Não há volta a dar. Mais ano, menos ano, mais pandemia, greves, protestos, streaming e inteligência artificial, a verdade é que o Festival de Cannes continua a ser um dos principais marcos do cinema internacional, ditando quais os títulos mais badalados do ano. Basta ver o que aconteceu no ano passado, com figuras como Martin Scorsese ou Wes Anderson a escolherem a Riviera francesa para mostrar as suas mais recentes obras, mas também como filmes europeus, “Anatomia de Uma Queda” e “Zona de Interesse”, romperam a indústria de Hollywood recolhendo uma boa mão de óscares. Este ano, na sua 77ª edição, Cannes trouxe pesos pesados da velha e da nova guarda norte-americana — Francis Ford Coppola, Kevin Kostner, Paul Schrader ou Yorgos Lanthimos — mas também relevações desconcertantes como o body horror “The Substance” de Coralie Fargeat, “Anora”, que transpira a cor vibrante e sexual dos filmes de Sean Baker (“Project Florida”) ou “Emilia Perez”, de Jacques Audiard, mistura entre musical e drama de cartel. E claro, o regresso, 18 anos depois, de um português, Miguel Gomes, à competição oficial com o seu “Gran Tour”. A Europa, a América e Portugal, juntos, para trazer o melhor que o cinema tem avaliado, este ano, por um júri presidido por Greta Gerwig. Eis a lista dos dez filmes mais badalados que vamos querer ver nos próximos tempos com um destaque extra, sobretudo, para o produto nacional, que contou com seis participações portuguesas no festival. Estão os dados lançados para mais um grande ano cinéfilo.
Megalopolis, Francis Ford Coppola
Não sabemos qual será a melhor história: a da criação deste “monstro” coppoliano que demorou tantos anos a ser criado graças a um orçamento megalómano, a recusas de estúdios em entrar no jogo e ao caos criativo do próprio realizador, ou a do próprio filme. O que é certo é que, se formos pela disparidade de críticas que saíram de Cannes, não vamos conseguir decidir se queremos ver o novo trabalho do homem que nos trouxe “O Padrinho” e “Apocalipse Now”, filme que lhe valeu uma Palma de Ouro há 45 anos. Em “Megalopolis”, uma cidade, a fazer lembrar Nova Iorque, foi destruída e precisa de ser reerguida outra vez. Um império romano 2.0, onde um arquiteto (Adam Driver) vai à luta com o presidente da câmara (Giancarlo Esposito). Luxúria, preversão, megalomania, poder. Coppola disse, em Cannes, que, quando morrer, vai poder dizer que fez o que quis da sua carreira e da sua vida. Nós estaremos cá para avaliar cada momento, se é que isso alguma vez interessou a um homem a quem não podemos negar uma vontade e identidade muito própria. Ainda não se sabe se “Megalopolis” estreará este ano em Portugal.
Oh, Canada. Paul Schrader
Paul Schrader, além de ser uma das pessoas mais interessantes do mundo no que diz respeito à construção de um guião (vale a pena espreitar algumas aulas dele no Youtube), escreveu o “Taxi Driver” e o “Touro Enraivecido”. E, por isso, pode fazer 20 filmes maus que o lugar no Olimpo dos Deuses do cinema já ninguém lhe tira. Durante a conferência de apresentação do seu mais recente filme, “Oh Canada”, em Cannes, disse que sim, que, ao lado de nomes como George Lucas ou Martin Scorsese, sabe que mudou o cinema para sempre. A sua procura obsessiva pelos enigmas e anseios violentos de personagens masculinas à procura da sua redenção traz-nos um novo episódio com adaptação do livro “Foregone”, de Russel Banks, seu amigo. Leonard Fife (Richard Gere que reencontra Schrader tantos anos depois de “American Gigolo”) fugiu da guerra do Vietname para se refugiar no Canadá. Atravessamos a sua vida, com um Jacob Elordi como um dos atores mais atraentes para o mercado neste momento, para conhecermos cada fragmentos deste desertor. Vai estrear em Portugal.
Histórias de Bondade, Yorgos Lanthimos
Nem Emma Stone tinha acabado de comer o décimo nono pastel de nata no seu “Pobres Criaturas” e já estava num set de rodagem com o realizador grego Yorgos Lanthimos para criar o Histórias de Bondade. Numa corrida contra o tempo, a dupla conseguiu que o Festival de Cannes programasse a sua mais recente colaboração que parece mesmo um recuo ao início da carreira de Lanthimos. O que é um ótimo sinal para quem é fã do seu trabalho inicial em “Dente Canino”, e péssimo para quem já estava habituado a vê-lo nas lides de Hollywood dos grandes orçamentos. Uma fábula tríptica sobre um homem sem nenhum domínio da sua vida, um outro homem que vê a sua mulher regressar numa outra versão, e uma mulher à procura de um futuro líder espiritual. Anormalidade, riscos, cultos sexuais, a loucura no seu estado mais puro e fantasioso. E ainda nomes como Jesse Plemons, Willem Defoe, Hunter Schafer, ou Margaret Qualley para ajudar à festa bizarra de Lanthimos. Quem não gosta de ver um realizador a regressar ao início dos seus inícios? Se isto não o convenceu, fique-se pelo trailer, que conta com “Sweet Dreams” dos Eurythmics. Estreia a 4 julho nos cinemas portugueses.
[trailer oficial do filme “Histórias de Bondade”]
The Substance, Coralie Fargeat
A carreira de uma estrela de Hollywood (Demi Moore, a sensação inesperada de Cannes num possível comeback do ano) está a cair em desgraça a cada dia que passa. Misoginia em todo o lado, a única salvação é um novo procedimento médico que fará brotar do corpo da personagem principal um novo e renovado ser (interpretado por Margaret Qualley). A tirania da beleza desconstruída a um ponto ridículo e gore. Sabe-se que Cannes gosta de premiar quem desafia os cânones cinematográficos para criar arrepios, risos e medo às audiências através de muito sangue e preversão (Ruben Ostlund, Triângulo da Tristeza (2022) ou Julia Ducournau, Titane (2021) são exemplos vitoriosos). O cinema que ajusta contas com os poderosos seduz, e muito, a Palma de Ouro. Mas do que se foi ouvindo e lendo sobre The Substance, parece ter sido estabelecida uma nova fasquia. Sobretudo porque Coralie Fargeat, que já foi prestando contas com o universo masculino com o seu violentíssimo thriller Vingança (2017), não pediu licença para falar da brutalidade imposta à condição feminina nos dias de hoje. Até ficamos sem fôlego só de escrever sobre este filme. Não se sabe se The Substance estreará este ano em Portugal.
Shrouds, David Cronenberg
Por falar em body horror e em quem tem dedicado a sua vida a dar-nos a volta à cabeça com o terror psicológico e os desejos mais violentos do ser humano que lhe saem da mente para a tela, David Cronenberg está de volta com o seu “Shrouds”, escrito pelo próprio. O veterano canadiense, com 81 anos, parece ter regressado a um certo estado de graça depois de “Crimes do Futuro” (2022) não ter convencido muita gente. A jogada certa desta história que envolve um homem que perde a sua mulher e desenvolve um negócio para que cada um possa assistir à decomposição, em direto, do corpo do seu defunto, está muito marcada pela própria biografia do realizador: Vincent Cassel, personagem principal, interpreta uma espécie de alter-ego de Cronenberg, que perdeu a mulher em 2017. Quando alguém morre, é suposto escondermos o corpo. Em “Shrouds”, há uma inversão, um cinema-pós morte, como lhe chamou o próprio durante uma entrevista à revista Variety. Cronenberg mostra que velhos são mesmo os trapos, enquanto a sua cabeça quiser continuar a desafiar-nos em toda a linha. Ainda não se sabe se o filme estreia em Portugal este ano.
[a conferência em Cannes de The Shrouds]
Emília Perez, Jacques Audiard
O francês Jacques Audiard sabe o que é ganhar em Cannes. Fê-lo em 2015 com “Dheepan”. Ainda hoje se discute se o género musical no cinema é menor (não é, atenção), entregue a espectáculos de outras categorias, mas a verdade é que “Emília Perez” andou na boca de muita gente no Croisette por conseguir originalidade desconstruído o género musical. Junta um drama sobre um cartel mexicano, onde um dos maiores traficantes decide transformar-se em mulher para começar uma nova vida. No elenco pairam nomes não muito habituais nestas lides como a cantora Selena Gomez (estrela da comédia Murders In The Building, da Disney Plus) ou Zoe Saldana, estrela de filmes da Marvel. Ritmo não lhe faltará, porque os atores param mesmo para cantar. E cor também não. Juntar narcotráfico e cantorias não era, de todo, o que estávamos à espera que saísse de Cannes. Quer dizer, de um qualquer barco milionário, sim. Mas do Palais do festival, não. Não se sabe se estreia em Portugal ainda este ano.
[trailer oficial do filme “Emilia Pérez”]
Anora, Sean Baker
Pode dizer-se que estamos cansados da indústria norte-americana que só sabe vomitar filmes de super-heróis, mas a verdade é que a reação do circuito indie daquele país nos tem convencido e muito. É o caso de Sean Baker, maestro de filmes como The Florida Project ou Red Rocket, que desenham bem os contrastes cheios de história de uma parte dos EUA relegada para segundo plano. Em Anora, acompanhamos uma call girl que se vai enamorar por um filho de um oligarga russo. Acabam os dois por casar. Baker sabe muito bem casar drama e humor para que a audiência sinta alguma compaixão por este role de personagens esquecidas pela sociedade. Há ainda uma oligarquia russa com princípios morais (esta frase só poderia sair de uma crítica a um filme) e uma atriz, Mike Madison (andou por Era Uma Vez em Hollywood de Quentin Tarantino) com muito espaço para brilhar.
Armand, Halfdan Ullmann Tøndel
Seria injusto falar de cinema europeu sem referir um filme de um país nórdico. Na secção Un Certain Regard, Halfdan Ullmann Tøndel traz-nos “Armand”, disputa de escola entre pais que veem uma criança ser acusada de ter abusado sexualmente de outra. Atenção: os miúdos têm seis anos e praticamente não surgem no filme. A fazer lembrar Sala de Professores (2023), estreado em Portugal, e nomeado aos Óscares deste ano, Armand é mais um filme que sabe mexer-se nas areias movediças que saem do universo escolar. A atriz estrela de “A Pior Pessoa do Mundo”, Renate Reinsve, é o chamariz de uma obra criada pelo neto de Ingmar Bergman e Liv Ullmann. Passa-se numa Noruega onde os adultos conspiram, ficam obcecados e transpiram nervos para defender as suas crias. Ainda se está para inventar um cinema tão cru como o que sai do norte da Europa. Temos de o aproveitar bem.
[trailer oficial do filme Armand]
The Apprentice, Ali Abassi
Apesar de não ter sido reportado nenhum incidente maior durante o 77º Festival de Cannes, seria estranho que, dentro da sua programação, não tivéssemos política para mais tarde conversar. The Aprentice, do iraniano Ali Abassi, explora o início da carreira de Donald Trump, que vai “tirar um curso” de corrupção com o advogado Roy Cohn, conservador, homofóbico e homossexual muito conhecido na década de 70. O realizador disse recentemente que achava que o antigo — e possível novo presidente dos EUA, Donald Trump, iria gostar deste The Apprentice, o que não sabemos se seria bom sinal, tal é o egocentrismo daquela figura. E apesar de se apreciar o trabalho de arquivo feito neste filme, o que talvez chame mais a atenção é a das interpretações e dois atores que Hollywood está a saber exportar muito bem. Primeiro, Sebastian Stan, antigo Soldado de Inverno da Marvel feito ator de festivais (foi premiado pelo seu papel em A Different Man na Berlinale deste ano), que dá à luz um Trump muito convincente. E depois, Jeremy Strong, o filho mais velho de Succession que ainda deixa muita saudade, a interpretar Roy Cohn. O cinema não muda resultados de eleições mas pode ajudar a deitar mais uns pozinhos na figura tão, dir-se-á, peculiar que é Donald Trump. Vai estrear em Portugal só não se sabe quando.
[o trailer de The Apprentice]
Lula, Oliver Stone
Perdoem-nos a dureza mas há muito que o norte-americano Oliver Stone largou os tempos do seu Platoon (1986), JFK (1991) ou de Assassinos Natos (1994), para se entregar a um tipo de documentário que surge mais de um lado fetichista do realizador por personagens poderosas do que propriamente por uma vontade de relatar a realidade com uma linguagem ácida e provocadora. É preciso relembrar que Stone foi duramente criticado depois de ter entrevistado, ou diga-se, feito um passeio no parque, com Vladimir Putin. Agora, viaja até ao Brasil para mostrar a sua adoração por Lula da Silva, novo presidente daquele país. Uma revisão da matéria sobre os anos recentes de Lula, com o caso Lava Jato que ditou a sua prisão (e depois libertação) ou a ascensão meteórica de Jair Bolsonaro através de uma máquina de propaganda chamada redes sociais. O acesso exclusivo ao homem que, sem sombra de dúvidas, marcou e ainda marca os destinos do Brasil, é, talvez, a maior atração deste documentário. Esperemos pelo resultado. Ainda não tem data de estreia para Portugal.
[o photocall de Lula em Cannes]
Gran Tour, Miguel Gomes
Custa saber que foi preciso esperar 18 anos para ver um filme português na competição oficial de Cannes. Mas cá estamos e Miguel Gomes mais a sua trupe, com a Pedra do Sapato ao leme, representaram o país com o seu Gran Tour, que junta dois noivos, interpretados por Crista Alfaiate e Gonçalo Waddington, à procura de chegar a um acordo através de uma bela travessia por diferentes paisagens asiáticas. Miguel Gomes, obreiro de filmes que já fazem parte do ADN do cinema português como nenhum outro, como Tabu (2012) e do Volume 1, 2 e 3 de As Mil e Uma Noites (2015) resolveu levar-nos até ao Império Britânico, mas a equipa de Gran Tour andou de um lado para o outro, dentro e fora de estúdios, para criar esta odisseia literária, a preto e branco, que tem tanto de belo como de romanticamente trágico. Escreveu-se que estávamos perante um ensaio que quis desafiar o Palais a embarcar noutro tipo de cinema. Excelente. Mas o realizador não foi o único a pairar em Cannes. “As Minhas Sensações São Tudo O Que Tenho Para Oferecer”, de Isadora Neves marques, “A Savana e a Montanha”, de Paulo Carneiro, “O Jardim em Movimento” de Inês Lima e “Quando a Terra Foge”, de Frederico Lobo (que poderá já ser visto esta semana no IndieLisboa) deixaram água na boca da Croisette. Sabe-se que não é fácil ser-se cineasta em Portugal, mas esta boa representação portuguesa na Riviera francesa só nos pode deixar com vontade de explorar todos estes filmes. A bola está, agora, do lado do público português e da distribuição. Contamos que rapidamente estreiem em Portugal.
[trailer oficial do filme Gran Tour de Miguel Gomes]