Era uma vez um menino que não era brilhante na escola, que podia contar os amigos pelos dedos de uma mão, mas cujos olhos se iluminavam quando, em cada Natal, recebia um equipamento do Manchester United. Mais um e mais um e mais um. Em casa dos Beckham, respirava-se futebol de manhã à noite, de 1 de janeiro a 31 de dezembro. O pai, David (mais conhecido como Ted), era obcecado pelo United e sonhava ver o filho jogar no clube inglês. Mesmo que quisesse, David Beckham não teria tido outra opção. Os 30 mil livres que treinava diariamente indicavam apenas uma direção.
“Beckham”, a nova série documental da Netflix divide-se em quatro partes e conta (para quem não a conhece) ou refresca a memória (para quem acompanhou a carreira) sobre o percurso de um dos mais adorados e odiados futebolistas ingleses de sempre. Porque ele teve de tudo: foi o Deus e o Diabo, abraçado e cuspido na rua. Como é que um miúdo de 20 e poucos anos foi tão achincalhado publicamente e conseguia, mesmo assim, chegar ao campo e marcar ou ter a capacidade de virar um jogo parece um feito quase sobrehumano.
Encontramos David Beckham, 47 anos, vestido com um fato-macaco branco a encaminhar-se para as suas colmeias no meio de um terreno verde que parece não ter fim à vista. É aqui, nesta casa (mansão?) de campo que decorrem as entrevistas incluídas no projeto de Fisher Stevens. Alguém se lembra do subserviente Hugo de “Succession”, capaz de beijar os pés a quem estivesse no poder naquele segundo? É ele mesmo o realizador. Porém, não se deixem condicionar pelo ator. No currículo de realização tem Bright Lights: com Carrie Fisher e Debbie Reynolds e também ficção, como Dear Edward ou Palmer. Aqui, ouvimo-lo de vez em quando a fazer perguntas ou a treinar um difícil “encantado” enquanto se prepara para conhecer Florentino Pérez, presidente do Real Madrid. A opção, pouco comum, funciona e confere uma certa leveza e informalidade a alguns momentos.
[o trailer de “Beckham”:]
Somos metidos numa cápsula do tempo e seguimos a toda a velocidade até aos frenéticos anos 90. Mais precisamente até agosto de 1996, quando David Beckham marca um golo inacreditável da linha de meio campo. Por essa altura já era um menino da casa: conhecera Alex Ferguson aos 12 anos, estava no United desde os 15 e fizera o primeiro jogo aos 17. Começava a ser um fenómeno fora do campo — e gostava de dar nas vistas. Era o típico “chapa ganha, chapa gasta”: se faturasse 50 mil libras num contrato publicitário, gastava esse mesmo valor num carro.
Alex Ferguson, uma figura paternal inquestionável (foi o mesmo para Cristiano Ronaldo), nunca gostou que os seus jogadores se desviassem das linhas e tudo piorou quando entrou em cena Victoria Adams. Com ela trazia a bagagem Spice Girls, cultura pop, festas, famosos, paparazzi e uma curiosidade doentia dos tabloides elevada ao dobro quando se descobriu que David Beckham e ela eram um casal.
A evolução da vida e da carreira vai sendo contada pela ordem cronológica que aconteceu, com os olhos de Beckham a brilharem quando recorda os primeiros encontros com a mulher e os colegas de equipa a contarem que ele era “capaz de conduzir quatro horas para estar 20 minutos com ela”.
Victoria Beckham mostra-se mais disponível para falar do que podíamos esperar — talvez influenciados pelo rótulo de “vilã” que a própria reconhece sempre ter tido na história de ambos. Quando a mudança de Manchester para Madrid se dá num estalar de dedos claro que não fica contente, quando se instala em Los Angeles e de repente o marido quer ir jogar para Itália claro que não fica contente. Quando ele lhe diz que o parto do terceiro filho não pode ser num determinado dia porque ele tem uma sessão fotográfica com Beyoncé e Jennifer Lopez, claro que não fica contente. Reconhece o ressentimento e as fases difíceis e, por seu lado, David Beckham caracteriza-se como “egoísta” em muitos momentos em que colocou o futebol acima do resto. Podíamos estar perante terapia de casal, embora sejam entrevistados individualmente, mas o que temos em Beckham são duas pessoas juntas há quase 30 anos que passaram por uma data de obstáculos, que sobreviveram e que chegaram finalmente a uma fase de tranquilidade. Também se fala das alegadas infidelidades do jogador que encheram páginas de jornais, sim, mas no final aquilo que sabíamos é o que continuamos a saber. E se calhar é melhor assim.
A série documental mergulha q.b. na intimidade dos seus protagonistas — Beckham passa os sábados a fazer grelhados e é obcecado com arrumação e limpeza, sobretudo no que toca a pavios de velas —, mas o que torna os quatro episódios empolgantes é o desfile de grandes nomes, alguns que aparecem apenas durante breves segundos — sabe-se lá como alguém conseguiu que Anna Wintour, a editora mais famosa da Vogue, arranjasse espaço na agenda para se sentar e dar uma entrevista, quando o que fica dela é que a filha “adorava a Posh e o Becks”.
Estão lá Eric Cantona, Gary Neville, Luís Figo, Ronaldo, Roberto Carlos, Fabio Capello e até Diego Simeone, o argentino que protagonizou com Beckham a falta que valeu o famoso cartão vermelho no Mundial de 1998 que mandou o inglês para a rua e fez dele a figura mais odiada e mal-tratada do país.
“Naquela altura a saúde mental não era falada”, comenta Rio Ferdinand, outro dos futebolistas entrevistados, que elogia a força de caráter de David Beckham para ter aguentado todos os abusos.
O depoimento mais comovente talvez seja o de Alex Ferguson, um pai que acabaria por colocar o filho fora de casa quando o ponto de rutura era evidente. “Ainda bem que não consegui [falar com ele naquele momento], acho que teria ficado de coração partido”, confessa Beckham. Ferguson recorda os vários acontecimentos de forma apaziguada; Beckham, como um filho (ainda) ainda magoado, nem sempre.
Do Manchester United para o Real Madrid, onde reencontrou Carlos Queiroz, o adjunto de Ferguson de quem nunca gostou; de Madrid para os LA Galaxy, uma manobra que no mundo do futebol nunca se compreendeu. AC Milan, PSG e a loucura de criar um clube com balizas rosa, o Inter Miami CF. As escolhas do britânico sempre foram polémicas, e nem sempre acertadas, mas se esses momentos fizeram esquecer o que ele era dentro das quatro linhas, esta série documental faz um ótimo trabalho a reavivar-nos a memória.
Os livres, os minutos em que virou os jogos e os decidiu (como na final da Liga dos Campeões, em 1999, contra o Bayern), quando saltou do banco de suplentes (sempre castigado pelas suas escolhas) para tirar o Real Madrid da amargura e fazer dele campeão, quando chegou a Los Angeles e percebeu que ali ninguém sabia realmente jogar à bola e, mesmo assim, brilhou. O delírio que ele provocou sempre andou de mãos dadas com o ódio. Duas décadas passadas, a amargura que alguns desses momentos lhe provocaram parece não estar totalmente ultrapassada — e, como diz um dos amigos, provavelmente nunca estará. Nem com o mel mais doce que ele próprio conseguir produzir.