A cópia do argumento de Oppenheimer que recebeu vinha acompanhada de uma mensagem escrita à mão por Christopher Nolan: “Querido Cillian. Finalmente, uma hipótese de te ver protagonizar. Com amor, Chris”. Não era caso para menos. Ao longo de quase duas décadas, durante as quais trabalharam juntos em seis ocasiões (só Michael Caine é um colaborador mais frequente do realizador inglês), era a primeira vez que Cillian Murphy assumia o papel central num filme do realizador britânico. Se já era notório que a experiência não podia ter corrido melhor, este domingo veio a certeza que faltava: o ator irlandês de 47 anos recebeu o primeiro Óscar da carreira, para Melhor Ator.
Foi o coroar de uma caminhada que viu Murphy arrecadar várias das principais distinções da época de prémios – além da estatueta dourada de Hollywood levou ainda para casa o Globo de Ouro, o BAFTA e o SAG. Mais do que pelo seu papel em Oppenheimer, a toada das distinções tem por base o reconhecimento por uma carreira de quase 30 anos, entre o teatro, a televisão e o cinema, mas durante a qual Murphy, reconhecido por muitos como um dos melhores atores da sua geração, raramente chamou a si a condição de estrela que agora lhe recai.
Ao subir ao palco para receber a estatueta dourada, Murphy disse: “Fizemos um filme sobre o homem que fez a bomba atómica. Para o bem e para o mal vivemos no mundo de Oppenheimer. Queria dedicar este prémio a todos aqueles que fazem a paz.”
A forma discreta e pouco interessada na exposição pública com que Murphy se conduz, pessoal e profissionalmente, fica espelhada na forma como recebeu a notícia da sua nomeação em janeiro: em casa dos pais, na cidade irlandesa de Cork, com uma chávena de chá e uma fatia de bolo. “Estava em Cork com os meus pais e a minha mulher e estávamos a beber uma chávena de chá, quando o telefone começou a tocar e as pessoas começaram a telefonar”, contou à revista People.
É esse lado mais “desligado” que sobressai em Murphy. Desde 2015 que reside em Monkstown, uma pequena cidade na costa irlandesa com cerca de seis mil habitantes. O telemóvel serve apenas para fazer chamadas e ouvir música. As entrevistas são escassas fora da promoção de um filme. Emily Blunt, que interpreta a mulher de J. Robert Oppenheimer no filme de Nolan, descreveu o ator como uma “péssima” estrela de Hollywood. No seguimento do sucesso do filme, a revista GQ, num perfil que lhe dedicou, atribuiu-lhe outro título: “O Homem do Momento”.
De acordo com o próprio, tudo teve início no verão de 1996, em agosto. Nesse mês, chumbou os exames de direito na faculdade, rejeitou um contrato discográfico oferecido por uma editora à banda que tinha com o irmão, conheceu a futura mulher e conseguiu o primeiro papel profissional, numa peça de teatro do encenador Enda Walsh. “Olho para trás agora e penso: ‘não sabia na altura como estas coisas iam ser importantes, o efeito de dominó que iam ter na minha vida’”, refletiu.
O primeiro papel de destaque surgiu em 2002, quando Danny Boyle o escolheu para protagonizar 28 Dias Depois, influente filme de zombies que o lançou de forma séria no cinema – e que, indiretamente, deu início à sua relação com Nolan (no mesmo ano, demonstrava a abrangência do seu talento, ao protagonizar Breakfast on Pluto, de Neil Jordan). Sem que Murphy o pudesse saber, o realizador britânico, à época um nome de culto responsável pelos thrillers Memento (2001) e Insónia (2002), tinha abraçado o desafio de relançar o super-herói Batman no cinema, e estava à procura do ator certo para dar vida ao “Cavaleiro das Trevas”, quando se cruzou com uma imagem promocional do filme de Boyle. “Fiquei impressionado com os olhos deles, a aparência dele, tudo, e quis descobrir mais”.
Ao primeiro encontro seguiu-se um casting onde, pese embora não tivesse ficado com o papel principal (que acabaria por ir para Christian Bale), o magnetismo e carisma natural de Murphy destacaram-no aos olhos do realizador e dos produtores, que o escolheram para o papel de Espantalho, um dos vilões de Batman – O Início (2005). Murphy voltaria ao papel nas duas sequelas da trilogia de Nolan, no começo de uma longa e produtiva parceria profissional e amizade pessoal.
“[A relação com Nolan] é crucial para mim” disse ao New York Times. “Ele puxou muito por mim, e eu queria que o fizesse”, acrescentou Murphy, para quem o realizador é alguém com quem está sempre disposto a trabalhar, seja em que circunstâncias forem. “Sempre disse ao Chris que se estiver disponível e ele me quiser no filme, estou lá. Não me interessa muito a dimensão do papel… Mas no fundo, secretamente, estava desesperado para ser protagonista dele”.
Antes desse momento, integrou o elenco de cinco filmes de Nolan – além da referida trilogia de Batman, foi ainda ator secundário em A Origem (2010) e Dunkirk (2017). Pelo meio, encarnou o papel que, antes de Oppenheimer, mais o notabilizou junto do público: Tommy Shelby, veterano da Primeira Guerra Mundial e gangster de Peaky Blinders (2013-2022).
“Ainda é o papel sobre o qual mais pessoas me abordam na rua”, revelou Murphy, que ao longo de nove anos e seis temporadas se notabilizou enquanto protagonista da série da BBC, que internacionalmente foi distribuída pela Netflix.
O reconhecimento da série e do desempenho de Murphy, viu aumentar o seu perfil, e ajudou a convencer a Universal, que produziu Oppenheimer, de que este estava apto a assumir o papel principal no filme de Nolan, para quem o ator é “o melhor da sua geração”. Para o próprio, a chave para aceitar o desafio foi a complexidade da personagem.
“Muitos dos seus contemporâneos diriam que [o J. Robert Oppenheimer] era o homem mais inteligente na sala em cada momento. Mas também era uma pessoa muito temperamental e frágil, emocional e mentalmente, particularmente em jovem. Se estivéssemos a escrever uma personagem fictícia, não seria alguém com quem as pessoas se pudessem identificar”, defendeu o ator, que considera encontrar a humanidade inerente aos personagens que interpreta como o desafio essencial da sua profissão
O resultado desse desafio está à vista, com os vários prémios que Cillian Murphy tem recebido – aos quais se junta agora o Óscar – a saltarem à vista como a consagração de um ator há muito respeitado e de quem cedo se disse que este tipo de reconhecimento era uma questão de tempo. Tempo que, segundo o próprio, tem sido a chave do seu sucesso. “Um realizador, um dos ‘Sidneys’ – não sei se o Lumet se o Pollack – disse um dia que ‘é preciso 30 anos para se formar um ator’. Estou nisto há 27, por isso estou quase lá”.