Quentin Dupieux é o grande excêntrico, o patusco-mor, o rei do absurdismo do cinema francês. Alguns exemplos: emRubber-Pneu (2010), Dupieux filma um pneu homicida; em 100% Camurça (2019), um homem obcecado por um casaco de camurça que tem poderes sobrenaturais; em Mandíbulas (2020), dois imbecis que treinam uma mosca gigante para cometer malfeitorias; em Incroyable Mais Vrai (2022), um casal que se muda para uma casa nova com uma divisão que funciona como máquina do tempo; e em Yannick (2023), o espectador de uma peça de teatro tão má, que fica fulo e decide tomar conta da representação. E os seus filmes costumam durar exatamente 77 minutos. É o máximo rigor no meio do delírio absoluto.

Em Daaaaaalí!, Dupieux volta-se para Salvador Dalí e começa por dar o papel do genial pintor a seis atores diferentes (daí o número de “a” no título), uns com mais tempo de ecrã do que outros: Edouard Baer, Gilles Lellouche, Pio Marmai, Jonathan Coen, Didier Flamand e Boris Gilot. Tudo começa normalmente, nos anos 80, com Judith Rochant, uma jornalista (Anaïs Demoustier) que antes foi farmacêutica, à espera de Salvador Dalí no quarto de um hotel para lhe fazer uma entrevista. Mas quando Dalí aparece ao fundo do corredor a andar sem nunca chegar sítio onde Judith está, o filme entra pelo buraco do coelho do universo nonsense de Quentin Dupieux, e não volta a sair durante os canónicos 77 minutos.

[Veja o “trailer” de ‘Daaaaaalí!:]

Formal e narrativamente, em atitude e em espírito, Daaaaaalí! partilha plenamente do surrealismo do pintor, mas também do onirismo do cinema de Luis Buñuel (sonhos dentro de sonhos dentro de sonhos dentro de sonhos), e ainda do absurdo cómico dos Monty Python, com salpicos dadaístas. E é tudo irrepreensivelmente lógico na sua sequência de situações inesperadas, desconcertantes e mirabolantes, à medida que Judith tenta concretizar a sua entrevista com Dalí (inclusivamente, dentro de um dos sonhos dele), cada vez com mais meios técnicos ao seu dispor e acaba, pelo contrário, a ser entrevistada por ele, usando um bigode à Dalí.

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[Veja uma entrevista com Quentin Dupieux:]

Enquanto isso, e ao som de uma banda sonora minimal-repetitiva-irritante composta pelo Daft Punk Thomas Bangalter, os vários Salvador Dalí riem-se da cronologia, saltam da juventude para a velhice e vice-versa e observam-se em simultâneo nestas duas fases da vida, falam ao telefone enquanto chovem cães mortos, vão jantar a casa do jardineiro e entram no sonho de um padre que será várias vezes alvejado por um cowboy, disparam sobre uma milionária que comprou um Dalí falso enquanto fazem tiro aos pombos, tratam mal o motorista do seu Rolls-Royce e participam na montagem da entrevista que nunca deram ao mesmo tempo que é transmitida na televisão. (O bigode de Dalí, no entanto, é sempre o mesmo).

O Dalí mais extravagante, mais esfuziante e mais física, gestual e verbalmente próximo do verdadeiro, da meia-dúzia que aqui o interpretam, é sem dúvida Gilles Lellouche, um habitué dos filmes de Quentin Dupieux, que pronuncia “Cinematogrrrrrrrrrrrráfico!” como se tivesse deixado possuir pelo espírito do artista. Isto embora o de Edouard Baer, bem como o Dalí jovem e sempre esbugalhado de Jonathan Coen também tenham que ser referidos. Daaaaaalí! é o filme mais conseguido de Dupieux, o auge do seu talento consistentemente original, nonsense e chanfrado, e o OVNI do ano em forma de cinema. O próprio pintor teria gostado e aprovado. Certeza, certezinha.