O Presidente argentino, Javier Milei, completa esta terça-feira os primeiros 100 dias de um Governo limitado pela ausência de leis aprovadas no Parlamento e desafiado a mostrar benefícios do esforço de um ajustamento orçamental com custos sociais, segundo analistas.
“Depois de muitos anos, temos na Argentina um governo que tenta resolver os problemas, sem adiar soluções nem empurrar as decisões antipáticas para debaixo do tapete. É um governo com um diagnóstico correto e com um objetivo claro, mas com problemas de implementação devido à sua hiper minoria no Parlamento”, afirma à Lusa o economista Luis Secco, diretor da consultora Perspectiv@s Económicas.
“Vejo a opinião pública e o mercado disposto a apoiar o governo porque, pela primeira vez, um governo aponta a baixar o défice orçamental, mas para estabilizar a economia e voltar a crescer, gerando empregos, o país precisa de uma mudança de regime que o Parlamento lhe nega. Sem medidas, estamos perante uma mudança de regime incompleta com um plano de estabilização parcial. Por enquanto, pagam-se os custos e não aparecem os benefícios”, adverte Secco.
Milei chegou à Presidência com 55,7% dos votos, apenas 10% do Senado e 15% da Câmara de Deputados. Devido à sua minoria parlamentar, não conseguiu ainda aprovar uma única lei.
“Este é um governo muito ambicioso, reformador e com objetivos maximalistas, algo que surpreende devido à assimetria com o seu poder real em termos institucionais, territoriais e legislativos. Milei tem uma vontade política muito decidida, mas esbarra na sua personalidade agressiva e de confrontação. Pelos seus modos e pela sua inexperiência política”, indica à Lusa o destacado cientista político Sergio Berensztein.
“É um Presidente que se tornou o seu principal obstáculo”, adianta.
No começo de fevereiro, perante a iminente derrota na Câmara, decidiu retirar do debate o pacote de leis chamado “lei ómnibus”, devido aos 664 artigos iniciais. Na semana passada, o Senado reprovou um decreto com 366 medidas, deixando os instrumentos de governo à mercê da decisão da Câmara de Deputados.
Segundo Milei, essas mil medidas iniciais de reformas do Estado e desregulamentação da economia representam apenas 25% das previstas. “Restam outras três mil medidas à espera”, avisou.
Porém, se ainda não conseguiu nenhuma lei, também praticamente não perdeu capital político nem apoio popular, apesar da maior inflação do mundo neste momento.
Desde que assumiu em dezembro passado, o governo Milei acumula uma inflação de 71,3%, consequência de uma desvalorização inicial de 120% e da liberalização de preços, muitos dos quais congelados durante o governo anterior de Alberto Fernández, apesar da inflação acumulada de 1.020%.
“Entre as razões dessa aparente contradição vemos que uma parte do eleitorado repudia o sistema político e vê na frescura e na valentia do discurso presidencial um atributo positivo. Também há um cansaço social com a política tradicional e uma significativa parcela da população que entende as dificuldades atuais como herança do governo anterior. Essa compreensão baseia-se em que todos sabiam que os primeiros meses seriam difíceis, com custos significativos”, interpreta Berensztein.
“Os eleitores de Milei sabiam que seria assim. Como candidato, Milei nunca mentiu. Sempre disse que haveria um ajuste e que haveria muita inflação no princípio. Por isso, Milei manteve o apoio da opinião pública, apesar dos custos de medidas antipáticas”, relembra Luis Secco.
No entanto, durante a campanha, Milei prometia usar uma “motosserra” como símbolo do corte nos gastos públicos, prometendo que, desta vez, o ajuste seria pago pelo que chama de “casta política”, a elite do poder que mantém privilégios à custa do Estado. Porém, até agora, mais da metade do esforço veio do efeito de diluição de salários e reformas.
Sob promessa de reverter o défice orçamental anual de 6,1% em 2023, Milei conta como vitória um superávite financeiro nos dois primeiros meses do ano. “A premissa de défice orçamental zero é inegociável”, garante o Presidente.
Segundo a consultora Empiria, com base nos dados oficiais, a média dos salários em janeiro ficou cerca de 7% abaixo do limiar de pobreza, evidenciando a perda generalizada de poder de compra. Nos últimos três meses, os preços de produtos básicos ficaram acima dos praticados na Europa ou nos Estados Unidos, com salários dez vezes menores na Argentina.
“Se a inflação não diminuir de forma clara, provavelmente o apoio [a Milei nas sondagens] cai porque as pessoas vão sentir que fizeram todo o sacrifício sem obter os benefícios. Quanto mais a inflação durar, mais problemático será”, aponta o economista Luis Secco.
O Presidente procura dilatar os tempos, prometendo à sociedade que, “desta vez o esforço vai valer a pena”, enquanto muda de estratégia. O fracasso inicial com medidas ambiciosas sem negociação prévia com o Parlamento ensinou ao outsider a importância do “jogo de cintura” político com governadores e legisladores, antes de reenviar os projetos de lei.
“Milei precisa de mudar a sua atitude, delegando e adotando maior flexibilidade. Tem de entender que ceder não significa um custo reputacional. Nenhum acordo pode ser fechado com esse grau de obsessão”, afirma Sergio Berensztein.
“Se Milei tivesse adotado essa postura antes, talvez tivéssemos três ou quatro leis prioritárias aprovadas. Em vez disso, temos uma economia em recessão, uma queda do poder de compra que leva a tensões e pressões sociais. Acredito que o governo ainda tenha chances de conseguir um plano económico mais sustentável, mas estamos no limite para isso e já começam a surgir demoras preocupantes”, observa Luis Secco.
“A pergunta dos agentes económicos da população em geral é quanto isto aguenta. Nós, economistas, não sabemos por quantos meses vai durar a paciência social, nem mesmo o próprio Milei sabe”, questiona Luis Secco.
“Não sabemos é qual é o limite da tolerância social”, concorda Sergio Berensztein.