A permanente vontade de garantir uma certa (ou total) imortalidade passa também pela música. É quase instintivo querer descobrir algo que perdure no tempo, que apresente como resposta um redondo “sim” à pergunta “será que vou ouvir isto daqui a 5, 10 ou 20 anos?”. É uma vontade que pode servir mais para justificar uma relação com uma canção do que para assinalar uma suposta qualidade. Perante alguns desígnios elitistas, viver o momento, viver o que começa e termina num período definido, pode soar a desperdício, a vivência efémera — ou, simplesmente, a coisa demasiado pop ou demasiado indefinida (como se alguma delas fosse má).

Mas tal pensamento, que tem mais a ver com uma ideia de conforto e de resignação, foi muitas vezes contrariado pela forma como o futuro acabou por celebrar muita música. Muito rock, o punk, o pós-punk, os meses de no wave em Nova Iorque (quem diria que um período tão curto de tempo influenciaria tanto a música popular nas quatro décadas seguintes) ou até o regresso nos 2000s de todo um espírito rock dos 1970s/1980. Poderíamos continuar. O que há em comum é que muita dessa música foi criada para agarrar e viver o momento. Criar, explodir e logo se via. O resto é a história que cria.

Na atualidade, sendo o presente o ano de 2023, os Model/Actriz, através do álbum Dogsbody, sentem-se como a banda que vive mais o momento. É um grupo que obriga a que se exista com eles agora, já, para se sentir no pelo a pura energia de viver. Seja essa energia repetida no pulsar do baixo que tanto instiga a algo violento como carnal, ou na voz de Cole Haden e na forma como conta histórias carregadas de sexo ou, em simultâneo, das mais corriqueiras experiências e atividades e de como elas tomam conta de nós, do que fazemos e daquilo que somos. Sente-se como um disco do momento, com o nível de explosão para se experienciar ao vivo num pós-pandemia e com a carga emocional para deixar qualquer um física e psicologicamente estoirado.

[o vídeo de “Crossing Guard”:]

Parte da razão que nos leva a ouvir Dogsbody (que foi produzido por Seth Manchester — Lingua Ignora, Body, Battles, etc) como um disco com tanta vontade de existir pode ter a ver com a nostalgia, tão física como emocional. Uma espécie de saudade de viver as coisas de determinada maneira. E os Model/Actriz cresceram no sítio certo e lançaram o primeiro álbum no momento certo para que tudo isso se concretize. Além disso: fizeram-no na cidade certa.

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Com as canções de Dogsbody estamos em Brooklyn, Nova Iorque. Embora Boston seja o berço deste quarteto formado por Cole Haden (voz), Jack Wetmore (guitarra), Ruben Radlauer (bateria) e Aaron Shapiro (baixo), esta rapaziada mudou-se para Nova Iorque para fazer valer a sua energia na cidade onde este tipo de música é historicamente conhecida por acontecer e fazer acontecer. Foram criando um perfil ao longo de vários anos e seguiram o código das bandas norte-americanas de rock: tocaram, tocaram e tocaram. Nada podia ser mais acertado, até porque este tipo de energia é, em boa parte, gerada pelo palco para ser usada nesse mesmo palco.

[o álbum “Dogsbody”, na íntegra no Spotify:]

Assim acontece e assim se repete em Nova Iorque com frequência. Seja no já mencionado no wave no final dos 1970 ou através daquela ideia romântica de renascimento do rock nos 2000s. A energia não é só energia, aqui conta também o fator transformador, de como certas bandas agarram num conceito e o adaptam de acordo com os seus propósitos. A estrutura dos Model/Actriz é feita à base de rock, mas quando tocam essa ideia de rock há outra coisa qualquer que surge, nervosa, tensa, quase apocalíptica, sem tempo. Há música que começa com vontade de nascer e morrer no imediato, como se essa explosão fosse a única coisa que importasse, sem nada pelo meio a ocupar tempo desnecessário. A música dos Model/Actriz é assim.

Na canção de abertura de Dogsbody, Donkey Show, quando ouvimos Cole Haden cantar “All Night / Me and my electric device”, ele sussurra, declama estas palavras com uma carga sexual extraordinária, não como se fosse um ser híbrido a coexistir com a tecnologia, mas com o inevitável desamparo da apatia dos dias. Este marasmo e a falta de relação com as pessoas, com a cidade e com os espaços, é recorrente. Só que acontece sem miséria, sem deceção. Pelo contrário, acontece até em tom de glorificação. E, sim, como aceitação, rotina, resignação para com a forma de existir. E é essa forma de existir que é celebrada em Dogsbody, um conformismo ao qual é preciso dar espaço e oxigénio, para que haja ignição, combustão e uma imediata explosão criativa, quase autofágica. O aborrecimento de existir levado ao extremo, como forma de lhe dar a volta, de acabar com o presente. Daí a vontade de nascer e morrer.

[o vídeo de “Mosquito”:]

Dogsbody ouve-se como um disco geracional. Daí o agora, o 2023. E os Model/Actriz sentem-se como uma banda que vocaliza a essência de uma ideia de mundo a ruir, mesmo que essa ideia só exista para alguns: o punk dos Sex Pistols também era para uns quantos, para aqueles que acreditavam que aquele presente estava mau; a história e o futuro é que os tornou de todos. Por isso, esta passagem dos Model/Actriz pela Zé dos Bois, com primeira parte dos Dove Armitage nas duas datas (20 e 21 de novembro), chega no momento certo e chega com a velocidade exigida a este tipo de música: eles são aqui e agora, amanhã não saberemos o que são, se terão a mesmo velocidade para existir e processar o que está a acontecer. Para trás ficaram vários concertos na Europa. Lisboa é a estação terminal desta digressão europeia. E, numa banda como os Model/Actriz, os finais só podem ser particulares.

Dos concertos há relatos intensos, um forte envolvimento com o público, sobretudo do vocalista Cole Haden, com a dose de confronto que é exigida a um frontman que se coloca nesta posição e canta com a displicência de não querer ser a voz de uma geração, mas a acutilância de que talvez, para alguns, o seja. Tudo isto é exagero, tudo isto é sensação de ouvir 2023, de sentir a fúria de viver de quem está disposto a dar tudo no presente. Porque o presente acaba depressa. E, em 2023, ninguém sabe isso melhor do que os Model/Actriz. Que se goze o fim do presente com eles. Até porque tudo será diferente daqui a 5, 10 ou 20 anos.