Ter uma criança pode significar muita coisa. Uma nova fase, feita de fraldas e ranho na boca, risos, choro e surpresas até então inexistentes. Um desejo concedido há muito esperado, um desafio capaz de testar os limites do ser humano. Ou pode só dar para criar um disco a partir de uma ida ao parque com os miúdos. Não é coisa leve, não, esta de, em bom português, imaginar uma série de canções que possam ser adoradas por um mar de crianças — não vale citar o caso de Taylor Swift para aqui, porque este assunto é sério. Muito sério. Afinal, falamos do virtuosismo (e possível desaparecimento) do rock, esse género que começou a brotar nos idos dos anos 50 em países como os Estados Unidos da América através de uma mistura de géneros, entre o country e o blues, e, hoje, pode estar numa qualquer interpretação colorida do festival Eurovisão.
Levi Martins, fundador da Companhia Mascarenhas-Martins e programador na Casa da Música Jorge Peixinho, no Montijo, Setúbal, com dois filhos, não quer que o rock acabe. Não acredita nessa fatalidade. E foi por isso que resolveu criar o “O roque nunca vai acabar”, editado a 31 de maio e com um concerto especial, virado para o jardim da Casa da Música Jorge Peixinho, já este sábado. “É meu desejo que exista uma relação com o legado deixado pelo rock e não tanto com um género que não é tão abrangente e popular como antigamente”. Um conjunto de temas para novos e velhos, cheio de leões, rotinas e semiologias sobre o roque, género para os ouvidos de “todos os gostos e feitios, feito por interesse ou por amor, para ouvir em qualquer altura, em casamentos, bailes, rituais, feiras ou ditaduras”.
[videoclip da música “Roque ene role animal”]
Neste disco, tudo começou de forma natural. “Não senti que estava a fazer um trabalho profissional a sério, o que despoletou uma espontaneidade criativa, não havia auto-censura. Queria ser o mais honesto possível para os meus filhos”, conta-nos Levi Martins. O primeiro single, “roque en role animal”, começou a acontecer na sua cabeça quando os filhos estavam de férias. O também produtor e programador cultural, queria enviar-lhes qualquer coisa mas não sabia o quê. Era preciso agradar a uma criança de dois anos e a outra de cinco anos. Lá surgiu no carro: trocar os sons dos animais. “Fui criando assim um padrão de rock, desdobrando-me em várias hipóteses, não houve, por isso, estratégia nenhuma, nunca pensei que ia sair daqui um disco”, afirmou. Mas saiu. Saíram, aliás, nove canções que dão liberdade àquilo que parece regra na vida. Os filhos foram participando na construção das sonoridades, sendo primeiros espectadores de tudo, até dos ensaios, com críticas construtivas já com a obra feita. As referências ao dia-a-dia, do mais mundano às idas ao parque, quiseram mostrar um pouco daquilo que significa ser pai — que, diga-se, tem também muito da atitude que emana do rock. “O ‘roque rotina’, por exemplo, nasce dessa observação, troquei toda a ordem dos seus dias, como se o adulto estivesse a dizer que podiam fazer tudo do avesso”, diz. Aviso: não há estudos científicos que garantam que, depois de ouvir “O roque nunca vai acabar”, o seu filho comece a dormir de dia e a fazer os trabalhos de casa no bidé lá de casa.
Em 2023, ano em que editou Songs of sorrrow and despair, Levi Martins resolveu, então, criar este “roque nunca vai acabar”. Passaram vinte anos desde o seu Ocean of Time. Tirou um mestrado em Estudos de teatro, fundou uma companhia com a mulher, manteve-se músico em diferentes espectáculos, foi emigrante. O que o artista musical ainda não tinha feito era lançar um disco totalmente em português. “Sempre escrevi em inglês, como, neste caso, não havia o tal sentido de responsabilidade, foi mais fácil decidir ser em português porque tinha muita vontade em comunicar com os meus filhos”. Em duas semanas as canções estavam todas escritas. Mais complicado é responder à pergunta do Observador sobre se este disco não é uma espécie de grito contra o fim do rock tal como o conhecíamos. Não, nada disso. “Pode ter acabado, sim, mas há um grande reservatório de música ao nosso dispor que começou nos anos 50 nos EUA. Podemos sempre voltar a esse rock. Depois, claro, há muitas ramificações deste género pelo mundo fora. O meu gosto é eclético, nasci nos anos 90, quando o grunge rebentou. O rock vinha de um lado inconformista, de esticar a corda. De não perder a vontade de comunicar. Era isso que queria passar aos meus filhos”, disse.
No próximo dia 1 de junho, sábado, a banda — André Reis, Filipe Peuch e Diogo Arranja — que acompanhará Levi Martins vai estar dentro do auditório da Casa da Música Jorge Peixinho mas o público fica no exterior. Porque o roque, rock, rocha, o que se quiser, é para abanar o capacete, dos oito aos oitenta. Antes, este projeto já passou por várias escolas de freguesias do concelho do Montijo, de Pegões a Sarilhos Grandes. Espera-se que faça uma tour. “Fazia sentido fazer esse concerto aqui, onde estão as nossas criações”, diz o artista. É gratuito. Toda a família está mais do que convidada. Pode ser que um pai ou uma mãe se lembre de mostrar outro rock qualquer aos filhos. E depois? Depois logo se vê se Levi Martins regressa em nome próprio no universo musical. Mas a música não lhe sai da mente. Nem o teatro que, até 2026, vai de boa saúde na Companhia Mascarenhas-Martins, com apoios públicos assegurados. “Nunca deixei de fazer música, passei pelo cinema e agora o teatro. Nunca se deixa de ser músico. Quanto à companhia, estamos estáveis, tanto quanto possível. Podemos respirar, mas seria bom que não voltássemos para trás, que é o que acontece nesta área: estamos sempre a recomeçar”, finalizou.