Com a sufocante quantidade de oferta despejada nos diversos serviços de streaming todas as semanas, é fácil que pequenas pérolas televisivas se percam no vortex infinito do conteúdo. Da Coreia do Sul saiu um dos maiores êxitos da história da Netflix, Squid Game, um drama sobre uma competição tão milionária como mortífera que no final de 2021 dominou audiências e conversas um pouco por todo o mundo. Dois anos depois, a ficção virou realidade com a versão game-show anglófona de Squid Game mas é outro programa do género que se tornou um dos meus preferidos do ano – TheDevil’s Plan (O Plano do Diabo em Portugal) lançado entre setembro e outubro na mesma Netflix.
Doze concorrentes numa casa durante uma semana a competirem em jogos de inteligência para ganhar um prémio final de, potencialmente, até 500 milhões de Wons (sendo que os cerca de 350 mil euros são uma quantia choruda, o valor na moeda de origem soa bastante mais imponente).
Devil’s Plan é a prova que nem toda a reality TV tem que ser trash TV. Aqui ninguém vai ter que comer insetos vivos nem contrair matrimónio com a ruralidade. E com os desafios a serem dominados pela inteligência (palavra por vezes rara neste tipo de programação), a escolha dos participantes reflete essa ideia central – todos os doze são figuras de sucesso nas suas respetivas áreas, incluindo uma advogada emigrada nos Estados Unidos, um popular Youtuber com um canal dedicado à ciência, dois jogadores profissionais de poker, uma cirurgiã ortopédica ou uma estrela de K-Pop.
[o trailer de “Devil’s Plan”:]
Previsivelmente, o primeiro episódio começa com a apresentação dos concorrentes e seus perfis, à medida que estes vão chegando à casa e se conhecendo e dando a conhecer. Ocorre-me dar o mesmo conselho, ligeiramente herético, que a minha professora de português do liceu nos deu na leitura d’Os Maias – saltar a densa descrição que Eça nos ofereceu do Ramalhete e voltar lá mais tarde e entrar logo mais próximo da ação. A primeira meia hora do programa será certamente a mais aborrecida dos doze episódios que teremos pela frente – não que os concorrentes sejam desinteressantes mas porque é ao longo dos desafios e nas suas interações sobre pressão que realmente eles se vão revelar, muito mais do que naquele meet and greet inicial.
Um dos aspetos de maior brilhantismo da série é a conceção dos jogos que os participantes enfrentam, começando logo no primeiro – uma espécie de Aldeia dos Lobos em esteróides, com cada membro a receber uma personagem ao início sem a poder revelar aos demais e com determinados objetivos por cumprir. Dois terroristas que têm como missão espalhar um vírus, polícias que os tentam desvendar e eliminar, um jornalista com o poder de descobrir uma identidade por ronda ou os cientistas que tentam encontrar a cura e uma primeira amostra do estilo de desafio que vão encontrar – não só terão de usar o cérebro como equilibrarem-se na linha muito ténue entre cooperação e competição, tentando extrair mais informação do que deixam escapar e formando alianças precárias para sobreviver.
Não se preocupe o espectador se a explicação das regras de cada desafio, transmitidas ao grupo por uma figura mascarada num ecrã, parecer demasiado complicada e a roçar o incompreensível – também eu frequentemente me senti intelectualmente limitado a cada nova prova, sentimento aliás partilhado pelos próprios participantes de Devil’s Plan (e em minha defesa, os grafismos em coreano com algumas regras não ajudam) mas a inteligente edição da série permite sempre ir acompanhando e compreendendo melhor a missão ao longo desta ao mesmo tempo que nos são propositadamente omitidos e manipulados certos detalhes para criar tensão e suspense.
Apesar da intensa complexidade de cada prova – há jogos de tabuleiro com regras secretas para cada participante, decidida pelo próprio; provas de memorização de grandes quantidades de informação, poker de equações matemáticas ou quebra-cabeças numa roda em movimento – o objetivo geral do programa é muito simples: cada jogador começa com uma Peça (um pequeno objeto dourado que funciona como moeda) e o seu sucesso ou falta dele em cada prova resulta no acumular ou subtração dessas mesmas Peças – quem ficar com zero Peças é eliminado e quem tiver mais Peças no final é o vencedor do grande prémio.
Devido ao carácter necessariamente cooperativo de muitas das provas, as estratégias e alianças desenvolvidas pelos jogadores estão em constante fluxo e evolução, resultando em maior tensão e “drama televisivo” ainda que este nunca chegue a parecer gratuito nem forçado.
Ao longo de doze episódios de cerca de uma hora cada (e quase sempre terminando com aquele gancho que praticamente nos obriga a iniciar imediatamente o próximo), Devil’s Plan revela-se como metade game-show e metade experiência sociológica, dando espaço para as personalidades dos concorrentes se mostrarem e consequentemente nos ligarmos emocionalmente a elas, torcendo arduamente a favor (ou contra) o sucesso dos que mais gostamos e ficarmos investidos no vencedor final (e devastados com algumas eliminações).
O criador e produtor Jeong Jong-yeon, que já tinha desenvolvido programas de sucesso interno na Coreia como The Genius, revelou que a imprevisibilidade de algumas estratégias dos concorrentes foram uma surpresa interessante, ainda que desafiante, durante as gravações e que acabou por levar o programa por caminhos que este não tinha planeado.
Com o sucesso relativo na plataforma de streaming (chegou ao Top 10 dos conteúdos mais vistos em vinte e três países), a Netflix confirmou já uma segunda temporada, ainda sem data prevista de estreia.
E agora que espero ter convencido o leitor a dar uma oportunidade e tornar-se espectador, vou voltar à missão de espalhar a palavra do Plano do Diabo (espera, isto não soou muito bem) aos amigos, família e desconhecidos que ainda não converti como tenho feito constantemente nos últimos dois meses.