“Por respeito pelos vivos, os nomes foram alterados. Por respeito aos mortos, o resto foi contado exatamente como se passou.”
Quando estas duas frases aparecem no ecrã, uma coisa é certa: lá vamos nós outra vez para uma história em que a violência, os banhos de sangue e o humor negro são requisito obrigatório. Após uma pausa de mais de três anos e uma temporada não tão brilhante quanto as anteriores (sobretudo as duas primeiras), Fargo regressa com uma nova narrativa que se estreia no TV Cine Edition esta quarta-feira, 29 de novembro, às 22h10.
A julgar pelos dois primeiros episódios, escritos e realizados pelo criador da antologia, Noah Hawley, todas as características que fizeram deste projeto um sucesso foram recuperadas.
Estamos em 2019, no Minnesota, EUA, onde uma supostamente inofensiva reunião sobre um festival escolar se transforma numa batalha campal da qual uma mãe e uma filha querem escapar antes de serem levadas pela embrulhada. Só que a mãe, Dot Lyon (Juno Temple), é um pouco exagerada e acha que a situação exige o uso de um taser. Problema: usa-o num polícia e acaba detida, com fotos tiradas e impressões digitais registadas. Ela, com voz aguda, sotaque cerrado e ar de tonta é, contra todas as expetativas, muito mais do que uma dona de casa enfadonha. O facto de os seus dados darem entrada no sistema fazem soar alarmes num local que pertence ao seu passado — e ao qual ela, obviamente, não quer regressar.
Começa então a já habitual bola de neve de Fargo, que deixa mortos e desfigurados pelo caminho e envolve desgraçados que nada têm a ver com o assunto. Estão simplesmente no local errado à hora errada.
[o trailer da quinta temporada de “Fargo”:]
https://www.youtube.com/watch?v=6SCn6UDXw_I
Dois capangas são recrutados para raptar Dot e levá-la de volta ao seu passado. Um deve ter uns dois metros e porte de armário, veste saia e tem um ar assustador. O outro parece só um totó que tanto podia estar ali no mundo do crime como a grelhar hambúrgueres no McDonald’s. A dada altura, ferido, diz ao parceiro: “Leva-me ao veterinário”. Questionado sobre a razão do seu pedido, responde: “Não é isso que fazem nos filmes?”
A escrita é sarcástica e as personagens são caricaturas de um meio onde as mulheres fazem panquecas e organizam eventos nas escolas, os homens têm um trabalho medíocre e satisfatório q.b. e gostar de armas ou de gelado de chocolate é mais ou menos a mesma coisa.
Juno Temple tem possivelmente a melhor personagem da série. Certinha e irritante exatamente na mesma medida, percebemos pouco depois que é a fachada necessária para não levantar ondas. Porém, quando tem de lutar pela vida, vira uma espécie de kung-fu habituada a despachar assassinos às dúzias. Mas é quando é interrogada e ameaçada pela sogra que a verdadeira personalidade se mostra. Vai-se o sotaque e fica a tenacidade de quem já foi ao inferno e voltou e, por isso, não deixará que ninguém a derrube.
A sogra é Lorraine Lyon (interpretada por Jennifer Jason Leigh). Rica, influente, e com um filho banana que em vez de lhe seguir os passos tem um negociozito de venda de automóveis, não gosta da nora (mas também não gosta de ninguém). Ela manda e os outros obedecem. Quando as atitudes de Dot lhe cheiram a esturro, encosta-a à parede, estando plenamente convencida de que a nora é uma interesseira que quer ficar com a fortuna da família. Só que o que não estava nos planos era que esta última lhe fizesse frente. É difícil perceber que ligação é que as duas terão ao longo da temporada mas será um hipnotizante confronto de dois pesos pesados. A personagem de Jason Leigh é fria e não parece ter herdado o gene da empatia, nem sequer em relação à neta. “A travesti pode sentar-se ali no meio”, diz quando vê a criança com um fato (em vez de um vestido) para a tradicional foto de Natal. Isto se o tradicional incluir toda a gente a empunhar uma arma (até a miúda) para mostrar os valores familiares.
No entanto, o vilão ou o co-protagonista desta quinta temporada não é ela. É, sim, Roy Tillman (Jon Hamm), um xerife que conhecemos no momento em que está a dar uma lição de moral a um agressor. Sentado frente a frente com o homem e a mulher (a agredida), explica que um homem pode bater, sim senhor, mas “apenas para instruções, nunca retirando nenhum prazer ou satisfação da tarefa”. Assim sendo, está tudo certo no mundo. Pelo menos no de Tillman está. No pedaço de terra que controla, é ele que faz as leis. Quem obedecer, ótimo; quem não gostar, terá problemas. Ali não se aplicam as leis e as regras do resto dos EUA e ele deixa isso bem claro quando é visitado por dois novos agentes vizinhos que questionam os seus métodos.
E como/onde é que ele deixa isso claro? Sentado numa espécie de jacuzzi exterior onde o vapor fumegante da água não é suficiente para disfarçar as argolas que tem penduradas em ambos os mamilos. Quando os colegas se sentem incomodados pela sua falta de decoro, ele sai simplesmente do banho, nu, e enrola-se numa toalha onde tem a própria cara estampada em grande. O humor de Fargo é assim, constrangedor, nonsense e negro e por isso é que funciona tão bem.
Hamm tem um ar ameaçador, violento e vingativo. É ele que manda raptar Dot, que era mulher dele e que, como é óbvio, nunca terá perdão nem desculpa por ter fugido. Não sabemos os motivos, mas sabemos perfeitamente desde o início que ela terá de pagar. Mulher de xerife não foge, mulher de xerife obedece. Estas palavras não são de Tillman mas podiam perfeitamente ser.
À volta dele movimentam-se uma data de homens armados, que servem para lhe tratar dos trabalhinhos sujos e proteger o rancho (ele é um cowboy à moda antiga, a cavalo, com chapéu e tudo) onde vive. Um deles é o filho, Gator (Joe Keery), uma cópia barata do pai no que toca ao desdém pelas mulheres, mas bastante inútil no desempenho das tarefas que lhe competem.
Como já aconteceu diversas vezes em Fargo, os homens acham-se capazes e com direito a tudo e as mulheres, sempre menosprezadas, revelam-se mais inteligentes, duronas e decisivas na história. Além de Dot, esta temporada conta com uma detetive, Indira Olmstead (Richa Moorjani), a quem dão pouco crédito, seja no trabalho, seja em casa, onde o marido acumula dívidas e vive às custas dela. À semelhança de Gloria Burgle (Carrie Coon) e Molly Solverson (Allison Tolman), detetives em temporadas anteriores, será ela uma das peças chave deste ano. Todas elas provam ser bem mais inteligentes sozinhas do que meia dúzia de homens juntos.
Os dois primeiros episódios não pedem licença para dar início à confusão. As cenas estão repletas de tensão quase desde o primeiro minuto. A banda sonora ajuda e o facto de já sabermos como Fargo costuma ser, também.
A América rural, cheia de clichés e valores tradicionais (e muitas vezes ultrapassados), volta a ser o cenário para uma narrativa que é a mais atual (2019) no historial desta antologia. No total, a temporada tem dez capítulos. Todos os caminhos são possíveis e, se os dois primeiros forem uma amostra fidedigna do que resta, este Fargo será tão hipnotizante e louco como as primeiras duas temporadas.