Foi com as boas vindas à “gloriosa” cidade de Lisboa que Katherine Maher subiu pela primeira vez ao palco da Web Summit enquanto CEO da cimeira tecnológica. Mas não foi a sua estreia no palco principal da Altice Arena, lembrou. Essa aconteceu em 2019, enquanto oradora. Foi nesse dia, afirmou, que foi capaz de “ver verdadeiramente o impacto da Web Summit e ser inspirada” pela missão do evento.
Neste regresso com sabor a estreia, Maher não ignorou o elefante na sala: a demissão de Paddy Cosgrave, rosto único da Web Summit até há poucas semanas, devido a declarações polémicas sobre o conflito entre Israel e o Hamas. “Quero falar do que aconteceu. Devemos isso a toda a gente que está aqui, porque vocês vieram a este evento porque adoram a Web Summit e esta comunidade tem importância para vocês”, começou por notar.
Também o devo a todos os que decidiram não vir, porque apesar de não estarem cá, têm sentimentos tão fortes em relação à Web Summit que o que nós dizemos e fazemos tem importância”. E se conheciam Paddy Cosgrave, continuou, “sabem que ele sempre foi desbocado [tradução livre da palavra outspoken], no palco e online”.
Foi online que, há um mês, Paddy Cosgrave escreveu na rede social X (antigo Twitter) sobre o conflito em Israel e na Palestina. “O Paddy será o primeiro a admitir que os seus tweets foram divisivos e magoaram pessoas, incluindo aquelas que se consideravam como parte desta comunidade”. Depois disso, relembrou Katherine Maher, Cosgrave “pediu desculpa e demitiu-se”.
Para a empresária norte-americana, que chegou a liderar a Wikipédia, foi importante destacar que “todos têm o direito a expressar-se acerca do que está a acontecer no mundo”, ainda que seja necessário “considerar o peso das palavras”, uma ideia que foi bastante aplaudida pelos presentes na Altice Arena — algo que a CEO agradeceu. “Se não tivéssemos liberdade de expressão e direito para debater, os nossos palcos da Web Summit estariam vazios de ideias, desafios e mudança.”
Após “reafirmar o direito à liberdade de expressão” e pedir que os debates que serão feitos na Web Summit decorram de forma “respeitadora”, mesmo nas conversas “mais difíceis”, a nova CEO deixou uma garantia: a cimeira tecnológica continuará a “ser um dos locais mais importantes para unir e conectar as pessoas”.
Durante o discurso, que durou pouco menos de 15 minutos, existiu ainda tempo para repetir uma ideia que já tinha expressado quando foi anunciada como a nova CEO: a Web Summit deve ser um espaço para conversas e não “o centro delas”.
Para finalizar a intervenção, Katherine Maher antecipou que, ao longo dos próximos dias, os palcos da Web Summit vão receber vários oradores para falar, por exemplo, acerca de como a inteligência artificial pode ser “utilizada para criar acesso à educação, medicina e ajuda humanitária” e levar a população para um “futuro mais conectado, próspero e sustentável”.
Além da nova CEO, a cerimónia de abertura da Web Summit — que começa esta segunda-feira e decorre até à próxima quinta-feira, dia 16 — contou ainda com a participação do fundador da Wikipédia, Jimmy Wales, do presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, do ministro da Economia e do Mar, António Costa Silva, do CEO da startup Unbabel, Vasco Pedro, e da investidora da Indico Capital Partners, Cristina Fonseca.
Minutos antes da entrada em palco de Jimmy Wales, “amigo” e antigo colega de Katherine Maher, os portugueses Cristina Fonseca e Vasco Pedro conversaram acerca do papel e da importância da inteligência artificial. O CEO e cofundador da Unbabel afirmou que “é importante fazer o esforço para regular” esse tipo de tecnologia. Ainda assim, reconheceu que “o desafio é que os sistemas políticos são lentos a regular e a inteligência artificial está a avançar rapidamente”. Por sua vez, a sócia da Indico Capital Partners disse que “este é o momento de investir em inteligência artificial”, sendo que acredita que existem várias empresas que estão a “desenvolver modelos muito poderosos”.
Terminada a intervenção dos dois empreendedores portugueses, foi a vez de o fundador da Wikipédia subir ao palco para defender que, embora o potencial da inteligência artificial seja vasto, será sempre necessária a existência de uma enciclopédia com intervenção humana, como a Wikipédia, como fonte credível de informação. Por isso, no entender de Jimmy Wales, o modelo que alimenta o ChatGPT ainda não é “suficientemente bom” e está “longe de ser uma fonte confiável”.
Para sustentar o seu ponto de vista deu um exemplo concreto, com que, admitiu, se “diverte”. Se recorrer ao ChatGPT para perguntar com quem a sua mulher, Kate Garvey, que foi assessora do primeiro-ministro britânico Tony Blair, é casada, a resposta nunca é a correta. “É uma pessoa diferente todos os dias”, nomeadamente antigos colegas de trabalho.
É o tipo de coisas sem sentido que estão no ChatGPT”, afirmou, embora tenha acrescentado que este “tem vindo a melhorar e continuará a melhorar”.
Considerando que os modelos de inteligência artificial vão demorar a aprender a não escrever “coisas sem sentido”, falou também sobre o facto de utilizarem dados da Wikipédia. Embora se tenha mostrado “feliz e orgulhoso” com esse facto, afirmou que a plataforma gostaria que os ‘créditos’ fossem devidamente atribuídos, explicando que o Google os “cita” e coloca os links dos seus artigos na pesquisa dos utilizadores.
Este ano, a organização da Web Summit estima que estarão presentes nos quatro dias de evento mais de 70 mil participantes, 2.600 startups (um número recorde) e 900 investidores, numa edição que fica, desde logo (mesmo ainda antes de começar), marcada pela demissão de Paddy Cosgrave após comentários nas redes sociais sobre o conflito entre Israel e o Hamas, pelo boicote anunciado por esse país e pelo cancelamento de gigantes tecnológicas como Amazon, Google e Meta.