O PS admite implementar um período de permanência dos médicos no SNS, após a conclusão da especialidade. A medida, já equacionada por outros governos socialistas, nunca chegou a avançar e promete gerar, de novo, muita polémica no seio da classe. Os sindicatos médicos voltam a manifestar-se contra e falam numa proposta “ilegal” e “discriminatória”.
No programa eleitoral dos socialistas, apresentado este domingo, é admitida a “possibilidade de introdução de um tempo mínimo de dedicação ao SNS pelos profissionais de saúde, nomeadamente médicos, na sequência do período de especialização”.
Para os sindicatos, a proposta é discriminatória e limita a liberdade dos médicos. “Vemos esta proposta com muita preocupação. Ao invés de criar condições para que o SNS seja robustecido com médicos, nomeadamente através do aumento salarial e das condições de trabalho, opta por uma medida ilegal, discriminatória e enganadora“, diz ao Observador o presidente do Sindicato Independente dos Médicos, Jorge Roque da Cunha.
“É claramente ilegal, porque limita a liberdade de circulação dos médicos na União Europeia e limita a liberdade de escolha por parte das entidades empregadoras. É discriminatória porque coloca essa obrigação apenas aos médicos — por que não aos economistas, aos engenheiros, os enfermeiros e à generalidade das profissões cuja formação é custeada pela nossa colossal carga de impostos?”, defende Roque da Cunha, acrescentando ainda que a medida é enganadora, uma vez que os médicos internos já trabalham largos anos no SNS e com os encargos a serem suportados pelos próprios.
PS propõe medida pela 3ª vez em 13 anos
“É uma medida populista e demagógica. Os custos obrigatórios dos médicos internos não são pagos pelo Estado mas pelos próprios médicos, inclusivamente os congressos em que têm de participar para construírem um currículo de qualidade”, sublinha o responsável, garantindo que “a medida não tem qualquer hipótese de vir a ser implementada“.
Bastonário avisa: “Obrigar os médicos a ficar é destruir o Serviço Nacional de Saúde”
Não é a primeira vez que o PS testa a ideia: em 2011, o segundo governo de José Sócrates tentou implementar um período obrigatório de permanência no SNS para os médicos recém-especialistas. A medida — que previa que os médicos que não aceitassem o período de permanência tivessem de indemnizar o Estado — nunca avançou, sobretudo por pressão dos sindicatos, que recusaram a ideia. Mais recentemente, em 2019, o PS o voltava a colocar a medida em cima da mesa. No programa eleitoral para as legislativas desse ano, que o PS acabou por vencer, era proposta “a celebração de pactos de permanência no SNS após a conclusão da futura formação especializada”. Nesse mesmo ano, em declarações ao Expresso, a ministra da Saúde, Marta Temido, reafirmava a intenção. Mais uma vez, a medida voltou a ser alvo de forte contestação, tanto da Ordem dos Médicos como dos sindicatos, e nunca chegou a avançar.
“Os médicos já trabalham no SNS, entre quatro a seis anos, como médicos internos — são um terço dos médicos do SNS”, reage a presidente da Federação Nacional dos Médicos, Joana Bordalo e Sá, em declarações ao Observador. Assim, uma medida para “obrigar os médicos a continuarem no SNS ou terem de dar uma compensação por terem trabalhado no SNS nos últimos anos é uma limitação gravíssima da liberdade e garantias dos médicos, e que não acontece com qualquer outra profissão”.
A responsável refere-se a um outro ponto polémico do programa eleitoral, apresentado este domingo. Para além de um período de permanência obrigatória dos recém-especialistas, o programa do PS inclui a possibilidade de obrigar os médicos que emigrem ou ingressem no setor privado a compensar o Estado pelo “investimento público do país na sua formação”.
A responsável insiste que o novo governo tem, ao invés, de avançar com medidas que “tornem o SNS atrativo para os médicos”.
Ordem dos Médicos não comenta, mas bastonário já se mostrou contra a permanência obrigatória
O Observador contactou a Ordem dos Médicos para obter uma reação à proposta do PS, mas fonte oficial da Ordem dos Médicos esclareceu que o bastonário, Carlos Cortes, não comenta propostas eleitorais. No entanto, em 2019, quando o ministério liderado por Marta Temido equacionou avançar com a medida, Carlos Cortes (à época presidente da Secção do Centro da Ordem dos Médicos) mostrava-se contrário à ideia, secundando a posição assumida pelo então bastonário dos médicos, Miguel Guimarães. “O que vai resolver a fuga é os médicos terem um lugar no sistema, uma carreira, e condições para tratarem bem os doentes“, disse Carlos Cortes ao Expresso, recusando a medida proposta pelo governo.
Já esta segunda-feira, e confrontado pelos jornalistas, o secretário-geral do PS, Pedro Nuno Santos, esclareceu que as propostas são apenas “uma possibilidade”. “Avaliar a possibilidade significa, tal como referido, que qualquer uma dessas medidas nunca será tomada sem avaliação, negociação e aceitação por parte das estruturas representativas dos médicos”, sublinhou Pedro Nuno Santos.
A implementação de um período de permanência obrigatória de médicos recém-especialistas no SNS é uma proposta que tem gerado muita polémica ao longo dos anos e que divide os próprios profissionais. No final de janeiro, o presidente da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa — o reumatologista João Eurico Fonseca — defendia, em entrevista ao Observador, um período de permanência obrigatório de cinco anos para os médicos depois do final da especialidade.
“Para o bem de todos, um período mínimo pós-finalização do internato deveria ser dentro do SNS. Porquê? Para o bem dos doentes, do país, mas também dos jovens médicos. O internato é o momento decisivo de aprendizagem, em que o médico está sob tutela. Depois disso, o médico ganha autonomia progressiva e vai amadurecendo. Esses anos, vividos em ambiente hospitalar, são de formação complementar oficiosa. Portanto, [seria] um período de 4/5 anos em que o interno continuava a sua progressão. Após esse período, era livre para sair. Não tenho problemas com isso, provavelmente outras pessoas pensam de outra maneira”, disse João Eurico Fonseca.