Num episódio mais avançado de O Problema dos 3 Corpos, Jin (Jess Hong) apresenta num quadro uma ideia para fazer avançar a tecnologia humana em várias décadas, talvez séculos. A ideia é arrojada, ninguém na sala parece questionar se é exequível ou não, e é um exemplo puro de como a espécie humana é capaz da auto-superação quando fica enrascada. Contudo, há sempre um “mas”: apesar de nenhum dos cientistas contrariar a possibilidade, aniquilam a ideia de todas as formas que podem. Porque a hipótese não é deles ou porque têm medo do desconhecido? Sabe-se lá. Mas as desculpas diferem, seja por causa do risco de fazer algo não testado ou por causa do custo. Nenhum deles, sem ser Jin, parece estar realmente consciente de que são medidas para salvar a espécie humana e os egos ganham o protagonismo habitual.
Parece um detalhe, mas este momento (só por curiosidade, há outro apontamento ao egoísmo nesse mesmo episódio) realça o refresco que é O Problema dos 3 Corpos. A série da Netflix é o novo projeto de David Benioff e D. B. Weiss, que se juntaram a Alexander Woo para adaptar o best seller internacional de Liu Cixin (por cá, os dois primeiros livros da trilogia estão editados pela Relógio D’Água). Não é a primeira adaptação do livro (há um filme e uma série chineses), mas esta é virada para o mercado ocidental. A obra de Cixin tem um daqueles louros de que se pode gabar: foi a primeira obra de ficção científica asiática a ganhar um Prémio Hugo para Melhor Romance. E é também a aventura de Benioff e Weiss pós Guerra dos Tronos. A fórmula é para repetir? Não. E obrigado. Apesar de terem repescado alguns atores, como Liam Cunningham ou John Bradley.
Isto não quer dizer que O Problema dos 3 Corpos não será um sucesso planetário. Mas, pelo que vimos desta primeira temporada, dificilmente concretizará duas coisas (e ainda bem): fazer pela ficção científica o que Guerra dos Tronos fez pelo fantástico/série de época na televisão; e tornar-se um fenómeno agregador de diferentes públicos, até daqueles que fogem destas coisas a sete pés. E repetimos “ainda bem” porque O Problema dos 3 Corpos não manifesta o peso da obrigação de ser um fenómeno imediato (apesar dos milhões investidos pela Netflix).
[o trailer de “O Problema dos 3 Corpos”:]
Para quem vem à procura de um “novo qualquer coisa”, os dois primeiros episódios iniciais apresentam logo alguma distância, preocupados em criar um mundo no qual o espectador se possa sentir à-vontade nos episódios seguintes. Consegue-o e não empata. A meio da temporada agradecemos aqueles episódios iniciais e toda a informação (e, fica o aviso, a falta de muita outra). Contudo, ao assumir esta posição, Benioff, Weiss e Woo sabem que alguns espectadores ficarão para trás. Problema deles.
Não é desrespeito. É começar de novo. O Problema dos 3 Corpos é uma história no nosso mundo, no nosso planeta, com novos elementos em jogo: extraterrestres. Até aí, o romance e a série são diferentes na forma como tratam os “outros”, um outro que faz-nos olhar para nós. Conscientes disso, os criadores fizeram o que há a fazer numa boa série de ficção científica: falar da nossa humanidade. Daí que a cena dos cientistas reunidos tenha tanto significado: porque é que não metemos as melhores cabeças do mundo numa sala, com recursos infinitos, a pensar numa solução para isto? Para tudo isto? As respostas dos cientistas a Jin clarificam a anterior pergunta: por vezes, nem com cheiro a queimado conseguimos ultrapassar a nossa pequenez.
A série lida com a pequenez humana. De uma forma interessante e em constante renovação (pelo menos nos oito episódios da primeira temporada). O ponto de partida é um jogo interessante entre passado, presente e futuro. Falemos só do passado e do presente, para evitar spoilers. A série arranca durante a Revolução Cultural na China. Conhecemos Ye Wenjie (Zine Tseng e Rosalind Chao) num momento em que vê o pai a ser morto em praça pública. Um pai cientista, tal como ela, que carrega muitas das ideias do antecessor, sobretudo aquelas que vão contra a cultura reinante. É por isso que toma decisões algo dúbias quando é recrutada pelo governo para um projeto secreto que envolve tentativas de comunicação com extraterrestres. Decisões que afetarão todos os habitantes do planeta.
No presente, Ye Wenjie vive nos Estados Unidos, a filha acabou de cometer suicídio por — julga-se de início — ver o seu projeto científico a ir pelo cano por causa de eventos estranhos que questionam todo o conhecimento científico. Mais tarde descobrimos que há outras razões, relacionadas com o facto da mãe ter formado um culto em volta dos San Ti, raça extraterrestre com quem contacta há décadas e que disse que era tranquilo virem para a terra viverem connosco. Só que não (e o “porquê” e o “como” formam um dos melhores twists na televisão recente).
O que sabemos dos San Ti? Fiquemos pelo que nos dizem os primeiros episódios (para evitar, lá está, spoilers). Vivem num planeta com três estrelas. Adaptaram-se a viver nestas circunstâncias que implicam, por causa da órbita (daí o título da série, o problema dos três corpos, que é real na física), a extinção inevitável e irregular da civilização. Por isso, contam o número de civilizações que já tiveram, vão aprendendo com os erros e evoluíram. Mas o seu planeta tem um problema grave, é um tanto ou quanto inabitável: o facto de ser tudo tão imprevisível (entre períodos de verdadeiro inferno ou de gelo total) torna insustentável a existência evoluída. A tecnologia permite-lhes viajar para outro planeta. E encontraram-no. Graças a Ye Wenjie.
É uma série de ficção científica sobre a ameaça extraterrestre? Sim e não. A ideia está lá, mas à medida que os episódios vão passando e elementos novos vão sendo entregues com um bom rigor narrativo, O Problema dos 3 Corpos revela-se como aquela série de ficção científica menos preocupado com informação para um público específico habituado ao género. E estava a fazer falta: usa termos e teorias científicos sem dar a mão ao espectador, coisa hoje tão rara. É verdade que os oito episódios se apresentam como uma introdução para algo maior. Apesar de ao início isso não transparecer, a segunda metade da temporada torna esse pensamento inevitável. Está aqui a base para algo de que iremos falar nos próximos anos.