Quando, no outono de 2021, Squid Game se tornou o sucesso televisivo do ano, não tardou o clamor: violência gratuita, terrível exemplo para as crianças e rumores de que, por esse obscuro mundo afora, teriam começado já os fenómenos de imitação: “squid games” reais, organizados por bilionários entediados, onde, para ganhar uma fortuna fabulosa, seres humanos de verdade concorriam numa série de desafios, até à morte. Mas, se a nossa imunidade ao choque é, lamentavelmente, maior a cada coisa chocante que passa, o que cada pai ou mãe deixe uma criança ver na televisão ou no telemóvel tema que não pode condicionar nenhum criador de conteúdos para adultos do mundo, e os pretensos jogos de morte reais assunto para a justiça dos lugares onde possam ter acontecido, se é que alguma vez aconteceram, a versão de 2023 vem baralhar tudo – e baralhar-se toda.
Squid Game: O Desafio não é uma segunda temporada do fenómeno criado por Hwang Dong-hyuk; é um reality show envolvido na estética da série – papel de embrulho fabuloso, mas, ainda assim, apenas papel de embrulho. 456 concorrentes reais – alegadamente, o maior número de participantes de sempre num reality show – competem por um prémio de 4,56 milhões de dólares – alegadamente, também o maior prémio televisivo de sempre. Para isso, vão ter de jogar os jogos da série, alguns novos acrescentados para o concurso e eliminarem-se uns aos outros, até que apenas um resista e leve o prémio. Isto é, na prática, cada concorrente mandado borda fora vale mais 10 mil dólares na conta de quem chegar sozinho ao fim. Não parece bonito – e não é.
[o trailer de “Squid Game: o Desafio”:]
“A vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida”, já dizia o velho senhor Wilde. Enquanto Squid Game era uma reflexão sobre o capitalismo e a desumanização nas sociedades contemporâneas, Squid Game: O Desafio é apenas a exploração dessa mesma desumanização que a série denunciava.
Com um casting que decorreu entre junho e setembro do ano passado, supostamente aberto a participantes do mundo inteiro, mas de onde parecem ter sido selecionados somente candidatos dos Estados Unidos da América e meia dúzia de ingleses e australianos, O Desafio coloca pessoas de verdade a atraiçoarem-se por uma fortuna que, ao dia de hoje, deve dar para comprar todo um T3 com garagem e piscina partilhada na cobertura em Campolide. Isto enquanto confidenciam com a câmara as suas banalidades de pessoas de verdade, aprendidas entre uma palestra de coaching e meia dúzia de citações de auto-ajuda no TikTok.
O que poderia, à primeira vista, parecer um passo genial e audaz – audaz à medida do génio diabólico por detrás dos jogos de Squid-Game-a-ficção – levar a série para o mundo real, revela-se um beco sem saída que é difícil perceber a quem possa interessar: certamente, não aos fãs de ficção e muito menos aos detratores da série original. Sobram, portanto, os adeptos de reality shows, que aqui encontram um misto de Big Brother com “Jogos sem Fronteiras gone wrong”. Um concurso onde os participantes não têm de exibir os seus dotes na culinária, na música ou na dança – apenas o seu nível de sociopatia. Se, ao menos, fosse apresentado por Eládio Clímaco…
À arte não cabe edificar nem fazer perder; cabe dizer o novo, seja ele maravilhoso ou cruel. Mas um reality show não é arte, tal como a pornografia não é, as imagens captadas por uma câmara de segurança ou um vídeo voyeur de telemóvel, dos biliões que hoje se produzem, todo o dia e em toda a parte; é apenas uma câmara apontada ao animal humano. No mundo pós-morte de Deus, pós guerra, pós 11 de setembro e pós pandemia, parece cada vez mais legítimo acreditar-se que a coisa mais correta a fazer é pensar-se em si mesmo e mais ninguém. Ver como não censurável centenas de pessoas a salivar por notas de dólar, atiradas para uma tômbola transparente deixada a pairar sobre elas, como o engodo gigante destinado a apanhar um grande, mole e estúpido peixe, que, no limite, lutará pela triste glória de saber bem grelhado no carvão.
O episódio final fica disponível esta quinta-feira, 6 de dezembro. Mas enquanto esperamos pela segunda temporada de Squid Game, a verdadeira, isto é, a falsa, a fictícia, que vai mesmo existir e que já está em produção desde julho, o que não perdoamos mesmo à versão reality show é a morte. É que a morte é um assunto muito sério. A morte, em Squid Game era terrivelmente crua e realista. Era tudo, era o limite, o preço a pagar. E em Squid Game: O Desafio, que supostamente é “real”, o nível acima, feita com pessoas “de verdade”, a morte é apenas a fingir. Um saco de tinta que rebenta no peito dos concorrentes que, depois, dentro das suas capacidades (?) dramáticas, fingem tombar mortos como tordos. E isso é que não pode mesmo ser. A vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida. Mas a morte – a morte, caramba –, na arte ou na vida, nunca é a fingir.