A ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social deu mais detalhes, esta quarta-feira, sobre a intervenção do Ministério, que tutela a Santa Casa, no negócio de internacionalização dos jogos sociais. Ana Mendes Godinho garante que, em 2020, quando deu luz verde a esse passo, impôs como condição que os investimentos tivessem autorização da tutela, mas apenas em relação ao inicial — de constituição da sociedade — foi pedida (e dada) a autorização. O investimento na internacionalização já atingiu os 27 milhões de euros e ainda não são conhecidos lucros do negócio.
“Não me foi pedida autorização para outra intervenção ou para outra operação de investimento que não fosse esta autorização para a constituição inicial da sociedade“, afirmou Ana Mendes Godinho, durante uma audição parlamentar sobre a situação financeira da Santa Casa. Nessa altura, era Edmundo Martinho provedor da instituição, mas foi afastado este ano a meses de completar o seu mandato. Os motivos concretos e os contornos da saída não foram, na altura, conhecidos.
A ministra sublinha que, em 2020, o processo de internacionalização foi por si autorizado por reconhecer a necessidade de diversificação das fontes de financiamento da instituição. Para isso, também autorizou a constituição da sociedade Santa Casa Global. Mas colocou, num despacho desse ano, algumas condicionantes, segundo o documento a que o Observador teve acesso: que as receitas fossem “integralmente afetadas aos fins e âmbito estatutários”, que tivesse sede na UE, devendo a atividade internacional iniciar-se pela CPLP, e que “os posteriores investimentos devem ser sujeitos a autorização da tutela“.
Mas, segundo Mendes Godinho, os investimentos — aparentemente ruinosos, já que não são conhecidos lucros — não lhe passaram pelas mãos. Apenas o investimento inicial, de constituição da sociedade. Na audição anterior à da ministra, a atual provedora Ana Jorge, que substituiu Edmundo Martinho, adiantou que apenas foi pedida ao Ministério uma autorização inicial de investimento de cinco milhões de euros numa fase inicial do processo de internacionalização. Todos os outros investimentos teriam de ter autorização prévia da tutela, mas “não há evidência desses pedidos“. Segundo a provedora, o investimento da Santa Casa Global já atingiu valores na ordem dos 27 milhões de euros. Essa foi uma das “irregularidades” detetadas que levaram a nova mesa a enviar dados sobre o negócio de internacionalização à Procuradoria-Geral da República (PGR).
Auditoria à Santa Casa Global detetou “indícios de irregularidades”, que provedora já enviou à PGR
“Não tive indícios de outras informações que não me tivesse sido colocadas à autorização. Sempre que houve situações relativamente às quais considerei que deveria haver esclarecimento, agi de imediato para que isso fosse feito”, assegurou a ministra Ana Mendes Godinho. A provedora Ana Jorge também disse, na sua audição, que “muito” do que a nova gestão encontrou no negócio de internacionalização “a senhora ministra desconhecia“.
A 9 de junho de 2020, o gabinete da ministra deu parecer positivo ao negócio de internacionalização mas alertou que “a criação desta sociedade apenas se mostrará adequada à prossecução das atribuições da SCML se for gerida com a devida cautela técnica, jurídica e financeira e se as receitas que obtiver forem integralmente afetas aos seus fins estatutários e no âmbito de atuação definidos nos Estatutos”. E sublinhava que as entidades com quem a Santa Casa Global viesse a estabelecer “qualquer tipo de relação ou parceria” teriam de ser “considerada idóneas”.
“Atentos o histórico e a missão da SCML, e de forma a assegurar total transparência nas parcerias que venham a desenvolver, parece-nos essencial que as mesmas o sejam feitas com entidades com idoneidade e sujeitas a normas internacionais que garantam transparência nas informações relativas à propriedade, nomeadamente no que diz respeito à identificação dos beneficiários efetivos”, lê-se no documento.
Ministra pediu auditoria depois de Ana Jorge ter transmitido “preocupações” com negócio da internacionalização
Ana Mendes Godinho voltou a referir que, mal a nova mesa iniciou funções, pediu uma “avaliação estrutural da situação financeira” da Santa Casa. Na sequência desse pedido, a provedora “transmitiu-me ter identificado preocupações com a situação sócio-económica com especial relevância no processo de internacionalização conduzido pela Santa Casa Global”. No decurso do processo de avaliação da evolução da despesa, foi “detetada uma irregularidade administrativa e financeira relativa à autorização de saldos por parte das Finanças”, adiantou ainda.
Face a essas preocupações, determinou, por despacho, que a instituição desencadeasse uma auditoria externa e independente, assim como uma reavaliação das contas de 2021 e 2022 para “incluir factos novos que viesse a ser apurados na sequência da auditoria”. Além disso, incubiu a Santa Casa de desencadear os procedimentos “necessários” perante os factos que entretanto surgisse — como acabou por acontecer, com a nova mesa a remeter para a PGR as conclusões preliminares da auditoria externa forense.
A avaliação externa está em curso — segundo a provedora, que foi ouvida antes da ministra, foram já detetadas “irregularidades” — e é de “extrema importância para o cabal esclarecimento de toda a situação”, permitindo uma reavaliação da “viabilidade económico-financeira das operações realizadas no âmbito da internacionalização do jogo”, acrescentou a ministra.
Ana Mendes Godinho sublinha que considerou fundamental uma “avaliação estrutural da situação financeira”, apesar de o conselho de auditoria da própria Santa Casa ter emitido pareceres favoráveis aos relatórios de gestão e os auditores externos terem emitido pareceres sem reservas. Garante que agiu sempre que teve informação que o motivasse. Por exemplo, no despacho de aprovação do relatório e contas de 2020, solicitou à Santa Casa uma “avaliação do nível de despesas, investimentos e receitas previsíveis, de forma a reforçar a sustentabilidade das suas contas”.
Também no despacho em que aprovou o plano de atividades e orçamento para 2021, previa que “a assunção de novas responsabilidades e o aumento de recursos humanos devia estar sempre condicionada à avaliação da sustentabilidade financeira“. “Portanto, salientando orientações claras na esfera daquilo que são as orientações que a tutela que tenho permite ter no âmbito desta missão, naturalmente respeitando sempre a autonomia da organização”, frisou a ministra, no Parlamento.
Para 2024, Ana Mendes Godinho assegura que a Santa Casa apresentou um orçamento que “garante o equilíbrio e a sustentabilidade financeira” da instituição.
A ministra do Trabalho esteve, esta quarta-feira, a ser ouvida no Parlamento a requerimento dos grupos parlamentares do PSD e do Chega, sobre a situação financeira da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. A deputada social-democrata Clara Marques Mendes acusou a tutela de falhar na “competência de fiscalizar a instituição”. “Acha normal que o Governo, que tem a tutela de uma instituição como esta, esteja dois anos sem fazer nada, não tome nenhuma decisão e deixe a instituição caminhar para uma situação mais gravosa em termos financeiros?”, questionou. Já Jorge Galveias, do Chega, pediu “respostas claras e inequívocas sobre os problemas encontrados” e as soluções que o ministério está a tomar.
Mendes Godinho voltou a sublinhar, tal como tinha feito na audição parlamentar de abril, como a Santa Casa foi fortemente afetada pela pandemia, com um aumento das despesas no que toca ao apoio aos mais vulneráveis, e descida das receitas, sobretudo por via dos jogos sociais. Depois de dois anos de prejuízos, em 2022 voltou aos lucros, apesar da redução superior a 14% das receitas, “em grande parte” pela diminuição das receitas dos jogos — que, ainda assim, estão a recuperar (lentamente) da pandemia.
PS adia votação do pedido do PSD para ouvir ex-provedor e vice
A comissão de Trabalho, Segurança Social e Inclusão ia votar o requerimento do PSD para uma audição urgente ao ex-provedor da Santa Casa, Edmundo Martinho, assim como ao ex-vice-provedor, João Pedro Correia, e à anterior administradora Filipa Klut. Mas o PS pediu o adiamento da votação para a próxima semana, alegando o deputado Tiago Barbosa Ribeiro que essa figura regimental já foi pedida em “inúmeras ocasiões por diversos partidos”.
O PSD não gostou e pediu uma pausa de 15 minutos nos trabalhos para que o PS procedesse a uma “reflexão”. Mas ao fim desse tempo, a posição dos socialistas manteve-se. O deputado social-democrata Nuno Carvalho considerou que perante os dados divulgados esta quarta-feira tanto pela provedora da Santa Casa como pela ministra Ana Mendes Godinho — que, inclusive, apontam para sujeitas de irregularidades durante a anterior gestão — seria urgente ouvir os antigos gestores.
A audição foi pedida para esclarecer “os factos e acontecimentos que deram origem à atual situação problemática da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa”.