“De olhos vendados, pus um dedo ao calhas num mapa e caiu em cima de Lisboa.” Foi assim que Madonna recordou como, há sete anos, escolheu a capital portuguesa para viver. “Não foi fácil”, lembrou esta segunda-feira à noite no palco do Altice Arena, no primeiro de dois concertos em Portugal. “Pouco a pouco, encontrei a minha tribo. Foi o que aconteceu em Nova Iorque, foi o que aconteceu em Lisboa. Descobri outros artistas: músicos, cantores, pintores, dançarinos. Quando tal aconteceu, senti-me em casa, [senti que] não estava sozinha. Por isso, obrigado”, concluiu.

Lisboa é apenas um dos capítulos que compõem a história de Madonna, um dos que a cantora quis recordar na Celebration Tour, a digressão comemorativa dos 40 anos de carreira que esta semana passa pela capital portuguesa. Madonna teve saudades, admite. Por isso voltou, há três meses, para celebrar o seu aniversário. Por isso fugiu, esta segunda-feira, ao alinhamento habitual para emprestar a sua voz a um excerto de Sodade, de Cesária Évora.

Acompanhada pelo filho David Banda, à guitarra, honrou o património musical de Cabo Verde, que conheceu em parte graças à colaboração com as Batukadeiras — que resultou na canção Batuka, do álbum Madame X — ou a amizade com Dino D’Santiago. “Lisboa, és tão importante na minha história”, rematou. “Tenho sempre saudades.”

À parte essa fuga ao guião, o séquito aguerrido de Madonna já sabia bem o que o esperava. Afinal, o alinhamento é fixo desde a noite de estreia da digressão, a 14 de outubro, na O2 Arena, em Londres. Nothing Really Matters precipitou uma noite de reencontros e de marcos históricos, com coreografias perfeitamente orquestradas, fogo, luz, ringues de boxe e uma Madonna aos 65 anos numa boa-forma surpreendente, afastando os resquícios de um susto de saúde que obrigou ao adiamento da tour. Não há tempo para palmas, cada segundo é necessário para contar a história daquela que é uma das mulheres mais bem-sucedidas da história da música popular.

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A impaciência com o atraso de uma hora e meia (que tem sido habitual em todas as datas da digressão) pareceu esfumar-se rapidamente para quem ali estava para ver o espetáculo. Porque é disso que se trata: mais do que um concerto, é um momento multidisciplinar no palco. “Isto não é só um show, um concerto, uma festa. É uma celebração”, escutou-se pela voz de Bob the Drag Queen, mestre de cerimónias. Afinal, como canta a própria: “Bitch I’m Madonna” e poucos terão um sentido de espectáculo tão apurado.

Durante duas horas, foi como ver videoclipes feitos no palco. Cada canção tem direito a interlúdio, ora uma performance de exímios bailarinos, uma peripécia que uma bem-humorada Madonna reconta, um elemento visual que acrescenta à narrativa. Cada acrescento parece justificar o preço exorbitante do bilhete — dos mais caros de sempre em Portugal. Com mais ou menos fogo de artifício (quase sempre mais), a biografia de Madonna Louise Ciccone, de Queens à escala planetária, esboça-se ininterruptamente. É a inescapável lei de um showbiz oleado até à mais pequena engrenagem.

Do icónico corpete de Gaultier a looks de boxe e “cowgirl”. As roupas que Madonna vai usar no seu espectáculo

Quem foi em busca de êxitos saiu do Altice Arena de barriga cheia. No compêndio de quase 30 canções, num concerto dividido em sete atos, houve tempo para Human Nature, La Isla Bonita, Don’t Cry for Me Argentina ou Vogue. Ficarão sempre favoritos de alguns de fora, é o preço a pagar por uma discografia tão longa.

Os momentos altos da noite acabariam por ser provocados por Like a Prayer, com uma Madonna rodeada de símbolos religiosos e indumentária condizente, e Hung Up, com direito a ovação geral. Faltou apenas vontade de dançar — e nem a eletrizante Ray of Light foi capaz de tirar os pés do público do chão (ou as mãos dos telemóveis), que se dividia sobretudo entre o deslumbre, a admiração ou a curiosidade para perceber o que ia acontecer a seguir. E a seguir. E depois ainda.

“Este concerto é a história da minha vida. Conto-a com música, dança, moda”, atira Madonna a dada altura. Entre os looks da diva, que trocou várias vezes de coordenado, destaca-se um corpete de Jean Paul Gaultier, que fez uma reinterpretação do icónico corpete com cones da Blonde Ambition Tour de 1990. Pelo facto de o designer se encontrar em Lisboa — a propósito do seu espetáculo musical — houve quem sonhasse com um encontro em palco, mas tal não aconteceu.

“Conto histórias sobre vida e morte, felicidade, tristeza, desespero e redenção”, diz entretanto. “Envelhecer é pecado”, sublinha ainda, sem pudores. O idadismo é assunto sério, como outros que a cantora não faz por obliterar. Se é certo que a artista esculpiu duas horas de um rigoroso teatro musical, nem por isso se demitiu de usar o espaço para falar sobre a celebração dos direitos LGBTQ+, lembrar os que morreram com SIDA (imagens de Freddy Mercury ou Robert Maplethorpe surgiram projetadas em telas gigantes), ou apelar à paz. “Com tudo o que se está a passar no mundo, a única forma de nos salvarmos é com amor, com união”, disse.

Findo o concerto, com a memória reavivada sobre como a artista revolucionou a pop desafiando os costumes e o status quo, não restam dúvidas: a rainha vive. Madonna concordará. Depois de uma série de vídeos que exemplificam como a artista foi retratada na imprensa ao longo das últimas quatro décadas, diz: “A coisa mais controversa que já fiz foi manter-me por aqui.”