Entre as pedras de gelo vende-se o “royal mix”, um “mix supreme” e outras variações de pequenos cabazes de marisco, que metem gambas, ostras e semelhantes. Letras em azul forte prometem, em inglês, oferecer “the best oyster in the Bolhão market”. É uma das bancas da versão renovada do Mercado do Bolhão, de que os turistas parecem gostar — mas as peixeiras que já cá trabalhavam, algumas das quais estão arrumadas num canto do pavilhão, não estão satisfeitas. É a uma delas que Marisa Matias, cabeça de lista pelo Porto e conhecida de vários dos comerciantes, se dirige em passo decidido, levando consigo Mariana Mortágua para ouvir as queixas sobre a “turistificação” das cidades — queixas que a coordenadora do Bloco de Esquerda ouve com atenção, até o rosto se abrir num sorriso com a promessa da peixeira de votar no partido.

Mortágua está em modo popular: durante esta arruada no Porto, e como se foi notando nas passagens pela rua durante esta campanha, mostra-se disponível para o contacto com as pessoas, distribui beijos e abraços por sua iniciativa, dá autógrafos (no folheto do Bloco ou no último livro que publicou, e que uma leitora lhe dá para a mão) e oferece selfies por onde passa. Uma forma de provar que se vai soltando nas ruas, depois de ter ficado conhecida pelas intervenções duras dentro das paredes do Parlamento e nas comissões de inquérito à banca — e de muita gente, mesmo dentro do partido, ter questionado se teria a capacidade de mostrar a mesma “empatia” que Catarina Martins criava nas ruas.

Esforço não lhe falta e, no caso desta vendedora, compensa. A mulher cumprimenta entusiasticamente Marisa Matias mas rapidamente se dirige a Mortágua, dizendo que está sempre a “vê-la na TV”. Enquanto Mortágua fala da força das “mulheres trabalhadoras”, a peixeira queixa-se da versão 2.0 do mercado do Bolhão, frisando que para os vendedores são mais importantes as vendas a portuenses e residentes, que são consumidores fiéis durante o ano, do que a turistas — pelo que querem mais espaço e mais destaque para vender peixes ou hortaliças (e não mixes de ostras e camarão) nas bancas do mercado.

Mortágua, que ainda na véspera fez um discurso contra a transformação das cidades em “disneylândias”, acena com a cabeça e diz que sim — ainda encontrará jovens que lhe dirão que não têm dinheiro para pagar “nem pelas paredes de uma casa”, o que lhe permite repetir as propostas do Bloco para a Habitação e as cidades. Ainda junto da mesma vendedora, que pede um mercado disponível para “o povo do Bolhão” antes de rematar que é “no Bloco” que vai votar, Mortágua distribui os primeiros, de muitos, beijinhos da tarde.

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Quando encontra dois lesados do BES (um clássico com que já se cruzou diversas vezes em campanha), está à conversa uns minutos, garante que há vontade política para resolver o assunto e sela a promessa com uma fotografia ao lado dos dois homens e de Marisa Matias, o cartaz que diz “lesados há dez anos” diante do grupo.

Avança: dirige-se a cada jovem que vê acenar-lhe, ou mesmo que vislumbre apenas um sorriso (uma delas agradece “pela luta” para baixar os preços das casas, Mortágua fica satisfeita: “Muito fixe”). Tira fotografias com famílias. Marisa Matias e José Soeiro, números um e dois pelo Porto, conhecem o terreno e orientam-na para as bancas mais recetivas (numa delas, provam um doce e a vendedora garante que o pai da líder do BE, Camilo Mortágua, chegou a andar consigo “ao colo”, embora os detalhes da conversa se percam na barafunda da arruada).

O passeio corre bem, mesmo quando uma peixeira a confunde com Marisa Matias (“não faz mal, é tudo o mesmo”, atira Marisa, enquanto Mariana justifica: “Somos as duas morenas e altas”) ou quando um jornalista toca sem querer no marisco, no meio do frenesim e da bolha de câmaras (Mortágua pede desculpa e uma peixeira lamenta: “Ó riqueza…”). Uma tensão momentânea, mas maior, surge à saída do mercado, quando uma mulher lhe grita “mentirosa!” e é imediatamente ultrapassada em passo rápido pela comitiva bloquista, que lhe impede a passagem e abafa o momento.

Não há tensão, só risos, quando outra peixeira lhe diz que “faz falta um Álvaro Cunhal!”. Risos na comitiva, Mortágua tenta desviar o assunto: “Tem de haver uma união para andar para a frente”. A mulher volta à carga: “Lembro me de ele dizer que se um dia entrasse na UE ia ser uma desgraça…”. Mortágua ri-se de novo: “Vamos lutar pela esquerda”, mesmo que a esquerda seja outra.

No teste de popularidade, Mortágua parece passar sem espinhas: apesar de ser uma líder relativamente recente (assumiu a coordenação do Bloco em maio do ano passado), está muito longe de ser uma desconhecida ou de sofrer de falta de notoriedade. Há apenas um transeunte baralhado que pergunta em voz baixa: “É a Mariana? Mas não havia uma Catarina… é a irmã?” (essa é Joana Mortágua, explicam-lhe). Outro pergunta pelo paradeiro de Catarina Martins, que “está em Lisboa”, como explica a sucessora — e estará prestes a entrar na campanha nacional.

No final da arruada, Mortágua dispara ataques contra o Chega pela notícia sobre os “indícios de incumprimento” nas contas do partido em 2019, prometendo “perguntar todos os dias” da campanha onde estão as contas do Chega; dispara sobre Durão Barroso, que responsabiliza pelo “crime de guerra” da invasão no Iraque; e volta a puxar pelas piores memórias da troika ou da maioria absoluta. No entanto, quando é questionada sobre se nota que as pessoas que estavam zangadas com o Bloco há dois anos — e algumas abordavam Catarina Martins nesse sentido, criticando a decisão de chumbar o Orçamento do Estado do PS para 2021 –, mostra-se convicta de que a reconciliação com os eleitores chegará a bom porto. Nas ruas, vai fazendo tudo por isso. “Digam-me vocês se é isso que sentem. Eu não sinto nada isso. Sinto alegria, vontade de estar com o BE, simpatia e reconhecimento porque as pessoas sabem o que foram estes dois anos. Quando nos vêm falar é sobre rendas, salário, pensões, o que a direita fez ao país no passado”.

A arruada no Porto, a maior até agora, corre genericamente bem — Mortágua é bem recebida, ouve quase sempre palavras simpáticas e mostra-se descontraída e pronta para conversar com quem a aborda. Um teste relevante, uma vez que muitas das ações do Bloco têm acontecido em clima controlado q.b., junto de militantes do Bloco ou de associações e grupos que já conhecem o trabalho do partido ou com quem estão articulados. Mas os partidos costumam dizer que têm em conta a “sondagem das ruas”, e essa pareceu dar, neste sábado, resultados simpáticos a Mortágua. Falta perceber se isso se reflete, citando de novo um cliché partidário, na “sondagem que conta”: a das urnas.

A resposta a Costa, que precisa de “humildade”, e as promessas para os cuidadores informais

À noite, num comício no também renovado liceu Alexandre Herculano, Mortágua dedicou-se a uma causa que o Bloco tem defendido (muito pela voz de Marisa Matias, que também estava ali presente): a dos cuidadores informais. Elogiando a “organização” dos cuidadores que acabou, “só” com o apoio do BE e do Presidente da República, por resultar na criação do Estatuto do Cuidador Informal, a líder do BE garantiu que essa aprovação só foi possível porque o PS não tinha maioria absoluta, mas também que ainda não está “satisfeito”.

“Entendemos que a melhor homenagem às cuidadoras é levarmos para a próxima legislatura a concretização de todos os direitos que estão por inscrever na lei”, anunciou. Exemplos: o reconhecimento dos anos de cuidados que ficaram para trás no cálculo das reformas; o alargamento da licença atribuída a estes cuidadores quando têm outro trabalho (quer passar de cinco para 30 dias, e que seja remunerada); o alargamento da condição de recursos que exige o acesso ao subsídio para os cuidadores; e a criação de um Serviço Nacional de Cuidados.

Depois passou ao ataque aos últimos governos do PS, sublinhando que dos 120 milhões de euros que estavam orçamentados para esta área só 28 foram executados. Era o mote para rejeitar o elogio da “prudência nas contas certas” e para a sua reação ao discurso de António Costa, que na mesma noite disse, num comício do PS, que a maioria absoluta teria uma nota de “muito bom” e que a sua demissão lhe interrompeu o “jogo”. “Com franqueza, agora valem menos as justificações e só valem as soluções. Queremos resolver as crises que a maioria absoluta deixou. Nenhuma agência de rating sabe avaliar o esforço das 800 mil cuidadoras informais que tratam do nosso país sem que o Governo tenha executado a verba que inscreveu para lhes pagar o apoio”, disparou.

Recado final para os socialistas, e em especial para Costa: a maioria absoluta “falhou, e falhou, e falhou, e não há comício do PS que explique e mostre o contrário ao nosso povo”. “A maioria absoluta acabou e o PS não se deu conta, não se apercebeu. Menos arrogância, mais soluções. Menos soberba, mais humildade”.

Marisa Matias critica posições do governo português sobre “violência abjeta” de Israel

Antes de Mariana Mortágua tinha falado Marisa Matias, que dedicou a sua intervenção ao conflito em Gaza e à atuação de Israel, condenando a “violência abjeta e inimaginável” exercida pelo regime de Benjamin Netanyahu, que não tem dúvidas em classificar como autor de “genocídio, ocupação, limpeza étnica”.

“Desde 7 de outubro vivemos esmagados pelas impunidades de um Governo que não olha a meios para aniquilar um povo”, atirou. E juntou a isto críticas ao regime de Netanyahu por deixar entrar muito menos autocarros de ajuda humanitária do que será necessário. “Estão a bloquear a entrada de croissants de chocolate. Porque é que bloqueiam? Porque são luxo e não ajuda humanitária”, disparou, dizendo que recebe queixas destas “todos os dias” de organizações no terreno. Tudo pedindo que nunca se confunda “um governo colonial e sionista com o judaísmo”, nem se faça a partir disso discurso antissemita: “Nunca”. E lembrou os judeus que têm estado “na linha da frente contra o sionismo. Espero que façam no país dele a revolução que fizemos há quase 50 anos”.

Depois, passando às exigências ao governo português, diz que “teria esperado” que se tivesse juntado à denúncia de África do Sul sobre Israel, assim como o reconhecimento do estado da Palestina. “Só se pode reconhecer uma solução de dois Estados reconhecendo os dois, com um são palavras ao vento”. E criticou o facto de o embargo à venda de armas a Israel ter ficado de fora da resolução do Parlamento Europeu para um cessar-fogo. “É incompreensível que entre esses deputados [que votaram para retirar esse aspeto] estejam os do PS e PSD”. Foi buscar dois protagonistas improváveis para provar o seu ponto: a primeira foi Margaret Thatcher, que em 1982 ordenou um embargo de armas a Israel apesar de ser aliada do país. No mesmo ano, Ronald Reagan declarou que Israel estava a fazer ao Líbano “outro Holocausto”, citou.

“Em Gaza, dizem-nos que desde 7 de outubro em média 10 crianças por dia perderam uma ou as duas pernas. A maior parte teve de ser operada sem anestesia. Temos os dados e o horror todo, mas os países são incapazes de tornar uma posição sequer próxima de Thatcher e Reagan em 1982?”, dispara. Assim chegou ao apelo final ao voto no Bloco de Esquerda: defendendo que é também o modo como nos posicionamos em relação ao mundo que vai a eleições, e que as posições diferentes em relação a estas questões justificam o voto no BE. “Para nós, nunca houve imperialismos bons ou maus”, frisou, numa farpa ao PCP. Para nós, o direito à autodefesa” não pode ser usado como “biombo para o genocídio”, rematou.

Texto atualizado com as declarações de Mariana Mortágua e Marisa Matias no comício do Bloco de Esquerda.