Na maioria das vezes, é o desconhecido que impede o próximo passo. Mesmo quando se sabe que esse passo pode ser o caminho óbvio, o natural. Nik Colk Void passou mais de duas décadas a criar com outros até perceber que tinha uma voz a solo. Primeiro em bandas — Kaito e Factory Floor — depois em colaborações com alguns dos músicos mais importantes da cena eletrónica e experimental das últimas cinco décadas, como Chris Carter e Cosey Fanni Tutti (nos Carter Tutti Void) ou Peter Rehberg (NPVR), que morreu em 2021 e deixou um legado importante como músico e cabeça pensante da Mego (e que em 2006, fez renascer a editora enquanto Editions Mego).
Foi este último que, certo dia, perguntou a Nik Colk: “Porque é que nunca fizeste um álbum a solo?” E isso ativou o músculo que, afinal, não estava adormecido, só esteve a ser treinado durante décadas. Bucked Up Space saiu em 2022 na Editions Mego, como parte do plano de edições que Rehberg deixou antes de morrer. Recebeu elogios da crítica especializada. É um álbum surpreendente, livre em cada audição e, uma após a outra, ainda se sente como se Nik Colk estivesse a improvisar a cada momento, pelo espaço criado na circulação de ideias que vão beber à library music britânica — via BBC Radiophonic Workshop —, à urgência dos Throbbing Gristle ou até à impostora falta de emoção da electrónica glitch dos 1990s.
Existe outro elemento, contudo, que ultrapassa as referências e cria música eletrónica com um sentido de futuro. Em tempos tão pessimistas, seja por rumos políticos, guerras ou crises ambientais, é importante sentir que ainda há artistas que veem o futuro, que conseguem criar música de ficção científica. Isto é: que parece pertencer a uma realidade imaginada ou ainda por criar. Bucked Up Space tem essa rara qualidade da música eletrónica: a de nos fazer imaginar um futuro. Sem pessimismos ou amarras ao presente.
[o disco “Bucked Up Space” está disponível na íntegra no Spotify:]
Pedro Santos (Culturgest) e Luís Fernandes (Theatro Circo/gnration) também viram isso no trabalho a solo e desafiaram Nik Colk Void para “criar música sobre o cosmos, sobre como se pode chegar a conclusões sobre as alterações climáticas através do pensamento científico ou até político sobre o cosmos”. “Gostei da ideia”, diz-nos a artista. “Isso fez mover as minhas ideias para a frente e permitiu-me trabalhar com improvisação. A minha decisão foi rápida, demorei duas horas a dizer que sim.” Desta forma nasceu Beyond Echoes, espectáculo audiovisual com música de Nik Colk Void, imagens do artista francês Maotik, que conta também com a participação da violoncelista Ute Kanngiesser. A estreia é esta sexta-feira na Culturgest Lisboa (21h) e o espectáculo regressará a Portugal a 21 de março, integrado no Festival Tremor (Teatro Micaelense, 23h) e 23 de março no gnration em Braga (18h).
Nik Colk Void interpretou a ideia do cosmos como uma de interconexão: “A Ute vem da música clássica, mas ela gosta de trabalhar sem guião, reimaginou a ideia de clássica. Eu venho da guitarra, que é outro instrumento acústico. O título Beyond Echoes ressoa com a ideia do tempo a passar e o conceito de infinitude. Também há uma dimensão de repetição na ideia de ”echoes“ e eu queria explorar para lá dessa repetição, com movimento e ação. O que vou fazer é usar o meu sintetizador modular para explorar os sons que a Ute fará com o seu violoncelo e misturar com os meus próprios sons, os que criei para este projecto. É um processo mais de síntese granular, ao invés de repetição e ecos, esticar os fragmentos de sons até ao limite e organizar esses sons para aquele espaço de forma a que faça sentido. Nunca pensei que uma conversa científica pudesse ser improvisada, mas de um ponto de vista musical, faz todo o sentido, porque a improvisação traz mudança e conhecimento.”
Fala-se de ciência porque Beyond Echoes surge integrado no ciclo Aqui, No Universo que está a decorrer na Culturgest em colaboração com o Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço. Este espectáculo será uma falsa pausa, uma forma de ouvir uma conversa, de escutar ideias, de forma diferente. “Pensemos na crise climática, temos um sistema económico e social que já não está ao nosso serviço. E parece-me que a música e a improvisação empurram-nos para o desconhecido, obrigam-nos a correr riscos. Hoje olhamos para o nosso sistema e o que estamos a fazer é colocar pensos nas crises, não estamos a ir além, não queremos mudar as coisas, melhorar, tomar riscos. Acredito que a música e a improvisação podem ajudar-nos a mudar como pensamos nestas coisas — ou, pelo menos, a mudar a conversa sobre estes assuntos.”
A prática colaborativa, na improvisação — e não só — fortaleceram o músculo criativo de Nik Colk Void. Pensar de maneira surpreendente é “como ter um corpo musculado e ir ao ginásio. Tenho de exercitar essa parte do meu cérebro. A Cosey [Fanni Tutti] disse-me algo que mudou a minha forma de pensar. Quando comecei a trabalhar a solo, houve um dia que disse que me sentia mal, um dia em que nada funcionou, e ela disse ‘funcionou, se estás a improvisar, uma má performance é mais um passo no processo de aprendizagem.’ E é verdade. Posso apagar o que não funciona, isso ajuda a perceber o que funciona. Eles [Cosey e Chris Carter] mudaram muito a minha forma de pensar.”
Ao longo da conversa, insistimos no porquê de ter demorado tanto tempo a editar um álbum a solo. Antes de Bucked Up Space, só há um registo, lançado dez anos antes, um 7 polegadas editado numa editora sua e do então companheiro, Tim Burgess (dos Charlatans), a O Genesis, chamado Gold E, registado num material que se ia deteriorando ao longo do tempo, de forma a que cada vez que se ouvisse a peça, soasse de forma diferente. A ideia era que a peça fosse um elemento vivo, mas também demonstra os receios da artista em “registar algo permanente, que não cresce”. Sentia que crescia mais com a ideia de colaborar e de trabalhar o momento. A realidade é que também cresceu com Bucked Up Space e a evolução disso sentir-se-á certamente em Beyond Echoes, onde fará o que gosta mais: improvisar e construir no momento, ao lado de artistas que a desafiem.