Há momentos em que o cérebro de Joana Cabral parece um carro de Fórmula Um: é muito difícil de acompanhar quando acelera a fundo. Salta de raciocínio em raciocínio, estabelece pontes entre temas e conceitos diferentes, vai intercalando palavras em português e em inglês, para o raciocínio que está a fazer e volta atrás para terminar uma ideia, gira o computador para mostrar a paisagem, cita de memória estudos publicados o mês passado ao mesmo tempo que arranja o tablet a um dos três filhos — que acordou e quer ver desenhos animados.

Ri-se quando admitimos que estamos com dificuldade em acompanhá-la e confessa que, às vezes, os próprios colegas também não percebem à primeira o que está a dizer. “Uma das perguntas que oiço com frequência quando me ponho a falar destas coisas é ‘But what are you talking about?’(Mas do que é que estás a falar?)”

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Está a falar quase sempre de como funciona a vida. É isso que lhe interessa e foi isso que a levou à licenciatura em Engenharia Biomédica na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, há vinte anos. E, como do muito que não compreendemos sobre a vida, o cérebro talvez seja o que compreendemos pior, elegeu-o como objeto de estudo. “Apesar de percebermos cada vez melhor como funcionam os neurónios e termos registos de sinais cerebrais cada vez com melhor resolução, como é que a mente e a consciência saem do corpo é uma coisa que ainda não compreendemos com exatidão.”

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Foi para tentar compreender isso que, depois da licenciatura, a cientista de 39 anos, investigadora no Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde (ICVS), da Universidade do Minho, fez um doutoramento e pós-doutoramento em Neurociência Teórica e Computacional na Universidade de Pompeu Fabre, em Barcelona, seguido de outro pós-doutoramento em Psiquiatria na Universidade de Oxford.

É quase embaraçoso para a comunidade científica o ritmo lento do avanço em neurociência: qualquer dia vamos a Marte e ainda não conseguimos perceber o que se passa dentro da nossa própria cabeça.”

Joana Cabral sabe que o conhecimento é uma construção progressiva, quase sempre lenta e com revezes, mas considera também este é um campo que tem progredido demasiado devagar. E, para o percebemos, temos de começar por questionar dogmas.

Para ela, ao estudar as teorias da mente, houve uma coisa clara desde o início: a visão dualista, do incontornável René Descartes, que defende que corpo e mente são matérias distintas e separáveis — sendo a mente uma substância não física — nunca a convenceu. Como engenheira que é, acredita nas leis da física. “Tudo tem um mecanismo: só temos de o compreender e saber que regras o sustentam.”

O enigma das ondas cerebrais

A abordagem da cientista à compreensão do cérebro não é focada nos neurónios, mas mais macroscópica. Olha para o todo e não para a parte: interessam-lhe os padrões, as dinâmicas, os modos, os campos e as ondas de atividade cerebral que é possível ver e medir através de neuroimagem, com sinais de eletroencefalografia, de magnetoencefalografia e de ressonância magnética funcional.

Joana Cabral já viu milhares de dados de cérebros obtidos através de ressonância magnética funcional — cérebros saudáveis e doentes, em estado de repouso e de atividade, em modo de meditação e sob a influência de psicadélicos, de adultos e de prematuros — e, em todos, há estas ondas, “uma espécie de padrões-fantasma que aparecem e desaparecem espontaneamente”, que a intrigam.

“Embora se acredite que esse sinal tenha que ver com variações na oxigenação e desoxigenação do sangue como consequência da atividade neuronal, os princípios físicos que orquestram essa mesma atividade neuronal à escala macroscópica ainda não estão esclarecidos. Tenho encontrado indicadores que sugerem tratar-se de modos de ressonância no cérebro, uma hipótese cada vez mais sustentada por evidência experimental, mas ainda faltam muitas peças para completar o puzzle.” Na verdade há algo que intriga atualmente a investigadora: quer esclarecer se existe relação – ou não – com o líquido cefalorraquidiano.

— Joana Cabral já viu milhares de dados de cérebros obtidos através de ressonância magnética funcional e em todos há “uma espécie de padrões-fantasma que aparecem e desaparecem espontaneamente”

Certo é que estes sinais, que têm um padrão muito bem definido em cérebros saudáveis, estão alterados numa série de doenças mentais e neurológicas, como autismo, depressão, perturbação obsessivo-compulsiva e esquizofrenia. E sabe-se também que há formas de os modificar e repor alguma normalidade através da música, do uso de substâncias psicoativas – incluindo psicadélicos — e com estimulação elétrica ou magnética. É por isso que, para muitas doenças psiquiátricas e neurológicas que não cedem ao tratamento com medicamentos, são usadas estratégias de neuromodulação que usam corrente elétrica ou pulsos magnéticos para tentar tratar estas perturbações do sistema nervoso central.

Para a depressão resistente ao tratamento, por exemplo, estão aprovadas intervenções como a terapia eletroconvulsiva — que estimula o tecido cerebral do doente através de um impulso elétrico — e a estimulação magnética transcraniana — que recorre a sequências de pulsos magnéticos para modular a atividade em zonas específicas do cérebro. Também para condições como a doença de Parkinson em estado avançado é usada uma técnica chamada Estimulação Cerebral Profunda, em que, através de um procedimento cirúrgico, são implantados um ou mais elétrodos em regiões específicas do cérebro para lhes transmitir um impulso elétrico que ajude o paciente a controlar os movimentos.

Todos estes tratamentos estão aprovados e funcionam para algumas pessoas. Mas não se sabe bem como. É um jogo feito um pouco às cegas. Ainda este ano em fevereiro, conta Joana Cabral, na 5ª Conferência Internacional de Estimulação Cerebral, em Lisboa, as apresentações mostraram isso mesmo. “O que se ouve é: ‘eu fiz isto e deu aquilo’, ‘eu fiz aquilo e aconteceu assim’, ‘eu testei desta maneira e o resultado foi este’. É tudo muito experimental, muito empírico, não há um verdadeiro entendimento do que se está a fazer.”

Conhecer as regras

Não há um entendimento do que se está realmente a fazer, porque não há um paradigma ou normas conhecidas. “Esta é uma área em que não temos ‘constitutive equations”, frisa a cientista. As “equações constitutivas” são as regras — físicas — que nos dizem como os materiais ou substâncias se comportam em diferentes condições. Sabemos, por exemplo, que se pegarmos numa mola, com quanto mais força a apertamos entre as nossas mãos, com mais força ela as empurra de volta. E sabemos exatamente que força é que ela exerce, consoante a força que lhe aplicamos. E sabemos prevê-la exatamente porque há uma equação constitutiva que descreve essa relação de forças: a Lei de Hooke.

As estratégias que existem de estimulação cerebral têm imensa variabilidade de resultados. Têm muito potencial, mas não estão a avançar, ou avançam muito devagarinho, exactamente porque não se compreende como é que o cérebro reage a estímulos. Porque não temos estas equações”, esclarece.

Isto é o que Joana se propõe alcançar com o seu projecto “BRAINSTIM: Predicting stimulation strategies to modulate interactions between brain areas” (Prever estratégias de estimulação para modular interacções entre áreas cerebrais), financiado pela Fundação “la Caixa”. Depois de ter estudado estas ondas com um tipo de resolução sem precedentes — e ter publicado um artigo sobre isso na revista Nature Communications, em fevereiro deste ano —, vai interagir com estas ondas, por agora em cérebros de ratos, para perceber em concreto como é que elas se comportam perante diferentes estímulos, tentando definir as regras que preveem o seu comportamento. A ideia é conseguir melhorar a eficácia das estratégias de estimulação cerebral existentes ou desenvolver novas estratégias.

Joana Cabral vai recorrer a uma técnica inovadora chamada Estimulação de Interferência Temporal Transcraniana, desenvolvida no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT)  em 2017, que é uma estimulação cerebral profunda não invasiva. A técnica junta o melhor de dois mundos: consegue atingir áreas profundas do cérebro, como a Estimulação Cerebral Profunda, mas de forma não invasiva, porque não é necessário implantar elétrodos no cérebro — com os muitos efeitos secundários que isso pode ter. “Acredito no potencial desta técnica, e já tenho o equipamento todo montado, mas, mais uma vez, há muito por explorar e compreender. Se não funcionar, vou ter que encontrar alternativas.”, explica a cientista.

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Ao mesmo tempo que interage com as ondas cerebrais através desta técnica inovadora, fará a monitorização do impacto — ou seja, do comportamento das ondas em resposta ao estímulo — através de ressonância magnética funcional ultra-rápida. A ideia é saber como e quando “empurrar o baloiço”, compara Joana. “Agora enviamos os impulsos um bocado às cegas, aquilo que eu quero é definir um modelo preditivo: perante uma pessoa com um padrão alterado, o algoritmo diz qual é a melhor estratégia em termos da frequência, da localização e da intensidade dos pulsos, para reverter a alteração.”

De Alcácer para o mundo

Da janela do escritório, Joana vê um ninho de cegonhas. O atelier e oficina do marido, o marceneiro e designer Mircea Anghel, é do outro lado da rua. No ancoradouro junto à casa senhorial que restauraram, na Herdade da Barrosinha, em Alcácer do Sal, há também um pequeno barco que usam para passeios no rio Sado.

Mudaram-se de Lisboa em plena pandemia e, hoje, sempre que alguém lhe pergunta quando é que sai dali para se mudar de novo para uma cidade, ri. “Não queremos sair daqui, queremos fazer o contrário: trazer para aqui gente”, garante. Já começaram a desenvolver um projeto, o Creative Habitats, que pretende isso mesmo: criar ali um habitat de criatividade, seja ela artística ou científica, para receberem pessoas de todo o mundo, que ali possam passar uma temporada para se inspirarem no sossego do campo.

Sossego e não isolamento.  Lisboa e o aeroporto ficam a apenas uma hora de caminho, o que lhes permite uma ligação rápida a qualquer parte do mundo. Mircea viaja frequentemente para exposições e vende a maioria das peças para o estrangeiro. Joana tem colaborações com vários grupos de investigação e mantém posições de cientista visitante na Fundação Champalimaud (onde as fotografias desta reportagem foram tiradas), na Universidade de Oxford (Reino Unido) e no Center for Music in the Brain (Dinamarca). “Mas com as tecnologias que existem, hoje é perfeitamente possível fazer esta escolha. Não temos de estar fisicamente nos sítios. Estou aqui, mas estou ligada e em contacto com o mundo inteiro: os meus artigos têm mais de quatro mil citações.”

Joana tem colaborações com vários grupos de investigação e mantém posições de cientista visitante na Fundação Champalimaud (onde estas fotografias foram tiradas), na Universidade de Oxford (Reino Unido) e no Center for Music in the Brain (Dinamarca)

Acredita que a vida mais calma, com mais silêncio e com mais tempo sozinha, ajudaram a criatividade a florescer. “Quando estamos muito tempo em interação acabamos por ser menos criativos. Estamos sempre a olhar para o que os outros estão a fazer e acabamos todos a fazer as mesmas coisas.” Por outro lado, nos laboratórios, que são geralmente em open space, há muito ruído, muitas interrupções. “É muito estímulo para mim, que já tenho sempre o cérebro a mil e muitas coisas na cabeça.”

Uma das coisas que tem sempre na cabeça — quando pensa nos seus algoritmos, padrões e ondas — é como oferecer mais tempo de lucidez a toda a gente. A avó e a bisavó viveram lúcidas até aos 100 anos, Joana gostaria de ter isso para si e, sobretudo, gostaria de poder oferecer isso à humanidade. “Muita da perda de qualidade de vida e de autonomia que acontece na velhice não é física, é mental. Gostaria que pudéssemos todos ganhar dez ou vinte anos de lucidez.” Investe muita esperança e muito compromisso nessa possibilidade e não usa de falsas modéstias: “Acredito que posso contribuir para mudar o mundo, sim. Alguém tem de o fazer, porque não eu?”

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto de Joana Cabral, da Universidade do Minho, foi um dos selecionados para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2022 do programa de bolsas de Pós-Doutoramento Junior Leader. A investigadora recebeu trezentos mil euros por três anos. As bolsas Junior Leader apoiam a contratação de investigadores que pretendam continuar a carreira em Portugal ou Espanha nas áreas das ciências da saúde e da vida, da tecnologia, da física, da engenharia e da matemática.