Comecemos por fazer uma divisão da humanidade em duas categorias: uma que acredita que a melhor música, a que merece a nossa dedicação, é aquela que é baseada em coisas positivas, alegres e festivas; e outra que está mais do que certa que as boas canções do mundo são todas inspiradas em melancolia e que é a tristeza — seus efeitos e respetiva superação — que gera as obras mais desafiantes e duradouras.
Se um dia chegássemos ao limite aparentemente insuportável de ter de escolher, a decisão tornar-se-ia um delicioso dilema, cuja resolução implicaria horas de audição, discussão, reflexão e outros verbos transformados em substantivos. No meio deste gentil caos, pelo menos uma pessoa estaria certa da decisão imediata. Bill Ryder-Jones, o inglês com o País de Gales nos acordes, que seguiria certamente o caminho da melancolia antes que chegássemos sequer ao fim da pergunta. O seu novo álbum prova-o mais uma vez, talvez da forma mais graciosa que alguma vez conseguiu.
Bill Ryder-Jones é o jovem que completou 40 anos em agosto passado e que fez parte dos The Coral, banda que em tempos juntou a pop, o psicadelismo e a folk britânica e americana, o grupo culpado pelo santificado crime de ter assinado (entre outros) o álbum Magic and Medicine, em 2003 (dizer que é um disco recheado de poções mágicas é a graça mais preguiçosa que vão encontrar neste texto, mas também é uma enorme verdade).
Mas foi também este o jovem Bill que ao longo da sua permanência na equipa dos The Coral percebeu que os dilemas com a saúde mental tinham atingido um pico inegável e que com ele continuariam, para sempre. Tal tomada de consciência obrigou a uma retirada, a uma aprendizagem constante e a um exorcismo que insistiu no uso da música, mas a solo. If foi o primeiro disco nesse percurso, em 2011. Yawn foi o quarto, em 2018. Dois anos depois, a pandemia. E a partir daí, nunca mais nada foi como era para Bill Ryder-Jones.
[“I Hold Something in my Hand”:]
Hoje, o músico vive em West Kirby, na península de Wirral, entre Liverpool e Gales. Pouco ou quase nada se passa naquela zona costeira da Grã-Bretanha e Ryder-Jones está bem assim: não quer muito mais do que trabalhar no estúdio (como um garoto a viver entre brinquedos de adulto), ir ao pub à segunda-feira (noite de quiz), ver os jogos do Everton (sem grande esperança de vitórias no final da época) e continuar apaixonado na relação que agora vive. Talvez um dia tire a carta e tenha filhos, como tem dito em entrevistas recentes, mas não criemos expectativas.
Assim se descreve o último ano do músico: um calendário de dias pacíficos, sem alarmes nem surpresas. Mas os três que o antecederam foram feitos de pânico, fármacos, um coração despedaçado, perguntas sem resposta, obsessões, solidão e um álbum em permanente construção. Assim que o mundo se fechou, no início de 2020, Bill Ryder-Jones começou a viver na carne e na mente tortuosa o que seria este novo Iechyd Da (título editado esta sexta-feira, 12 de janeiro, e que em galês quer dizer “boa saúde”). A tal melancolia, a tal tristeza, seus efeitos e respetiva superação a fazerem a única coisa que fazem bem: motivar a criação. A boa criação. Toda esta nuvem densa e consequente dissipação compõem as 13 canções do álbum, que chega no início de um novo ano com a melhor das pontarias.
[“If Tomorrow Starts Without Me”:]
Iechyd Da mostra um homem viciado na sua guitarra e no seu piano, um disco feito por um artista curvado sobre si mesmo — não a tentar esconder alguma coisa entre braços fechados no peito, antes a criar a melhor maneira de soltar uma boa dose de confissões através daquela voz arranhada, pequena, pouco ou nada virtuosa, mas sincera coisa que chegue (talvez o melhor adjetivo para a gravação em causa). As canções formam uma lenta — mas intensa — combustão interna, que vai sendo libertada em camadas. Ryder-Jones procurou fazer um álbum cuidado e fez questão de demonstrar esse carinho pelas coisas bem feitas na atenção que investiu em cada detalhe. Ele, que também é produtor, preocupou-se com todas as fatias dos temas, os sons, as atmosferas, os sintetizadores, o dramatismo das cordas e o momento certo para fazer ouvir uma pandeireta, como ode à libertação.
Não há experimentação, não há caminhos novos em plena descoberta. Bill Ryder-Jones fez um disco sem pressa porque não tinha pressa nenhuma de chegar a lado algum. Iechyd Da é como um diário de um moribundo de regresso à luz do dia. É fácil que nos questionemos: “por que raio vou eu ofertar o meu tempo a este disco se nada disto me mostra um mundo novo?”. Porque por vezes não precisamos de descobertas, apenas procuramos reencontros. O encantamento pelo desconhecido é sedutor e até é viciante, mas nem sempre é alimento para aguentar o dia. E em Iechyd Da o talento de quem aprendeu com Lou Reed, com o Nick Cave baladeiro, os Spiritualized ou os Mercury Rev é tão óbvio que se torna inescapavelmente recompensador.
Para quem valoriza fronteiras temporais, arrancar janeiro na companhia de alguém como Bill Ryder-Jones é como conhecer um guru pouco dado a espiritualidades, mas com uma admirável capacidade de superação, a notável habilidade de se fintar a si próprio e seguir caminho. Foi ele que aos 7 anos viu o irmão cair de um penhasco e morrer. Foi por isso que começou a aprender a tocar instrumentos — porque o irmão o fazia. Já colocou “Daniel” no título de uma canção; e de uma foto antiga da sua maior saudade teve a coragem de fazer uma capa de disco. Este companheiro Bill continua assombrado por tudo o que não foi desde esse momento e por tudo aquilo em que se transformou a partir de então.
De alguma forma, ele agradece e dá de volta, escrevendo e gravando discos como este que nos cai agora no colo, em que cada canção pode guardar duas ou três diferentes dentro do mesmo tom; em que os distintos andamentos são reflexo de uma personalidade inquieta na sua demanda por quietude; um álbum que abre com um sample de Gal Costa em “Baby” e que segue pelos mesmos acordes, porque não há que ter vergonha em fazer canções que são referências quando é o bom gosto que dita a gramática das notas.
No fim, Iechyd Da garante uma enorme lição quando assegura que não é preciso escolher: isto é música dramática para dias felizes. Ambas as realidades podem bailar de mãos dadas, uma matemática tão simples como a complexidade dos dias.