O novo filme de Michael Mann, Ferrari, escrito pelo falecido Troy Kennedy Martin, e que segue Enzo Ferrari durante algumas semanas do verão de 1957, decisivas para a sua vida familiar, empresarial e desportiva, é do tipo de causar apoplexias nos militantes das organizações eco-obscurantistas que se esticam ao comprido em ruas e estradas, e se dependuram de pontes e edifícios, para protestarem contra o petróleo e o seu uso, e os automóveis. É que Ferrari é feito de potentes motores de combustão interna a funcionar ao máximo de uma ponta à outra, e carros de corrida lançados a alta velocidade em pistas e nas estradas, do princípio ao fim. É um filme que faz figura de descarado e glorioso anacronismo, por estes tempos de “elétricos”, “híbridos” e “verdes”, e melindres de “sustentabilidade”.

[Veja o “trailer” de “Ferrari”:]

No início do filme, Enzo Ferrari (interpretado por Adam Driver com enorme verosimilhança física, de carácter e de temperamento), que guia um discreto Peugeot, chega a casa, em Modena, de manhã muito cedo, vindo de uma noite com a amante, Lina Lardi (Shailene Woodley), e a mulher, e sua sócia na empresa, Laura (Penélope Cruz) alveja-o com um tiro antes mesmo dele conseguir tomar o pequeno-almoço. E se as coisas não vão lá muito bem em casa, também não andam famosas pela Ferrari, que precisa de vender mais carros para poder continuar a financiar a competição e não ir à falência. Por isso, o comendador decide alinhar um punhado deles na corrida das Mil Milhas (Mille Miglia) desse ano, para a ganhar. Obrigatoriamente.

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[Veja uma entrevista com Michael Mann:]

Ferrari é um filme sobre um homem e um líder que é como um general civil, envolvido num combate em duas frentes, a doméstica e a profissional. Na primeira, Enzo Ferrari, que um ano antes perdeu o seu amado filho Dino, vítima de uma doença degenerativa, tem que ocultar de Laura a sua relação com Lina, e o filho que teve com esta, Piero (a cena em que Ferrari lhe dá uma pequena lição de engenharia e estética automóvel é notável), enquanto vai adiando o reconhecimento público deste; e não pode tomar nenhuma decisão empresarial para fortalecer financeiramente a Ferrari sem o aval da mulher. Na segunda, o comendador tem que aturar, lisonjear e manipular jornalistas, e instigar continuamente as suas tropas – engenheiros, mecânicos, pilotos – para que os carros sejam melhores, mais resistentes e mais rápidos do que os da concorrência, e vençam a batalha das Mil Milhas.

[Veja uma entrevista com Adam Driver:]

Parece ser demais para um homem só, mas o comendador, sempre de óculos escuros, a sua barreira de proteção entre ele e o mundo, nunca desiste. Ferrari é, ao contrário do habitual no cinema de Michael Mann, um filme em que o protagonista não é tanto um herói de ação (apesar de também ter sido piloto na juventude), mas sim um homem de vontade carismático que impulsiona incansável e até mesmo rudemente os que o rodeiam para a ação, por vezes mortal (os pilotos morriam como tordos, em testes ou nas corridas, nesses tempos tão heroicos como mortíferos do automobilismo), tendo a vitória sempre como desígnio.

[Veja uma sequência de “Ferrari”:]

O ponto alto de Ferrari, e a exaltação cinematográfica dessa mesma ação, é a edição de 1957 das Mil Milhas, corrida vertiginosamente, com escassa segurança e em constante ameaça para concorrentes e público, através das estradas e caminhos, e das ruas, ruelas, praças e avenidas das aldeias, vilas e cidades de Itália. A prova é gostosa e empolgantemente recriada por Michael Mann, celebrando a velocidade, o arrojo ao volante e o risco, com o duelo entre os carros vermelhos da Ferrari e os da Alfa Romeo bem no centro dela. E quando se dá a grande tragédia, Mann mostra-a com uma eficácia tremenda e um recurso parcimonioso aos efeitos digitais, sem qualquer espalhafato visual ou sonoro, num filme que, precisamente, tem sempre a câmara metida nos carros e o som no coração.

No rescaldo, Enzo Ferrari tirou uma vitória do meio da maior adversidade, e conseguiu atar todas as pontas soltas pessoais, comerciais e desportivas. E Michael Mann deixa-nos a acelerar logo no início do ano com este magnífico Ferrari, que ressuscita um tempo em que os construtores de carros de corrida metiam as mãos na massa e tratavam a velocidade por tu, os pilotos deixavam cartas de despedida às namoradas e mulheres quando iam correr em provas mais perigosas, como soldados na véspera de um grande combate, e os motores de combustão interna não eram vistos como uma monstruosidade a eliminar. É o primeiro grande filme de 2024.