Num ano em que os filmes do grande público voltaram aos Óscares, com o mega sucesso de bilheteira que para sempre ficará conhecido como Barbenheimer a estar fortemente representado (ainda que com alguma polémica pelas não nomeações da realizadora e protagonista de Barbie), também a principal cerimónia de prémios de Hollywood regressou à boa forma, após várias edições ora nada memoráveis, ora marcantes pelos piores motivos.
Na quarta vez como anfitrião – havia-o sido em 2017 (ano de inesquecível trapalhada dos envelopes entre La La Land e Moonlight) e 2018 e, após interregno, no ano passado – Jimmy Kimmel, rodado apresentador de talk-shows noturnos, teve a sua noite mais tranquila e inspirada no lendário Dolby Theatre em Los Angeles.
Kimmel foi a personificação da competência no seu monólogo inicial de dez minutos, misturando reverência pelos nomeados, piadas de ordem mais benigna e uma ou outra um pouco mais ácida – como quando mencionou que Jodie Foster, outrora em Taxi Driver jovem o suficiente para ser filha de Robert DeNiro, teria hoje vinte anos a mais para ser sua namorada; ou quando fez referência ao passado com drogas de Robert Downey Jr. Mas mesmo quando espetou um pouco mais a agulha, foi sempre recebido com sorrisos cúmplices dos seus alvos nos planos de reação do público (coisa que nem sempre aconteceu em outras edições).
Após brincar com a maioria dos principais filmes nomeados e utilizar Steven Spielberg na plateia pela primeira de três vezes na noite, Kimmel terminou o discurso com uma bonita homenagem aos trabalhadores menos mediáticos da indústria cinematográfica que passaram pelas públicas batalhas e greves que atravessaram Hollywood este ano, agradecendo o seu esforço e conquistando uma sentida ovação de pé dos presentes.
Mas se o monólogo inicial merece um Suficiente Mais – eficaz e competente sem ser brilhante – foi em alguns momentos de maior improviso (palavra proibida numa cerimónia deste gabarito e importância) que o host mais brilhou. Logo cedo na noite, após o discurso da vencedora de Melhor Atriz Secundária, Da’Vine Joy Randolph — que dedicou boa parte do seu tempo a agradecer a sua publicist acabando por não mencionar o seu nome — Kimmel regressou imediatamente a palco dizendo: “Reparei que falaste muito da tua publicist sem referir o nome dela. Acho que a tua publicist precisa de uma publicist”. O tipo de humor simples mas de raciocínio rápido que mantém uma noite longa a fluir como precisa.
No entanto, foi já perto do fim que Kimmel “ganhou” a noite, voltando do intervalo para ler um post da rede social de direita Truth, onde Donald Trump escreveu, com a coerência e pontuação pouco metódicas a que nos habituou, que Jimmy seria o pior apresentador de sempre dos Óscares, sugerindo a sua substituição e criticando a cerimónia de maneira geral. A este ataque do ex-presidente americano, Kimmel perguntou, simplesmente, se aquele adiantar da hora não seria já “past jail time” (horas de ir preso) de Trump.
A restante cerimónia foi relativamente económica – e bem – de momentos verdadeiramente cómicos, pontuada pelos habituais diálogos-entre-apresentadores-a-fingir-que-estão-a-improvisar-enquanto-leem-o-teleponto (pontos para o de Kate McKinnon e America Ferrara e que mais uma vez envolveu Steven Spielberg), privilegiando-se os artistas e os discursos em prol tentativas mais forçadas de humor. Apesar disto, um dos momentos engraçados da noite foi a entrada nua de John Cena em palco para entregar a estatueta de Melhor Guarda-Roupa, uma referência a um episódio histórico dos Óscares quando em 1974 um ativista invadiu o discurso de David Niven em protesto, despido de roupa e preconceitos.
Num ano de discursos sérios e emotivos como costuma primar a cerimónia dos Óscares – com destaque para o realizador do documentário vencedor sobre a Guerra na Ucrânia – foi bom ver Robert Downey Jr. com a sua ligeireza habitual, começando por agradecer o seu prémio “à sua infância problemática e à Academia, por essa ordem”, naquele que foi o momento de consagração de uma das figuras mais acarinhadas de Hollywood nos dias que correm.
Em termos das performances musicais – e apesar do prémio ter sido merecidamente entregue a Billie Eilish e FINNEAS pela outra canção de Barbie – foi Ryan Gosling (e mais 60 outros Kens em palco) que roubou a noite, com uma apresentação deliciosamente absurda de I’m Just Ken que incluiu mirabolante coreografia, o mítico Slash e transformou momentaneamente o Dolby Theatre num enorme bar de karaoke, com todos os presentes a cantar entusiasticamente a letra de cor.
ryan gosling ‘i’m just ken’ performance at the oscars was so good
pic.twitter.com/ytI00ZUck4— 2000s (@PopCulture2000s) March 11, 2024
E se já por aqui dei muito boa nota à prestação de Jimmy Kimmel, receio no entanto que tenha o seu lugar em risco, uma vez que John Mulaney, comediante de stand up que havia apresentado o Governors Awards em Janeiro (uma cerimónia “secundária” da Academia que entrega prémios técnicos e de carreira) com excelente receção de crítica e público, usou os seus breves minutos em palco para fazer uma rocambolesca e muito engraçada descrição do clássico Campo de Sonhos, arrancando diversas gargalhadas e aplausos da audiência. Não tendo sido um casting oficial, pouco me surpreenderia que Mulaney fosse convocado para o papel principal de uma edição futura dos Óscares.
Num ano em que, sobretudo as principais categorias, foram um pouco previsíveis no seu resultado e em que não existiram sobressaltos inesperados (embora a leitura pouco compreensível de Al Pacino do vencedor de Melhor Filme tenha dado memórias de outros envelopes mal lidos), esta edição dos Óscares fica marcada pela competência da sua execução. A cerimónia continua longa – praticamente três horas e meia – mas o ritmo acertado dos vários momentos e a batuta firme de Jimmy Kimmel nunca deixaram o tédio vencer (para nós aqui em Portugal, a mudança de hora nos Estados Unidos na véspera que fez a transmissão começar mais cedo que o habitual foi também uma coincidência bem-vinda). Mesmo sem ter tido episódios que ficarão para sempre na memórias dos espectadores (raramente isso acontece senão por maus motivos), está terá sido talvez a mais bem sucedida edição dos Óscares da última década.