O bailado AmarAmalia, de 1994, é, ainda hoje, uma da obras mais emblemática da curta história da dança em Portugal. Encheu salas por todo o mundo, foi aplaudida pelos críticos do New York Times e por tantos outros, onde o ballet é uma arte com raízes mais fundas. Foi criada por Vasco Wellenkamp para o Ballet Gulbenkian há precisamente 30 anos e é, ainda hoje, um marco na dança contemporânea portuguesa. Nos jornais alemães, onde chegou a ser comparado a Pina Bausch, escreveu-se que era “um dos bailados mais límpidos” da dança moderna. Na Hungria, comparam-no a Jiri Kyllian ou a William Forsythe. Em 2023, a DGArtes retirou o apoio à companhia que fundou em 1997, depois de deixar o Ballet Gulbenkian, o argumento do júri foi que não estava a ser suficientemente “inovador”, nem abordava “temas sociais”.
E se ninguém imagina a cidade alemã de Uppertal a acusar Pina Bausch de “não inovar” nas suas composições de teatro-dança, nem Nova Iorque a acusar Martha Graham de não abordar temas sociais, ou Merce Cunningham de insistir demasiado nas partituras de John Cage, também ninguém percebe que inovação se pede ao criador, de 82 anos, que inventou a dança moderna em Portugal.
Reconhecendo a importância deste coreógrafo, a Companhia Nacional de Bailado volta a dançar a sua obra, Sinfonia de Salmos, de 1992, num programa que homenageia ainda outros dois nomes maiores da dança contemporânea nascida em Israel: Ohad Naharin e Hofesh Shechter. A temporada estreia-se esta quinta-feira, dia 23 de maio, no Teatro Joaquim Benite, em Almada, pelas 21 horas, e fica até sábado, dia 25, seguindo depois para o Porto e Aveiro.
A propósito deste espetáculo e da estreia, no passado dia 18, de uma nova coreografia para a Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo, inspirada num poema de Sophia, e intitulada Na Substância do Tempo, falámos com o ex-bailarino e coreógrafo de sobrenome alemão, mas tão absolutamente português, que foi uma criança pobre que calçava botas cardadas, deixou a escola aos 13 anos para ir trabalhar e aos 18 aceitou ser bailarino “porque o ordenado era o dobro do que ganhava na loja”. Enfrentou a fúria materna que o queria ver empregado bancário, o preconceito num país onde praticamente não havia homens na dança, a falta de preparação técnica, os rigores do ballet clássico, a competição de bailarinos internacionais, esteve três anos na guerra colonial, combateu o desespero exercitando-se numa barra de madeira no meio do mato, em Angola.
Abraçou a dança contemporânea quando ela finalmente chegou a Portugal e foi sozinho para Nova Iorque estudar com os grandes mestres. Depois da revolução renasceu como coreografo e professor, no Ballet Gulbenkian, na Escola Superior de Dança de Lisboa, criou uma poética e uma linguagem feita de “lifts”, saltos longos e amplos movimentos de pernas e braços, que nascem de uma íntima relação com a música e a poesia. Em 1997, deixou a Gulbenkian e fundou a sua própria companhia, onde está até hoje. É o mais internacional e aclamado coreografo português, driblou várias vezes o destino mas hoje, sentado nos estúdios Vítor Cordón, onde recebeu o Observador, confessa, “tenho muito medo do futuro”.
De onde vem o sobrenome “Wellenkamp”?
Do meu bisavó materno. Só sei que ele era um engenheiro, que veio para Portugal por causa dos caminhos de ferro, entre o Porto e Lisboa, no século XIX. Também sei que morreu muito cedo. A minha avó é que já era portuguesa.
Mas nunca teve nenhum contacto com a família Wellenkamp alemã?
Bem procurei, bem procurámos, encontrámos alguns alemães, alguns holandeses também, porque também há muitos Wellenkamp na Holanda, mas não, nunca encontrei ninguém. Eu acho que a família se perdeu durante II Guerra, e já não encontrei rasto dela
Nasci em plena guerra, 1942. Cresci no Porto e vim viver para Lisboa com 9 anos. Aos 13 anos, comecei a trabalhar numa loja de roupa e a estudar à noite, só fiz o 9.º ano. A minha família tinha muitas dificuldades económicas. A minha mãe era muito nova quando me teve, mal sabia ler e escrever. Mas tive uma infância muito feliz. O período dos anos 40 foi terrível. A maior parte das crianças em Portugal naquela altura não tinham sequer sapatos para calçar. Eu usava botas cardadas. A minha mãe fazia os trabalhos de casa comigo para também aprender…
A sua vida, desde a chegada à dança, até à carreira como coreógrafo. tem sido sempre um percurso muito diferente da maioria das pessoas que se movem no mundo da dança.
Nasci num tempo muito difícil. Na escola só cheguei ao quinto ano, estudei à noite, antes de entrar para a companhia Verde Gaio tive muitos trabalhos. O primeiro foi numa loja de roupas, onde carregava coisas de um lado para o outro. Mas era um miúdo, portanto, ainda queria brincar. Na escola nem sempre podia ter os livros todos. Isso começou criar-me uma angústia. Na verdade, a escola começou quando entrei para a dança e comecei a ganhar cultura, a ouvir música. Esse foi o verdadeiro momento do meu nascimento. A grande transformação da minha vida e o que me deu, de facto, o caminho que tenho hoje.
E como é que um miúdo de 18 anos, que trabalhava com tecidos se torna, de repente, bailarino?
Tinha uma namorada que era bailarina no Verde Gaio e eu ia muitas vezes buscá-la aos ensaios. Naquela altura era muito difícil conseguir rapazes para dançar, a dança era vista como uma coisa que estava ligada à homossexualidade, mas um dia alguém da companhia desafiou-me a ir, a fazer aulas, pagavam um ordenado que era o dobro do que eu ganhava na loja. Aceitei. Mas eu não era sequer atlético, não fazia ginástica, nada. Penso que me acharam bonito e, por isso, me chamaram. Tive aulas de dança só durante um mês antes de começar a dançar. Que horror, não sabia pôr um pé à frente do outro. Mas o mais difícil mesmo foi arranjar coragem para contar aos meus pais, sobretudo ao meu pai. Mas afinal quem aceitou pior foi a minha mãe e o meu pai apenas me disse: “se vais ser bailarino trata de fazer sempre o melhor que possas”. Foi esse conselho que me moveu toda a vida.
Lembra-se de como se sentia a dançar nesses primeiros tempos?
Começou logo a entrar dentro do sangue. Não tinha uma formação, mas tinha uma sensibilidade. Às vezes isso faz diferença, não é? E essa sensibilidade foi o que também o me fez aderir à dança como uma forma de expressão do Eu. Nessa altura, já gostava muito de teatro. Tinha uma paixão pelo ator francês Marcel Marceau. Mas acho que o que fez diferença no meu percurso foi que soube aproveitar as oportunidades que tive. Quando elas me apareceram, aproveitei-as na totalidade. E trabalhei muito para justificar aquilo que estava a ganhar no Verde Gaio e para me desenvolver.
Nessa altura, o teatro de S. Carlos tinha um professor francês que vinha de ópera de Paris e ensinava a técnica clássica. Técnica puramente clássica. À noite, depois do Verde Gaio, ia fazer aulas com ele. Mas claro, comecei muito tarde para ser uma grande bailarino de clássico e, fisicamente, também não tinha as condições, um corpo bem equilibrado, flexível, bons pés, tive que fazer uma grande recuperação para ganhar o tempo perdido. Nunca fui um bailarino de topo.
E no meio de todo esse trabalho e esforço, é mandado para a tropa, para a Guerra Colonial, durante três anos.
Fui para Angola mas, felizmente, nunca estive em combate. É verdade que aprendi a manejar armas e tudo isso. Mas consegui abstrair-me da tropa de tal maneira que só me lembro de muito poucas coisas. É a minha forma de recusa. Primeiro estive em Luanda, mas a maior parte do tempo estive em Santo António do Zaire, no Norte. Foi uma forma de vida estranhíssima. Quando lá cheguei, o comandante perguntou-me: então você é que é o bailarino? Achei aquilo um pouco ofensivo, mas depois percebi que era um bom homem, ao ponto de lhe eu ter pedido autorização para fazer os meus treinos de dança, e ele aceitou.
Eu e os meus colegas montámos um barracão, fizemos uma barra de madeira, arranjámos um tapete para o chão. Passei a treinar todos os dias. Não imagina o calor que sofri sob aquele telhado de zinco. Quando regressei a Lisboa, tinha mais flexibilidade do que quando parti.
Quando regressa vai integrar o recém formado Grupo Gulbenkian de Ballet que, anos mais tarde, se tornaria o Ballet Gulbenkian.
Sim, o Carlos Trincheiras saiu do Verde Gaio para dirigir este grupo e convidou-me para vir com ele. Ali trabalhei com o coreógrafo croata Milko Sparemblek, que foi quem transformou de facto a companhia. Ele vinha da companhia suíça do Maurice Béjart e, na verdade, já era um homem que usava a dança clássica de uma forma mais moderna. Esse período foi muito importante para mim, que foi outra descoberta, a dança Moderna.
Também trabalhei com Walter Gordon, que era um coreógrafo de Londres, trouxe uma equipa de bailarinos, E a partir daí comecei a ter outro tipo de dificuldades, porque uma coisa é ser bailarino do Verde Gaio onde a exigência técnica não era muito grande, outra é estar numa companhia que tem um grupo inteiro de bailarinos ingleses, já com uma técnica clássica muitíssimo mais avançada que nós tínhamos cá.
No início dos anos 70, tinha uma filha pequena, estava com 30 anos e achou que tinha que garantir um futuro que a vida de bailarino não lhe dava. Vai então para os Estados Unidos, estudar com os grandes mestres da dança moderna, Martha Graham, Merce Cunningham e José Limón.
Naquela altura, quando um bailarino já não servia, era mandado embora embora. Não havia reformas, nada. Vi-me com 30 anos a pensar o que fazer com a minha vida, sendo que única preparação que tinha era como bailarino. Foi aí que decidi ir falar com a doutora Madalena Azeredo Perdigão e pedir-lhe para fazer a transição para coreógrafo mas na área do contemporâneo. Naqueles anos, vinham a Lisboa companhias de todo o mundo, conhecíamos o que de melhor se fazia. Os festivais europeus de dança eram preenchidos por companhias americanas, que traziam linguagens completamente novas. A Graham, com toda a escola de “contração/relaxamento”, absolutamente extraordinária, criou uma linguagem técnica totalmente nova. Para poder coreografar daquela maneira ela teve que criar uma linguagem que servisse ao que ela queria fazer, foi buscar muita coisa às danças orientais, ao Yoga, ao Tai Chi Chuan. E isso é absolutamente extraordinário porque é começar do princípio a qualquer coisa completamente nova. Então essa coisa da contração de toda a zona pélvica e das costas, é dificílima, mas permite novos desafios do ponto de vista dos equilíbrios, do controle do corpo, da chegada ao chão, de trabalhar no chão.
Tive então uma bolsa da Gulbenkian para ir estudar dança contemporânea para Nova Iorque, onde estive três anos. Fazia aulas com a Martha Graham de manhã, à tarde com o Cunningham e pelo meio ainda ia fazer uma aula de clássico no American Ballet Theater. Mas o Limón era outra coisa; um homem, de origem mexicana, que começou a descobrir e a explorar uma coisa que era a organicidade do corpo. Quero dizer, eu vou para o chão, mas tenho que saber como ir. Não é simplesmente cair. Eu tenho que fazer todo um movimento de continuidade. Isso marcou-me muito como coreógrafo e apaixonei-me muito mais pelo trabalho do Limón do que pelo de Martha Graham. Ou seja, ele marcou-me mais enquanto coreógrafo.
E como foi trabalhar com os mitos Martha Graham e Merce Cunningham?
A escola da Graham parecia um templo religioso, entrava-se naquele estúdio, não se ouvia uma palavra. As aulas eram silenciosas, meditativas, havia um jardim japonês do outro lado da janela. O chão de madeira estava lisinho de tão gasto pelos pés dos bailarinos. Eu tinha medo dela. Mal falava inglês e não conhecia bem aquela técnica, punha-me sempre nos últimos lugares da fila com receio que ela me achasse muito mau e me expulsasse dali. Era de uma disciplina absoluta. Nem uma palavra do princípio até ao fim. Eu cansava-me, tinha dores de cabeça, sentia-me sozinho, até que me habituei. Sobretudo aprendi que aquilo era também uma aula de concentração e de meditação, de conseguirmos fazer um exercício e senti-lo no corpo todo. O que é uma coisa importantíssima. Muitos bailarinos fazem os exercícios mecanicamente. Um dia a Martha veio ter comigo, nunca mais esquecerei aqueles olhos eletrizantes, pensei que ela iria pôr-me fora da aula mas disse-me apenas: “A sua forma é muito boa”. E eu que me sentia sempre em desvantagem, tinha que repetir muito mais vezes as coisas, fiquei muito corado e agradeci. Creio que o facto de ter feito muito ballet clássico me ajudou a aprender a dança moderna. Do Cunningham não gostei tanto. A dança pura, eu entendia, mas aquilo não me tocava.
Naqueles três anos tive uma coragem como nunca tinha tido antes, entrei por aqueles sítios dentro, pedi para fazer as aulas, fui aceite, integrei-me. À noite, ia ver o máximo de espetáculos que podia. Foi uma formação intensiva que deu assim mesmo. Mas eu precisava disso, vim rico da América. Nasci mais uma vez.
Volta a Lisboa no início de 74 e apanha uma revolução…
A ideia era dar aulas no Conservatório, que tinha finalmente sofrido uma reforma e ia integrar a dança contemporânea, mas ainda continuava a dançar no Ballet Gulbenkian. No dia 25 de Abril estávamos no Porto, em tournée.
A partir dai tudo se complicou, uns queriam acabar com a companhia, retiraram a Madalena Perdigão da Fundação, ficámos sem diretor. Aquilo foi um período terrível. Maravilhoso por um lado, mas péssimo por outro, foi realmente uma revolução. Deixámos de dançar, passávamos o dia a discutir estatutos. Estivemos nisto uns seis meses até termos começado a perceber que a qualquer momento não faria diferença se a companhia acabasse e até haveria justificação pois não fazíamos nada. Estava a dar em maluco. A certa altura, decidi que tínhamos que recomeçar a dançar. Reunimos nove bailarinos e começamos a criar. Foi aí que comecei a coreografar. Fiz um dueto. Fomos à administração da Fundação pedir para preparar e apresentar um espetáculo, eles aceitaram. Fiz então o Concerto em ré Maior de Ravel, e depois fiz o Outono, depois outra peça com música de Handel, fiz um trabalho de “barroco-contemporâneo”, muito à maneira do José Limón. Trazia muita informação comigo e o trabalho correu muito bem. E assim me tornei coreógrafo e professor.
Gostou de ensinar?
Fui muito professor, ainda hoje sou. Quando trabalho com bailarinos, coreografo e ensino em simultâneo. A maior parte dos coreógrafos chega e ensina o que tem a fazer. Quero isto, quero aquilo. Eu habituei-me, desde o princípio da minha carreira a ser professor e, simultaneamente, coreógrafo. Portanto, estava a ensinar o material que queria e, depois, retinha o material do que se criava pelo caminho. Foi assim que consegui introduzir no Ballet Gulbenkian a ideia de contemporaneidade, no plano técnico. A Fundação viu em mim a possibilidade de ser um coreógrafo e deu-me a oportunidade de fazer um programa já no plano, profissional para a companhia. Tudo isto no rescaldo da revolução.
E nunca mais parou de coreografar, até hoje, com 82 anos. Criou centenas de coreografias para companhias de dança de todo o mundo e, em 1997, deixou a Gulbenkian para fundar a sua própria casa, a Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo, em conjunto com a sua mulher, a bailarina Graça Barroso.
Nunca mais parei. Comecei na Gulbenkian, depois fui para o estrangeiro comecei uma carreira internacional e felizmente até hoje nunca parei de coreografar.
É considerado o principal renovador da dança em Portugal, criador de uma linguagem própria, carregada de lirismo, fisicalidade e intimidade que ganhou mesmo o nome de “linguagem wellenkampiana”.
É verdade que a música para mim é um guia fundamental, o que tenho é, na verdade, uma certa melancolia que me aproxima do sentimento poético, onde encontro um certo tipo de respiração que vai ao encontro da minha técnica, que é, se quisermos uma técnica lírica. Não é como a escrita, mas é a minha busca estética da beleza profunda, da organicidade, da respiração, de dar aos bailarinos qualquer coisa que eles sintam, que vivam por dentro e que deem a ver às pessoas.
Também tem utilizado muitas vezes a poesia como ponto de partida.
Sim, mas quando trabalho o Garcia Lorca, por exemplo, começo no poema dele, mais depois vou-me abstraindo das palavras, não quero não é ficar agarrado às palavras do poeta, mas à sensação que ele deixou, às imagens mentais que ele me deixou.
Esta Sinfonia de Salmos, criada em 1992, que a CNB resgata agora para seu repertório, é também ela tirada da parte mais poética da Bíblia.
É um salmo lindíssimo sobre um homem que está no fim da vida e pede a Deus para lhe dar mais tempo para que possa tornar-se um homem bom. Percebe que, durante toda a sua vida, não fez outra coisa senão tratar mal as pessoas. Não foi um homem bom. Gosto muito deste salmo, porque isto tem muito a ver com muita coisa da nossa vida, quer dizer, é sobre a esperança de nos tornarmos, pelo menos em alguma parte da nossa vida, melhores. Está ali a esperança da oração. Está a fé, os rituais cristãos primitivos e, claro, a música espiritual de Stravinsky.
Acredita em Deus?
Sou crente. Acredito em Deus. Sou católico, mas não sou um católico praticante. Além disso, tenho muitas vezes questões existenciais, questões de fé. Acho que sou um cristão pela natureza da educação que tive, pela infância que tive, pelos momentos maravilhosos que tive na infância. Durante um período, tive uma irmã que era protestante e que casou com um pastor. Esse período religioso foi, para mim, muito mais motivador do que a Igreja católica romana. A Igreja metia medo, fazia medo. Ainda hoje, só gosto de entrar numa igreja quando estou sozinho. Estar sozinho, ficar isolado, inspira a meditação, a interioridade. Sinto-me muito feliz quando entro numa igreja. E sou capaz de orar e e de fazê-lo com sinceridade. Vivo muito com esta…(será dilaceração?) de que há tanta coisa que não sabemos. Há um mistério que nunca vamos decifrar e que é aquilo que nos impulsiona.
Como é que se alimenta essa espiritualidade, essa criatividade? Onde é que vai buscar alimento?
A música é o meu primeiro alimento. Basta-me ficar a ouvir música. Às vezes faço uma coreografia inteira dentro da minha cabeça; vejo grupos, vejo passagens, movimentos. Imagens. E gosto muito daquilo que faço, apesar de não ter objetividade de uma narrativa, como tem a dança clássica, construo, com os bailarinos, uma história. Penso que na dança, como na música, há sempre coisas que estão a ser ditas só que não com as palavras, mas com o movimento e a melodia. E as pessoas sensíveis conseguem perceber o que nós estamos a dizer. Também me inspiro nas coisas que vejo na rua, no rosto extraordinário de um pedinte, por exemplo.
Quando desenha um bailado o que mais deseja atingir com a obra que está a criar?
Agarrar toda a gente. Há pessoas que viram coisas minhas pela primeira vez e ficam completamente agarradas do princípio até ao fim do bailado. O que é que isso quer dizer? Que temos a obrigação como coreógrafos de ter os espetadores presos, de fazer com que as pessoas se esqueçam delas próprias para serem transportadas pelos bailarinos. Mas os bailarinos também têm que ter essa capacidade de simbiose, que é o estarem todos de tal maneira dentro da peça, estarem uns com os outros, que fazem com que o público também adira imediatamente ao espírito da obra. Que sintam que estão eles próprios a dançar
Por isso, penso que um bom bailarino tem de saber dançar, mas também tem de ter uma sensibilidade construída. Às vezes, é-se bom tecnicamente mas sem capacidade de comunicar nada, quando a dança é, precisamente, um lugar de subtilezas. A sensibilidade de um bailarino educa-se, pode educar-se. Quando o bailarino é sensível, acaba sempre por lá chegar.
O que é que o levou, em 1997 a deixar o seu lugar de coreógrafo residente no Ballet Gulbenkian para fundar a sua própria companhia e ter uma vida muito mais incerta.
Fui convidado para formar uma companhia em Cascais, pelo presidente da Câmara, José Luís Judas. Nessa altura, havia dinheiro, havia vontade política. Agora, estamos na miséria. Quase a acabar. Se não nos dão uma mão, vamos acabar muito brevemente. Tenho um grande desgosto, porque a CPBC é uma companhia muito boa, muito bonita. É uma companhia que não merecia estar sem apoio do Estado. Mas deixe-me dizer que essa conversa é uma conversa muito dura.
Porque é que uma companhia como a CPBC não tem qualquer subsídio do Estado, quando grupos muito mais pequenos e periféricos têm?
Porque o júri considerou que nós “não inovamos” o suficiente. Ora eu formei dezenas de bailarinos que estão nas melhores companhias do mundo, coreografei para as companhias mais prestigiadas da Europa e do Brasil, tenho peças dançadas em todo o lado. Claro que isto me custa muito a aceitar.
Sou o coreógrafo que sou, coreografo com a minha linguagem. Procuro encontrar momentos esteticamente belos. A beleza, para mim, continua a ser muito importante. A beleza física, a beleza coreográfica e a beleza musical. Hoje em dia vivo muito agoniado com a dança que se faz em Portugal. Não é só em Portugal, mas em Portugal pior do que nunca. Porque somos uns imitadores maus. É possível fazer uma imitação de alguma qualidade, mas nem isso. Temos uma companhia que se chama Parasita, que tem um público que não é mais do que 50 pessoas. O trabalho que eles apresentam é ir para o mercado comprar as frutas, para ter “contacto com as coisas”, para “trabalhar a sensibilidade”, depois vão para uma loja e a pessoa fica atrás do balcão a fazer uns movimentos. É uma coisa tão amadora, aquilo não é dança, é uma coisa de escolinha e foi esta companhia que teve maior apoio do Estado português porque supostamente faz “trabalho social”.
Mas onde está a dança, a dança que, em Portugal foi tão difícil de implementar, foi tão difícil de instituir? Tivemos uma companhia que era considerada uma das cinco melhores companhias do mundo, o Ballet Gulbenkian, onde fui coreógrafo durante mais de 20 anos. A CNBC é a única que, atualmente, em Portugal, se pode assemelhar ao que foi o BG. A companhia tem críticas absolutamente excecionais até do New York Times, mas o júri da DGArtes acha que nós podemos desaparecer.
Como é que têm conseguido trabalhar?
Só continuamos a sobreviver porque temos o mecenato da Allianz. Tivemos mais de 15 mil espectadores em 2023. Atuamos em todo o país, enchemos salas, as pessoas recebem-nos com entusiasmo e dizem “há anos que não via um espetáculo assim”. Portanto, sei que eu tenho uma boa companhia e tenho excelentes bailarinos, muitos deles tão bons como como eram os bailarinos Gulbenkian.
Nas últimas décadas a ideia da dança que vigora em Portugal é a de uma arte que se mistura com causas sociais na moda e onde saber dançar é quase visto como um problema, algo a dispensar.
Entretanto, a maior parte dos projetos de dança que não seguem esta corrente da performance vão desaparecendo. Face ao fulgor que teve a dança em Portugal, nos anos 80 e 90, como é que chegámos aqui?
Há um grupo de pessoas neste país que está no poder, quer seja daquele partido ou outro qualquer, que é profundamente ignorante. Veja este último ministro da Cultura, o Pedro Adão e Silva, não sabia nada de nada e depois seguem todos a cartilha do António Pinto Ribeiro, que é o suposto especialista. Acho esse homem absolutamente inacreditável. Uma fraude. É uma das muitas, porque que este país está cheio de fraudes. Ele elegeu, como “grandes coreógrafos nacionais”, algumas criaturas que não sabem pôr um pé à frente do outro. E isso criou um movimento junto do próprio governo e na Direção-Geral das Artes, nos júris que aplicam aquela cartilha a torto e a direito. Todos profundamente ignorantes, como aquele ministro poeta que entregou a CNB a umas pessoas que não sabiam nada de dança…
E o argumento de que nós CPBC “não inovamos”, quer dizer o quê? Mas a novidade agora é uma coisa que se decreta? Não há ninguém que possa impor uma companhia artística que tenha um repertório mais para aqui ou mais para ali. Têm sim a obrigação de respeitar um projeto artístico que teve, desde o princípio até agora, uma vida nacional e internacional, que justifica que seja apoiado.
E se a questão porque “não falamos de causas sociais” então e todos os bailarinos que formamos? Bailarinos como o Miguel Ramalho que é agora o primeiro bailarino da CNB e que será um grande coreógrafo, isso não é uma contribuição social além de cultural? Será que ter uma bandeira social justifica por si só a existência e o apoio a um projeto artístico?
Estando na dança há mais de 50 anos, desde o tempo em que só havia uma companhia, os Bailados Verde Gaio, até ao aparecimento de grupos e escolas que estavam entre as melhores do mundo, que análise faz do panorama atual?
O declínio da dança em Portugal começa com o fim do Ballet Gulbenkian, porque como estava na Gulbenkian, que é uma instituição muito poderosa, servia como um farol de exigência, de talento. Reforçava a importância da dança, que em Portugal sempre levantou muitas resistências e hoje em dia levanta muito mais. Quem é que quer ver aquelas coisas de vão de escada? 50 pessoas. Sabe quantas vezes é que os políticos puseram os pés num espetáculo de dança? Zero. Portanto, não fazem a menor ideia do que é o nosso trabalho, do valor cultural e artístico das companhias, nada. Distribuem dinheiro e fomentam a ignorância.
Mas ainda no inicio deste ano, o presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, atribuiu-lhe a medalha Municipal de Mérito Cultural. Como é que viu esse gesto?
Gosto do Carlos Moedas, pelo menos é uma pessoa com quem é possível conversar. Também tenho alguma esperança na nova ministra da Cultura, apesar de tudo ela tem um bocadinho mais de background que os anteriores. Mas esta gente que hoje domina a Cultura em Portugal está muito infiltrada no sistema e eu não tenho tempo para procurar influências, trabalho muito, no fim do dia só quero chegar a casa, comer uma sopa e dormir. Tenho bailarinos que, por exemplo, saem cansadíssimos e ainda vão dar aulas porque precisam de sobreviver. Isto é a vida de uma companhia onde se dança oito horas por dia, não se faz teatrinho.
Agora vamos estar dois dias no Castelo de S. Jorge, com um trabalho inspirado num poema da Sophia. Chama-se Na Substância do Tempo, não gosto muito de dança ao ar livre, perde-se um bocado a densidade. Estou cheio de medo que a companhia acabe, será com desgosto enorme para mim. Estou a fazer o que posso, mas estou cheio de medo do futuro.