açores que há dez anos já traduzira, para a mesma instituição, o relato de Silas Weston (1804-66) Visit to a Volcano, or what I saw at the Western Islands (1856), incluído no álbum Um Observador Observado e contextualizado por ensaios históricos e literários de grande qualidade.

Travels in the Azores in the Mid-1890s, o título demasiado genérico das crónicas de Fannie B. Ward no jornal de Chicago, nada nos diz da “escrita notável” e da “prosa livre e sagaz” (Sampaio da Silva, pp. 18, 12) da sua autora, mas é a escassez de dados biográficos disponíveis sobre ela — indubitavelmente, uma grande e rara escritora de viagens de finais do século XIX a caminho de ser “descoberta” e valorizada, como outras mulheres das letras e das artes têm sido, e cada vez mais, justamente — que mais nos deve inquietar, pois reduz a perceção que gostaríamos de ter acerca dela e do seu legado, e até mesmo a certeza de saber com quem passou pelos Açores nessa altura, embora pareça haver probabilidade de o ter feito — ao menos em parte do roteiro — com Clara Barton (1821-1912), a sufragista, filantropa e primeira presidente da Cruz Vermelha Americana (de 1881 a 1904) com quem Ward viajou em diversas ocasiões, por exemplo em 1898, em reportagem sobre a devastadora “guerra espanhola” em Cuba (correspondência posterior está conservada na Library of Congress, em Washington D.C.).


Título: “Onde se Esquece o Desfile do Tempo — Relatos de uma americana nos Açores em finais do século XIX”
Autora: Fannie B. Ward
Tradução, prefácio e notas: Maria Leonor Sampaio da Silva

Editor: Núcleo Cultural da Horta
Páginas: 208

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Tão-pouco pode passar despercebido o facto de ter escrito no Faial as suas crónicas 3-9, entre 5 de setembro e 7 de outubro, uma permanência — com idas e vindas à ilha do Pico — facilitada por relações na colónia ou diretamente com o cônsul norte-americano naquela agitada cidade portuária (“os nossos conhecidos na Horta” referidos na p. 90, que trataram de “tudo o que era imprescindível ao nosso conforto”), senão mesmo sugestionada por relatos de viajantes como Marion Harland (1830-1922), que a tradutora refere numa nota, Lyman Horace Weeks (1851-1942), citado na última página do livro, ou Thomas Wentworth Higginson (1822-1911), um outro notório lutador pelos direitos cívicos que quatro décadas antes ali residiu um semestre e em folhas do seu país publicou uma série de escritos sobre a ilha, os Açores e a história de Portugal (compilados em 2009 no livro O Faial e os Portugueses, de 139 pp.) — trabalhos esses, aliás, dados a público pelo mesmo George Monteiro que deu aviso dos de Fannie B. Ward. Não seria de espantar, pois ela refere-se, em geral, a opiniões de “outros viajantes no passado” (p. 158), “descrito por visitantes anteriores” (p. 94), etc.

Depois, só a leitura do muito que, enquanto escritora profissional durante anos a fio, Ward terá escrito sobre a América do Sul, do México ao Chile e da Argentina ao Brasil, permitirá avaliar capazmente o que representaram para ela os quatro meses passados no arquipélago açórico, sem contar o que ali pôde observar durante escalas de anteriores viagens à Europa, uma das quais um extenso périplo na península ibérica em 1889, de que é suposto haver escritos. Tanto assim é que Leonor Sampaio da Silva, comentando em rodapé a frase em que a viajante diz ser de regra, à chegada à Madalena, no Pico, visitar de imediato o cônsul norte-americano, considera a hipótese de Fannie B. Ward ali ter estado antes de 1892, “data da partida definitiva do cônsul para os EUA” (p. 86). Interessa esclarecer tudo isto, e muito ganhariam os Açores — e a sua Universidade, através do incentivo, por exemplo, a uma tese de doutoramento de perfil biográfico e antológico — em tomarem a dianteira na valorização desta pioneira escritora de viagens, tendo como ponto de partida este delicioso feixe de crónicas, quase definitivamente sepultadas entre folhas do velho papel de jornal em que saíram há mais de 120 anos.

Ao escrever para o Daily Inter-Ocean demoradamente sobre os Açores, Fannie B. Ward deixa claro na sua primeira crónica que pretende “agir preventivamente contra a reduzida informação geográfica” disponível. “Até há bem pouco tempo, — pressupõe —poucas pessoas tinham uma pequena ideia da sua localização exata […] e muito menos ainda conheciam as suas características e as peculiaridades da vida lá.” Porém — e a oportunidade jornalística ganha então a maior evidência —, “tudo isto mudará num futuro próximo, já que três companhias marítimas fazem agora viagens regulares entre os nossos portos e os dos Açores, onde se ligam a companhias portuguesas e outras, permitindo, deste modo, aos turistas entrar na Europa a partir da península espanhola [sic] e do Mediterrâneo — uma alternativa muito desejada às velhas rotas marítimas. As ilhas proporcionam uma paragem maravilhosa a meio caminho da grande estrada oceânica, e, para quem não prossegue viagem, uma experiência de viagem ao estrangeiro sem par em nenhum outro lugar do mundo, no que respeita a novidades, belas paisagens e usufruto de lazer, a troco de um pequeno investimento em tempo, esforço e dinheiro.” (pp. 23-24).

Em finais do século XIX, as ilhas açorianas eram assim declaradas um novo destino turístico: “sendo de grande interesse do ponto de vista histórico, e constituindo um dos lugares mais bonitos à superfície da Terra, ao nível da paisagem, é surpreendente que tenham sido esquecidas por quantos procuram lugares aprazíveis e são movidos pela curiosidade.” Contudo, Ward não chegou primeiro: publicado em Boston no ano 1867, quase 30 anos antes, Uma Viagem aos Açores, ou Ilhas Ocidentais, um livro do açoriano da Ilha das Flores Manuel Borges de Freitas Henriques (1826-73), merece bem o título de pioneiro do género, atento à apetência por viagens transatlânticas que a abstinência forçada por quatro anos de guerra civil havia criado entre os norte-americanos mais endinheirados (v. ed. bilingue, Instituto Açoriano de Cultura, 2021, 233 pp.). E por outro lado, três anos apenas após a reportagem de Ward nos Açores, foi criado em Ponta Delgada o primeiro organismo português de promoção do turismo, a Sociedade Propagadora de Notícias Micaelenses (1898), que se antecipou em oito anos à muito mais conhecida Sociedade de Propaganda de Portugal, com sede no Chiado, em Lisboa.

A chegada de Fannie — e a sua, ou suas acompanhantes — ao arquipélago fez-se pelas Flores e Corvo. A longa espera pela autorização sanitária de desembarque em Santa Cruz — onde, dado o isolamento dos locais, se sentiram recebidas “como convidados especiais ou parentes há muito desaparecidos” (p. 32) — permite-lhe informar-se razoavelmente bem, junto dum passageiro, acerca da pequena ilha em frente e do seu Caldeirão, onde “não é provável que venhamos a pôr o pé” pois, ficou a saber, “a viagem a remo pelas dez milhas que separam as duas ilhas nunca é uma excursão recreativa, devido às vagas tempestuosas e às correntes fortes” (pp. 27-28). As primeiras impressões são — e justamente… — de espanto absoluto: “Como poderei descrever o lugar quando a tinta e o papel são incapazes de vos transmitir a mais pequena ideia dos seus recortes loucos e estranhas combinações de cor? Por todo o lado, a ilha ostenta marcas da sua origem vulcânica e a maior parte da sua costa é totalmente inacessível por mar. O quadro geral é composto por formações rochosas e muros de lava negra, despenhadeiros de cinzas avermelhadas, solo da cor do chocolate, montanhas erguendo-se abruptamente do mar e grandes abismos, escuros de tão densamente arborizados, nos quais se precipitam ribeiros em fios de prata formando massas de espuma ao cair” (p. 33). Nas Lajes, deparou-se com “muitas provas do carácter inóspito da costa”, “destroços de naufrágios espalhados por todo o sítio”: “pranchas, temperadas por longas travessias em muitos mares, servem de portas nas casas rurais e ainda podemos descobrir nelas algumas letras dos navios de que são provenientes” (p. 47). De São Jorge dirá adiante: “Quando o tempo está bom, a paisagem é bonita, verde e tranquila; mas não há imaginação que descreva o horror e a devastação que se seguem às tempestades severas que frequentemente esbofeteiam estas costas austeras” (p. 138); e “Contorná-la de barco, num dia calmo de Verão, é uma experiência para nunca esquecer, tão perigosa quanto sublime” (p. 136).

Apesar dos perigos evidentes, a aventurosa escritora — ciente daquela “pitada de perigo que acrescenta entusiasmo à satisfação” — declara: “Se o tempo e o clima permitem, é muito agradável dar a volta à ilha das Flores antes de prosseguir viagem para outras partes do arquipélago” e que “não há por que temer confiar a vida a um barqueiro açoriano, aonde quer que ele nos leve, porque eles são as criaturas mais cautelosas e temerosas no que respeita a ir para o mar” (p. 45). Passeando a pé entre a Fajãzinha e Ponta Delgada, por “caminho íngreme e sinuoso, cortado à face da falésia, mais adequado a cabras do que a seres humanos” (p. 49), porém num cenário edénico em que “toda a vastidão oceânica em frente refletia os raios solares como se fosse ouro polido”, a norte-americana de 52 anos com bastão de alpinista improvisado em punho viu «com surpresa tanto homens como mulheres descendo, com fardos pesados à cabeça, deslocando-se tão ligeiros e seguros como nós quando subimos e descemos as escadas das nossas casas” (p. 50). Noutras ocasiões, no Caldeirão do Faial, na subida do Pico ou nas Sete Cidades de São Miguel, por exemplo, o que a surpreende — e aterroriza — é o “trote no máximo da sua velocidade” do burro em que vai, forçado por jovens condutores com aguilhão longo e afiado, ou a atitude do cocheiro que “finge justificar o seu salário se chicotear as mulas para uma corrida ininterrupta e mortal […], numa velocidade de partir o pesçoco”, correndo “riscos em caminhos íngremes que um cocheiro americano nunca aceitaria nem que estivesse “‘com os copos'” (p. 98).

É o contraste absoluto com a placidez e a indulência — sobretudo a masculina — observada por Ward em tantos momentos: “Os comerciantes encostam-se às entradas dos estabelecimentos, não esperando qualquer cliente” (Horta, p. 111); “multidão ociosa”  e “Encontrei o meu anfitrião, um senhor magro e recatado, apoiado num pilar, a fumar vagarosamente intermináveis cigarros, como é seu costume” (São Miguel, pp. 165, 190); “As pessoas deambulam pelas ruas de um jeito apático, como se tivessem sucumbido ao ar leteu do lugar, ao ponto de não lhes ocorrer desejar fazer seja o que for”, “para cada homem que é visto a carregar fardos, caixas ou barris aos ombros, […] outros doze são vistos encostados indolentemente na parede aquecida pelo sol de um qualquer edifício ou deitados nos seus barcos à sombra”, e — mais severamente — “a população local não tem nem a energia nem a inteligência para tirar o máximo proveito das vantagens naturais das condições que possui” (Flores, pp. 36, 37, 51).

É decorrente e notável a atenção de Ward às peculiaridades do variado traje açoriano, sendo inevitável ver nisso o reflexo de quanto de pitoresco e colorido já observara nas suas excursões pelos Andes e por toda a América do Sul. Etnógrafos colherão neste livro informações preciosas, ou raras, como estas: “Ouvimos dizer que os camponeses do Pico costumavam vestir-se totalmente de vermelho”; “Uma das figuras mais pitorescas que eu já vi na vida foi um cidadão idoso do Pico, com longos cabelos e longa barba branca, vestido com um casaco curto de sarja grossa vermelha, colete e bermudas do mesmo tecido, polainas vermelhas abotoadas sobre os pés com sandálias e um barrete em tricô de lã vermelha cuja borla, rematando a ponta descaída sobre um lado da cabeça, baloiçava ao vento entre os seus caracóis grisalhos” (p. 71). Mas também há observações que muito dão que pensar: “A classe dita alta substitui o admirável linho regional por tecidos de algodão berrantes e outras ‘misturas’ desprezíveis vindas de Inglaterra” (p. 127).

Como é de regra nesta literatura, o contraste com os usos e costumes do país natal, ou de outros, também está presente: “Atrela-se uma vaca a um corpo de madeira giratório, da mesma forma que um cavalo trabalha numa fábrica de sidra da Nova Inglaterra” (p. 106); “As espigas [de milho] são postas a secar sobre uma estrutura feita com quatro varas, parecendo uma tenda wigwam” (p. 151); “Não é muito diferente das nossas danças em linha da Virgínia, com os pares formando duas linhas e passando pelo meio numa série de movimentos que dá gosto ver” (p. 207); “os seus poderes de expetoração [do fumador português] são inultrapassáveis até pelos campões americanos da arte de cuspir no ‘Sul soalheiro'” (p. 125); “as disputas verbosas [entre pescadores de São Miguel] por causa de um cêntimo a mais de sardinhas envergonhariam as disputas que têm lugar em Billingsgate”, mercado londrino de peixe (p. 163); “Há uma mesa tosca, um ou dois bancos mal feitos e, por vezes, uma cadeira [inglesa] Eastlake que faria inveja a um coleccionador” (p. 181); “Um capote custa entre 30 e 60 dólares e é o artigo principal no enxoval de uma noiva faialense de boas famílias. Como o rebozo mexicano e os impermeáveis antiquados que costumávamos usar [na América]” (p. 61); “O fio [de linho] passa para o fuso como as nossas bisavós costumavam fazer, torcido com a mão esquerda” (p. 117); ou — expondo-se a uma muito áspera controvérsia — “nenhuma vinha da Toscânia produz uvas tão boas como as que crescem nesta montanha seca” (no Pico; p. 84).

Queixas sobre a qualidade da hospedagem podem ser extremamente duras: “Na mesma praça fica o hotel — ou o que passa por hotel nestas paragens — acerca do qual, em consciência, mesmo a pessoa mais experiente em viagens, não poderá dizer uma palavra favorável” (Santa Cruz das Flores, p. 38); o Hotel Terceirense, no centro de Angra do Heroísmo — “a muitos níveis, a cidade mais bonita dos Açores” (p. 122) —, é “sujo e desconfortável para além de qualquer comparação. A única entrada faz-se por um saguão escuro, que é usado como adega, e está cheio de barris bafientos e cheiros azedos, anunciando com exatidão o estado das coisas lá dentro» (p. 124). Por vezes, é a própria perceção dos lugares que incomoda: Ponta das Velas, em São Jorge, é para a experiente Fannie B. Ward, como “o fundo de um poço tremendo”, “o lugar mais lúgubre, aflitivo e desolador que podemos encontrar, por mais numerosas e longas que sejam as viagens que façamos” (pp. 137, 136), e a ilha do Faial — vejam bem — “é famosa na América e, sem dúvida, na Europa também, como um paraíso de longa data para ladrões de bancos e vigaristas de todos os tipos e condições, que reconheceram as virtudes do afastamento temporário dos olhares públicos” (p. 53).

Há, no entanto, um recorrente e muito especial elogio da beleza física das açorianas enquanto jovens, e a afirmação de que, “como acontece noutros países, as comunidades rurais destas ilhas são muito mais interessantes para quem procura o elemento típico do que as cidades ligeiramente cosmopolitas” (p. 178). Um certo modo de ser e estar agrada claramente: “Até os rapazes descalços e seminus que conduzem os burros se tratam uns aos outros por senhor” (Faial, p. 118). E assim sendo, “estes açorianos, nos seus modos simples e sinceros, podem dar-nos muitas lições de delicadeza” (p. 205).

Duas observações adicionais: é de lamentar a reduzidíssima tiragem de 200 exemplares, e que, a exemplo do que tem sido feito para livros congéneres, o texto original não tenha sido transcrito, alargando para o vasto público de língua inglesa o contacto com esta narrativa de viagem aos Açores, para mais numa altura em que o Governo Regional está a apoiar — e muito bem — a tradução de autores açorianos.