No verão de 1971, Fernando Rosas, então com 25 anos, foi condenado a 14 meses de prisão correcional. Rosas estava há vários anos envolvido na contestação à ditadura — já tinha passado pela militância comunista e estado na fundação do MRPP em 1970. Mais de meio século depois, no ano em que se comemoraram os 50 anos do 25 de Abril, voltou ao Forte de Peniche, onde esteve preso na década de 1970, para defender a importância da memória histórica da luta antifascista em Portugal.
O historiador, que integra a Comissão Executiva do museu ali recém-inaugurado, voltou esta quinta-feira a Peniche na companhia de Catarina Martins durante uma ação de campanha do Bloco de Esquerda, partido que ajudou a fundar em 1999. Durante cerca de uma hora, Rosas conduziu a cabeça-de-lista e uma comitiva de outros bloquistas (incluindo o número dois da lista, o eurodeputado José Gusmão) numa visita guiada personalizada pelo museu.
Através dos corredores da prisão convertida em museu, onde alguns painéis digitais ainda estavam a ser finalizados, Fernando Rosas guiou Catarina Martins por uma exposição que evoca os tempos sombrios do Estado Novo, as prisões políticas, os horrores do campo de concentração do Tarrafal, mas também as raízes da luta antifascista em Portugal, ainda na clandestinidade.
No corredor de cima, o historiador voltou mesmo a entrar nas celas solitárias e recordou a vida “militarizada” na prisão, com a maior parte do dia a ser passado dentro da cela, interrompido apenas por uma hora de recreio nos dias sem chuva, os apitos com que os presos eram chamados para as refeições ou os baldes em que eram obrigados a fazer as necessidades. A saída do forte foi feita pelo percurso seguido em 1960 por Álvaro Cunhal e outros dirigentes comunistas, na célebre fuga de Peniche — Fernando Rosas detalhou a Catarina Martins os pormenores das preparação e da execução da fuga.
Um dia depois de também a campanha da CDU, liderada por João Oliveira, ter visitado o museu, Catarina Martins quis passar pelo Forte de Peniche no quarto de campanha eleitoral para as europeias para defender a preservação da “memória” da luta antifascista. “Os fascismos, que surgiram em vários tempos da história, sempre a dizer que queriam libertar os povos, acabaram, sim, a torturar os povos”, disse Catarina Martins aos jornalistas à saída da visita guiada.
A cabeça-de-lista do Bloco de Esquerda aproveitou a deixa para voltar ao tema que tem atravessado toda a campanha — a defesa da causa palestiniana e a colagem da extrema-direita europeia (incluindo André Ventura) aos regimes de Vladimir Putin e de Benjamin Netanyahu.
Catarina Martins repetiu as acusações lançadas no comício do dia anterior, concretamente quando se referiu a Marine Le Pen como a “amiga de André Ventura” que, na fundação do seu partido, recebeu mais de nove milhões de euros de financiamento de Vladimir Putin. “Todos estes partidos [da extrema-direita europeia, que alinham no grupo Identidade e Democracia, como o Chega] estão ligados pelo financiamento de Vladimir Putin. São Putin na Europa”, atacou a bloquista.
Falando ao lado de Fernando Rosas, Catarina Martins também lamentou que em tempos tenha existido um projeto para transformar o forte de Peniche num hotel. “Felizmente, não foi assim, porque houve quem se levantasse contra essa ideia. Hoje, é um museu que nos mostra o que foi o fascismo, o que foi a violência da ditadura em Portugal e também o que foi a coragem da luta anti-fascista, a resistência, fazer a revolução”, destacou. “Essa memória é extremamente importante para fazermos escolhas sobre o nosso país, a Europa e o mundo.”
Também a partir do Forte de Peniche, Catarina Martins voltou a disparar contra Israel, reiterando a ideia de que “a opinião pública é a maior superpotência” que pode travar Israel e voltando a atacar o Governo da AD por não reconhecer a Palestina como estado. “A posição do Governo português é insuportável. Dizer que não se reconhece a Palestina porque ainda é cedo, não sei se estão à espera que esteja toda a gente morta ou exilada para finalmente reconhecerem o estado da Palestina. A esmagadora maioria dos países do mundo já reconheceram”, destacou Catarina Martins.
“Na Europa é preciso fazer esse caminho. Há países que o estão a fazer. Portugal tem de o fazer já. É preciso mesmo já posições muito fortes de sanções e embargo a Israel”, assinalou Catarina Martins, acusando a União Europeia de ter “dois pesos e duas medidas” para Israel e Rússia: se, por um lado, sanciona Putin, por outro lado, mantém a cooperação com Israel. Mas, diz Catarina Martins, ambos os regimes são agressores e invasores. Isto significa, de acordo com a cabeça-de-lista do Bloco de Esquerda, a “descredibilização completa da UE a nível internacional”.
“Como é que os outros países vão respeitar a UE como um espaço que foi criado para que o direito internacional fosse cumprido, contra crimes de guerra, contra genocídios, se depois há dois pesos e duas medidas?”, questionou.
De Peniche a caravana de Catarina Martins seguiu para o Entroncamento, onde a candidata almoçou com um grupo de cerca de meia centena de apoiantes. A cabeça-de-lista do Bloco fez apenas um discurso breve, no qual repetiu aquilo que já tinha dito em Peniche e voltou a atirar contra André Ventura e o Chega — acusando-o de ser “amigo” dos regimes de Israel e da Rússia.
Mariana Mortágua reforça comício para atacar PS e AD
Do Entroncamento, a caravana do Bloco de Esquerda subiu até Coimbra, para um comício que juntou cerca de uma centena de apoiantes no Parque Manuel Braga, nas margens do Mondego. Nos discursos do comício, Catarina Martins foi acompanhada por Anabela Rodrigues (a número três da lista do Bloco) e pela coordenadora do partido, Mariana Mortágua, que se juntou para desferir fortes ataques em simultâneo ao PS e à AD.
A coordenadora do partido recorreu à crise na saúde para se voltar contra o executivo de Luís Montenegro (a propósito do plano de emergência apresentado na quarta-feira), mas também contra o PS, que lança como candidata às europeias Marta Temido (a ministra que Mortágua acusa de ter degradado o SNS).
Mortágua acusou o executivo de Luís Montenegro de estar, “de forma cobarde”, a “enterrar e acabar com o SNS”, aproveitando um “erro crasso” da governação socialista. A líder bloquista recordou que o BE apoiou as respostas urgentes da Covid-19. “Mas não perdoamos ao PS — e Marta Temido foi ministra — uma guerra contra os profissionais”, acusou Mariana Mortágua, lembrando os muitos médicos e enfermeiros que saíram de Portugal.
“Estivemos a financiar profissionais que agora estão a sustentar os hospitais ingleses”, defendeu Mariana Mortágua, acrescentando, por outro lado, que o PS “deixou 1,7 milhões de utentes sem médico de família”, o que foi o “preço da irresponsabilidade” do PS.
Para Mortágua, esta crise na saúde “não foi por falta de aviso”. A líder bloquista lembrou, em Coimbra, a proposta de António Arnaut e João Semedo para uma Lei de Bases de Saúde, um “legado” que o PS “recusou”. O PS “desprezou esse testamento e estamos com 1,7 milhões sem médico de família”.
Já sobre o plano de emergência apresentado por Montenegro na quarta-feira, Mariana Mortágua considerou que se trata de “muito powerpoint e poucos compromissos” — e, além disso, “nenhuma conta”. “Nem um euro foi apresentado neste plano de emergência para saúde”, atirou Mortágua, acusando Montenegro de se estar a preparar para “cumprir” uma promessa eleitoral, mas apenas aos grupos privados da saúde: dar-lhes “muito dinheiro”.
Para Mortágua, o plano apresentado por Montenegro não passa de um mero PowerPoint que, na verdade, é só um “plano de negócios para o setor privado da saúde em Portugal”, que se limita a prever uma “distribuição de verbas para empresas dos apoiantes da direita”.
O plano, continuou Mortágua, traduz o “profundo desprezo” da direita pelo SNS. Criticando os novos vouchers telefónicos que substituem o cheque cirurgia, Mariana Mortágua diz que “até podem mandar pombos correio” para casa das pessoas, mas “o que as pessoas querem é o seu médico de família”. No entender de Mariana Mortágua, a “direita não quer saber do bem-estar nem da saúde”, mas apenas pretende dar lucro aos grupos privados. Um dos exemplos apontados foi o dos consultórios privados, que passam a poder ser médicos de família “pagos pelo OE”.
“É este o estado grande que a direita adora”, acusou Mortágua, classificando-o como “a mão protetora do estado sobre o lucro privado”. “A direita só sabe governar quando tira o que é de todos para dar só a alguns”, destacou.
Catarina Martins foca-se nas regras orçamentais da UE: “É preciso ler as letras pequeninas”
Antes de Mortágua, tinha falado a própria cabeça-de-lista do Bloco às europeias, Catarina Martins, que se multiplicou em ataques à direita num discurso quase inteiramente centrado nas recém-aprovadas regras de governação económica da UE. Catarina Martins apontou à “aliança da direita tradicional, direita liberal e extrema-direita” que pretende impor “recuos” quando o que é necessário são novos “avanços”.
Mas Catarina Martins também visou o PS, lembrando que as novas regras europeias foram negociadas também pelos socialistas. “É muito bonito ver esta aliança, PS, PSD, CDS, IL, todos de acordo”, afirmou.
A cabeça-de-lista recordou os tempos da troika, em que havia “umas regras que tinham mesmo de ser cumpridas” e que eram impostas por quem “ninguém elegeu”, e lembrou depois o tempo da pandemia, em que as regras foram “suspensas”, uma vez que a pandemia afetou a totalidade da Europa — que tinha aprendido “com a crise financeira”.
Passado o período da pandemia, a UE começou a discutir “novas regras”, que, no entender de Catarina Martins são, basicamente, um regresso “às regras antigas”, mas com um novo foco na “flexibilidade”, em que cada país pode ter, consoante a sua realidade, “trajetórias diferentes”. Porém, advertiu a bloquista, as novas regras da governação económica da UE são como “os contratos dos seguros”, em que “é preciso ler as letras pequeninas”.
“A flexibilidade não é dos países, é da Comissão Europeia”, afirmou. “Quando a Comissão Europeia tiver de escolher se é mais flexível com França ou com Portugal… A flexibilidade nunca caminhou a favor dos países do sul.” Como lembrou Catarina Martins, “desde que a dívida esteja acima dos 60% do PIB — spoiler alert: estão todos —, a Comissão Europeia mantém o poder de decidir” sobre a despesa pública de cada país.
“Nunca a Comissão Europeia teve o poder de dizer se Portugal tem ou não dinheiro” para pagar a “médicos e professores”, defendeu. “É um ataque à nossa possibilidade de responder a crises.” “É uma verdadeira irresponsabilidade dar à Comissão Europeia, que ninguém elege, o poder”, destacou ainda.
“Não nos resignamos a ser o país dos salários portugueses e da conta de supermercado alemã”, afirmou ainda Catarina Martins. “A Europa tem de ser vida boa em todo o lado.”