Pela primeira vez, Filipe Sambado construiu um álbum do zero. Não havia esboços, linhas melódicas ou ideias à partida quando se propôs a criar Três Anos de Escorpião em Touro, o disco que é lançado esta sexta-feira, 29 de setembro, e que é o quarto longa duração da sua carreira. Já se conheciam os singles Mau Olhado, Talha Dourada, Choro da Rouca, Laranjas/Gajos e Entre os Dedos das Mãos.
Depois de se ter apresentado oficialmente com Vida Salgada (2016) e de ter feito um disco mais “funcional” em Filipe Sambado & Os Acompanhantes de Luxo (2018), explorou as suas vivências alentejanas e algarvias em Revezo (2020). O processo criativo foi de “exploração em estúdio” e acabou por ser um “laboratório” para o disco que agora conseguiu concretizar.
“Há muita coisa no Revezo que pode ter ficado a meio caminho daquilo que fiz neste disco. Sendo que este acaba por também explorar outras coisas”, explica ao Observador. O novo álbum foi construído em plena pandemia. Aliás, Revezo não teve a vida habitual de um disco precisamente por causa dos confinamentos e do cancelamento dos espetáculos. Filipe Sambado só deu alguns concertos no início de 2020 antes de o mundo se fechar em casa.
[o vídeo de “Entre os Dedos das Mãos”:]
Quando deu por si na mesma situação, foi fazendo “experiências” e deixando “as coisas fluírem”. “Não estava com muita vontade de sentir a pressão de estar a fazer um disco. Os álbuns têm prazos de validade e isso pode ser uma coisa altamente sufocante, ainda para mais pela questão de não poder ter concertos por estarmos num confinamento… O que é que vou fazer por subsistência?”
Seja como for, Sambado não queria sentir a “urgência” de lançar música nova. O processo durou cerca de um ano e meio em casa, mais um ano em estúdio. A escrita e a composição, a base do disco, foram notoriamente influenciadas pelos confinamentos e pelo “confronto pessoal” que a situação motivou.
“Acabou por ser muito íntimo. No disco há um lado depressivo, de desistência… Por um lado, havia um enamoramento pela casa, mas por outro existia uma ansiedade muito grande por as coisas não estarem a acontecer. E depois nasce a minha filha e as coisas são muito bonitas mas ainda se tornam mais ansiosas e sufocantes, porque era preciso conseguir criar estabilidade para que tudo funcionasse. Há uma data de coisas às quais tive de me agarrar e foi stressante. Houve muitos assuntos para falar.”
O processo de construção do disco coincidiu também com a reafirmação de género de Filipe Sambado, que se assumiu como pessoa não-binária, tema presente ao longo de Três Anos de Escorpião em Touro. Não houve qualquer rompimento com o passado, mas antes uma evolução que já se vinha a refletir na sua música.
“Todos os meus discos correm muito numa pesquisa de identidade e centram-se num confronto entre a minha e outras identidades. Tem sempre muito a ver com o espaço que ocupo quando uso outros lugares de fala, no sentido de englobar o máximo de siglas possível. E isso teve sempre a ver com esta coisa muito pessoal de pesquisa. O que acontece agora de diferente é que há uma reafirmação de género e as coisas ficam um bocado mais claras: muitas das questões que coloco ao longo dos outros discos aqui ficam mais claras por ganharem um nome.”
O álbum, que contém em si uma ampla diversidade de sons e estados de espírito, é descrito por Filipe Sambado como hyperpop — ou seja, música pop com elementos hiperbolizados, como melodias abrasivas, sons distorcidos e comprimidos, vozes modificadas que nos envolvem num universo sonoro muito próprio, onde tanto cabe a alegria como a destruição, a serenidade e a violência.
“Gosto de me aceitar como incoerente na composição. Mas, neste disco, essa incoerência passa a viver na multiplicidade de um ser só. E acho que isso corre bastante bem. Também se deve ao facto de eu ter percebido melhor a própria hyperpop, que traz consigo esta linguagem tão diversa. É um género com tantas coisas diferentes e foi também um sítio onde me soube encaixar, da mesma forma que procurei muito um lado geográfico no Revezo. Aqui há um lado linguístico. Acho que também encontro uma pertença geográfica num espetro linguístico que esta música hyperpop me pode ajudar a enquadrar e a definir.”
[o vídeo de “Talha Dourada”:]
Ao mesmo tempo que acontece uma “afirmação de género”, existe uma “afirmação linguística musical”. “Aceito um bocado esta loucura toda que preciso de ter num disco. Ter, no mesmo segmento, algo super destrutivo e depois imitar um Minion numa música ou de repente precisar de fazer uma coisa muito triste, quase apocalíptica. Isso para mim é importante porque a maneira como oiço música também é assim”, diz, apontando referências hyperpop como Dorian Electra ou 100 gecs.
Além disso, como foi construído do zero a pensar neste formato, este álbum é mais coeso e “menos disperso”:
“Não é tanto um conjunto de singles. Nos discos anteriores preocupei-me sempre muito em fazer as melhores canções possíveis, e depois em tentar fazer o melhor alinhamento com elas. Aqui, à medida que elas estavam a ser feitas, já estava a pensar na ordem e em como o início ou o fim devia ser mais assim porque vai coincidir melhor com a outra. Se calhar não vamos fazer um arranjo para que seja um single super impactante, mas a pensar no tempo do disco em que ela vai aparecer. E isso tudo é engraçado, porque é quase pensar num disco como se estivesses a montar um concerto, em que pensas em novas roupagens para as canções pelo sítio onde vão aparecer.”
Numa altura em que os singles têm conquistado preponderância, e em que o público escuta mais playlists do que álbuns, Filipe Sambado quis focar-se num disco como um “objeto intacto”. “Se estamos a enobrecer tanto o formato do single, então deve-se recuar e fazer discos pensados que não sejam meros conjuntos de singles.”
[o vídeo de “Mau Olhado”:]
Embora, quando olha para o futuro, queira focar-se precisamente nos temas soltos, que tenham uma vida própria. “Acho que é muito funcional e quero mesmo exercitá-lo agora. A seguir a isto, vou querer trabalhar singles. Acho que estamos nesse período e não me faz sentido olhar para as coisas de outra forma. É o tipo de consumo que há. Os discos são marcos de períodos, mas as canções é que se consagram na memória das pessoas. E é importante pensarmos no impacto que o objeto-canção tem.”
Pode Três Anos de Escorpião em Touro ser o disco que irá de algum modo fazer o seu projeto atingir um novo patamar no panorama musical nacional? Filipe Sambado sublinha que o único salto que gostaria de dar, de forma a levar uma vida mais “tranquila e estável”, seria o “económico”. “De resto, não faço questão de dar nenhum salto. Mas sei que as coisas estão intrinsecamente ligadas. É preciso dar o salto mediático para dar o económico. Agora, não sei como é dar concertos para muita gente porque não me aconteceu vezes o suficiente para me recordar. Estou ainda naquela fase em que sinto que conheço os meus fãs quase todos. As pessoas aparecem e eu ainda me lembro das caras ou dos nomes no Instagram.” Independentemente do tamanho dos palcos no futuro, certo é que o novo disco será apresentado a 16 de novembro no Lux Frágil, em Lisboa; e a 23 de novembro no Auditório CCOP, no Porto.