Quando morreu de tuberculose, no dia 3 de junho de 1924, num sanatório nos arredores de Viena, o judeu de Praga, neto de um talhante e filho de um pai irascível, nascido nos derradeiros anos do império Austro-húngaro, com uma terrível consciência “do horror da vida” deixava publicada uma inquietante novela intitulada A Metamorfose, alguns contos e fragmentos que receberam do público pouco mais que uma fria indiferença. Essa obra, que entregou numa velha mala de viagem ao amigo, Max Brod,”para ser destruída”, viria a tornar-se um dos momentos determinantes da literatura, da cultura do século XX, originando não só uma capacidade de ver as formas de poder invisíveis da nossa sociedade, mas também uma mudança na sensibilidade humana para com as suas manifestações totalitárias.
A segunda Guerra Mundial, o genocídio dos judeus, os Campos de Concentração, o poder das massas desumanizadas pela obediência, indiferença, a ausência de compaixão pelo sofrimento dos outros, antes de estarem na Alemanha Nazi, estavam dispersas pelo mundo, estavam nas famílias, nos escritórios, nas fábricas, no coração de cada um e no universo kafkiano; contos, novelas, romances que, muitos dirão terem sido um pronúncio do Holocausto, uma denúncia, outros dirão serem fruto da cultura judaica com o medo e a culpa profundamente enraizados, ou mesmo de um complexo de Édipo nunca resolvido. Porém, como mostra Elias Canetti, esse outro judeu, búlgaro de origem sefardita, criado também no seio do decadentismo vienense, são tão simplesmente fruto da mente de um homem que se sentia tão totalmente aterrorizado, humilhado, envergonhado pela sensação de ser fraco e inadequado ao ponto de ter desenvolvido uma tal sensibilidade às formas de poder, que foi capaz de ver as suas mais perversas manifestações, onde os outros não viam nada.
Entre 1912 e 1922, escassos 10 anos, Kafka escreveu obras como A Metamorfose, O Processo ou O Castelo, cuja “singularidade é inultrapassável”, mas que não nasceram de um olhar visionário, profético e sim das suas próprias experiências: uma vida de funcionário de uma companhia de seguros, desajeitado, algo hipocondríaco, algo misantropo que, obstinadamente, rejeitou todas as formas de sujeição que lhe foram impostas. Da carne nas refeições da família, à obediência ao pai, do tempo certo dos relógios, ao casamento, do emprego como funcionário, ao mobiliário funéreo das casas burguesas, das multidões, à obrigação de sentir e manifestar certos afetos pelos outros, nomeadamente pelas crianças. O facto de a sua obra ter nascido mais da sua vida concreta que da sua imaginação, não a impede de conter um mistério, um segredo, que até hoje não deixou de se adensar.
” Temendo o poder sob todas as suas formas, o verdadeiro objetivo da sua vida consistiu em evitá-lo igualmente sob todas as suas formas, pressentindo-o, descobrindo-o, nomeando-o, representando-o em toda a parte onde os outros não o podiam ver…”
(Elias Canetti, Um Outro Processo)
Apesar disto, o escritor está nos antípodas daquilo que pode ser considerado um rebelde, pois não só nunca foi um homem revoltado, como a ideia de participar em algo coletivo o repugnava absolutamente. Mais próximo de ser uma personagem de Robert Walser, o escritor suíço que muito o influenciou, um cão, uma toupeira, uma ratazana ou uma barata, Kafka queria apenas uma coisa, como nos mostra Canetti, lendo os diários e as cartas que ele deixou: queria ser pequeno, pequeno como um animal, pequeno ao ponto de desaparecer, pois essa era a única forma que ele imaginava poder escapar aos poderes que o constrangiam e humilhavam. Incapaz de confrontar diretamente a prepotência ele retirava-se, desaparecia, ficava em silêncio, mas nunca se submetia.
Várias vezes ao longo da vida se comparará “a um verme”, se sentirá “como um cão”. Os animais pequenos, inofensivos e talvez repugnantes, enchem a sua obra, como manifestações de fraqueza, de falta de poder, como alvo do nojo e do desprezo dos outros e de si mesmo. São insetos rastejantes, toupeiras, cães vadios, mas são também os criados, os servos, os bobos, os que traficam indulgências, os condenados. Como notaram os filósofos Deleuze e Guatari, as suas personagens, mesmo quando são poderosas, têm sempre as costas inclinadas para a frente, ou a cabeça caída em direção ao peito. Numa carta à sua eterna noiva, Felice Bauer, de quem ele fugirá como Fernando Pessoa fugiu de Ophélia, escreve: “Se não te tivesses deitado entre os bichos, também não poderias ter visto o céu com estrelas e não terias sido resgatada. Talvez não tivesses de todo sobrevivido de todo ao medo de estar de pé. Comigo não é diferente”.
Felice, Grete, Milena, cartas de amor e de guerra
“A Alemanha declarou guerra à Rússia. Natação à tarde.”, esta lacónica entrada no diário, feita por Kafka, em 1914, é, hoje muito citada como uma manifestação da total indiferença e alienação. Nada mais errado, até porque essa frase só passou a ser vista assim por um mundo que apenas descobriu a força da indiferença e os monstros que ela produz porque Kafka os mostrou não como facto mas como fábula. É certo que ele tinha horror aos fenómenos coletivos, à multidão, à violência, que se sentia demasiado fraco para combater, mas nos alvores do seu desespero para fugir ao casamento com Felice Bauer, e à vida em casa dos pais, chegou a tentar, por várias vezes, ser incorporado.
Tímido, desajeitado, inseguro, demasiado magro, com grandes olhos de animal acossado Franz que se sentia sempre alvo de desprezo, durante toda a sua vida, viveu o amor e o ódio mais através da escrita que através do corpo. Por isso, uma boa parte da sua obra é epistolar, e nela se revelam, tantas vezes, os acontecimentos, pensamentos, sonhos, memórias que estiveram na origem dos seus livros.
Desde logo a célebre Carta ao Pai, dirigida a Hermann Kafka, o pai déspota, grande e forte, por quem Franz nutriu sentimentos complexos de amor e ódio, inferioridade e vergonha e onde muitos tentaram ver a chave dos seus problemas mentais e físicos, da sua insubmissão ao poder, da sua incapacidade de amar, da sensação de estar irremediavelmente “perdido para as relações humanas”, como disse numa carta a Felice. Entre a indiferença e os arrebantamentos, entre o desejo de fugir e o desejo de amar, deixou centenas de cartas: confessionais, queixosas, manipuladoras, cruéis, covardes e ainda assim, de uma extraordinária franqueza. E, como defende Elias Canetti, é delas que extrai a força anímica para escrever os romances e contos e é por causa delas que ele sentirá preso e condenado ao mais terrível destino:o casamento.
Quando, em 1912, conhece a jovem judia alemã, Felice Bauer, Kafka inicia um dos períodos mais turbulentos, difíceis e criativos da sua vida. Do jantar em casa de Max Brod, na noite de 13 de agosto até à ultima carta, em 1917, onde consegue romper definitivamente a relação com a desculpa de estar “a morrer”, serão 5 anos de um longo e tormentoso noivado feito de arrebatamentos, repulsa, desespero, encontros breves, traições, projetos de casamento, pânico, planos de fuga, durante os quais escreve parte da sua obra mais importante: Na Colónia Penal, A Metamorfose, O Julgamento, O Processo…
Depois de conhecer Felice e começar a trocar cartas com ela, Kafka que, até então pouco tinha escrito, redige, em poucas semanas a sua obra mais importante, A Metamorfose, além de vários contos, e muitas entradas no diário. Publica dois pequenos livros entre 1912 e 1913. Os primeiros meses são intensos e apaixonados mas, logo a paixão dá lugar ao recuo, às duvidas e ao medo, FK começa a sentir ameaçada a sua solidão, o desejo de se dedicar integralmente à escrita, ou ao sonho, mirabolante, de desaparecer para as profundezas de uma cave, onde viveria como um animal, sendo apenas alimentado por uma pequena porta. Na descrição desta cave, onde ele se imagina a viver e escrever totalmente livre, não há como encontrar ressonâncias de toda a sua obra futura, mas também a sorte de Gregor Samsa no seu devir-animal, e todas as criaturas acossadas que ele criará nos anos seguintes.
Nesses anos, Franz vivia em casa dos pais, tal como uma das suas irmãs, o cunhado e sobrinhos. Não suportava o barulho em redor, em especial das crianças, odiava a família, o emprego como agente de uma seguradora, queixava-se constantemente de insónias, nervos, dores de cabeça. Vigiava o corpo, jejuava, não comia carne, sentia-se sempre fraco, demasiado magro e doente. Nadava, fazia ginástica, dava longos passeios, desejava ter apetite, sono, isolamento. A magreza envergonha-o desde a infância, sente-a como uma manifestação da sua falta de poder, da sua incapacidade de dominar. Apesar de já ter quase 30 anos, só tem uma vaga experiência sexual. Não é casto, frequenta prostitutas, mas pressente que as relações amorosas, rapidamente, se tornam numa prisão chamada “casamento”. E, para ele, o casamento, a família, a paternidade, a vida aburguesada, uma casa cheia de móveis escuros e pesados, são coisas que crê não serem muito diferentes de um emprego no escritório ou na fábrica, sempre vigiado, julgado, acossado. Em 1914, depois de mais uma rutura com Felice, adianta o relógio de pulso uma hora e meia, numa recusa de viver submetido ao “tempo real”. Custa-lhe, especialmente, que Felice não partilhe com ele um idêntico desejo de uma vida quase ascética.
Apesar disto, logo dá por si a pedir Felice em casamento pela segunda vez e ficará encurralado numa situação da qual demorará muito tempo a sair. Não tem coragem de terminar a relação e tentará que seja ela fazê-lo. Escreve-lhe cartas de muitas páginas onde elenca todos os seus defeitos, todas as razões que existem para ela se afastar. Adia ao máximo os encontros, refugia-se em termas e sanatórios, envolve-se mesmo com outras mulheres, entre elas Grete Bloch, amiga de Felice, a quem ele escreverá renovadas e idênticas cartas de amor. Não ridículas e infantis como as de Pessoa a Ophélia, mas belas peças literárias sobre a impotência da alma, a irresolução, a ansiedade, a incapacidade de amar, o desamparo.
“Felice: escreveste um dia que querias estar sentada junto a mim, enquanto eu escrevo:fica sabendo que, então, eu não poderia escrever(…) Escrever significa mesmo abrir-se até ao excesso. Por isso, não se pode estar suficientemente só, quando se escreve, por isso, não se pode ter silêncio suficiente à sua volta quando se escreve, a noite ainda é demasiado pouco noite”.
Escrever é a única felicidade que conta, por isso engendra várias formas de fugir desta noiva, entre elas um triângulo amoroso, perverso, com Felice e Grete, que terminará com ambas apaixonadas por ele, com ciúmes uma da outra e com Grete a mostrar a Felice algumas das cartas que Franz lhe escreveu, onde ele confessa todo o seu horror à ideia de casar com Felice, o que inclui uma curiosa, e kafkiana, descrição da repulsa que lhe causam os dentes de ouro da rapariga. Tudo isto terá o seu apogeu com as duas mulheres a confrontarem-no, a acusarem-no e a julgarem-no, num quarto de hotel em Berlim, em julho de 1914. Kafka ouve tudo em silêncio e não se defende. Passa a referir-se a este acontecimento como “o tribunal” e nunca parecerá dar-se conta do sofrimento que lhes infligiu.
Logo em Agosto, com os ecos da grande guerra e memórias do seu “julgamento” por Felice e Grete, começa a escrever O Processo, que terminará em 1915, mas só será publicado em 1925, já depois da sua morte. O incrível romance sobre Joseph K, um homem que um dia é preso por um crime que ninguém saberá dizer qual é, e onde ele mostrará a face do mundo como um imenso tribunal invisível, que não serve para provar a inocência ou a culpa, mas apenas para acusar e condenar.
Na condenação de Joseph K, como na morte de Gregor Samsa, todos colaboram, indiferentes, todos obedecem a um poder arbitrário e invisível. Porque todos, afinal, são servos que esperam, entre o medo de serem também condenados ou o desejo de serem juízes. Não há redenção. E, apesar de se ter interessado pelo Sionismo e desejar conhecer a Palestina, Kafka não encontra Deus nem a Terra Prometida. Nem ele, nem as suas personagens, que habitam sempre um “mundo primevo”, anterior “à separação entre deuses e demónios”, como observa Roberto Calasso.
Em 1920, Kafka inicia uma relação intensa com a jornalista checa Milena Jesenská, a correspondência trocada foi compilada no livro Cartas a Milena. Em 1922 vai para Berlim viver com a jovem Dora Dymant até a doença progredir a ponto de ele ser transferido, na primavera de 24 para o sanatório onde morreria, junho. No seu último inverno em Praga escreve ainda o mais impressionante de todos os seus contos:O Covil, justamente, aquele que muitos aconselham ser a melhor porta de entrada no mundo kafkiano.
Milena, tal como as três irmãs de Kafka morrerão em campos de concentração, Felice, no entanto, emigrará, logo em 1936, para os Estados Unidos onde viverá até 1960 e será a única a assistir à ascensão do atormentado Franz a astro maior da literatura universal.
K.,uma letra que se tornou sinónimo de terror
- Josepf K., Kimmel, K. ou Kafka, todos eles homens que esperam uma ordem, uma decisão, emanada por um poder sem rosto, uma sentença emitida por um “tribunal invisível”, uma condenação por um crime que nunca saberemos qual foi. Tal como na vida, na qual sempre se sentiu um falhado, desejando a invisibilidade, também na escrita, o escritor judeu, não deixou de procurar o mais nu, o mais ascético, o menos artificioso. Só se aceitarmos a literalidade das palavras, se rejeitarmos as metáforas, os bons sentimentos seremos capazes de perceber o verdadeiro terror que há neste mundo que Kafka nomeou, descreveu, e que, no fundo, todos conhecemos, todos sabemos que está aqui, no meio de nós.
A sua linguagem simples, “é a linguagem dos servos, das criadas”, como observa o editor e intelectual alemão Roberto Calasso, no ensaio intitulado K. que as edições 70 acabam de verter para a língua portuguesa. É uma linguagem que só designa coisas concretas, por isso, consegue chegar ao máximo da ambiguidade, do paradoxo, e de uma “intensidade paralisante” que mantém os seus universos, personagens, espaços, na fronteira entre o familiar e o estranho. “De entre todos os escritores, Kafka é o maior especialista em poder, no duplo sentido de “poder” e “potência” diz Calasso, e consegue dar a ver esse poder invisível mas reticulado, tentaculando-se por todo o lado, da arquitetura dos seus espaços de eleição (quartos exíguos, tocas, caves, muralhas, castelos), à vida psíquica dos indivíduos, às doenças que pairam sobre o corpo numa ameaça velada e constante.
Porque as personagens, os lugares os acontecimentos são apenas parcialmente descritos, como se não passassem de esquiços, de ideias incompletas, sonhos ou alucinações, quando entramos nas histórias kafkianas nunca podemos ter a certeza de nada. Isso é visível logo a partir de 1912, quando escreve A Metamorfose, o mais famoso dos seus romances, onde um homem, Gregor Samsa acorda um dia transformado num animal nunca especificado, não obstante, a fúria comercial das editoras insistir em ilustrar todas as capas com uma barata, algo que Kafka recusa desde a primeira edição, em 1916.
É porque a força da narrativa reside precisamente na ambiguidade de não sabermos que bicho é aquele, se é um delírio de um funcionário que quer escapar ao patrão, um homem que quer escapar à família, ou se é uma família que trata um homem inválido como um bicho. É porque tudo aqui está na iminência de uma transformação, que nunca saberemos se Joseph K. cometeu ou não um crime, se não é ele mesmo o réu, o juiz, o carrasco ou apenas um cão. Se K. será ou não promovido por quem manda no Castelo, ou se a criatura do Covil ou o seu perseguidor são um animal, uma pessoa ou uma “massa informe”, como aquela coisa que ronda a criada Pepi n’O Castelo, algo que ela nunca vê, mas a mantêm presa no quarto.
Embora descrente da recém descoberta Psicanálise, Kafka, irá, como ninguém antes o fizera, desvendar um mundo na fronteira entre o sono e a vigília, o pesadelo capturado no instante máximo do horror, condenando o sonhador a viver nele para sempre. Estranhos mundos, que, como nota Walter Benjamim, foram a forma pela qual Kafka “se solidarizou com todas as criaturas”.
Ao longo destes 100 anos, muitos foram os escritores e filósofos que tentaram entender, explicar, questionar Kafka. Walter Benjamin foi um dos primeiros com o ensaio Kafka, escrito logo em 1934, e onde o filósofo, também judeu, que havia de morrer a fugir dos nazis, nota a importância e a singularidade do autor checo. Muitos outros lhe seguiram; Nabokov, Borges, Kundera, Canetti, Deleuze, Maurice Blanchot, Bataille, Agamben, Calasso. A literatura e o mundo ganharam o adjetivo, “kafkiano”, o cinema, a ópera, a dança, o teatro têm interpretado e reinterpretado as obras que a passagem do tempo apenas torna mais misteriosas. Um dos seus mistérios reside, precisamente, na forma como ela não cessa de ser tão assustadoramente atual hoje, como era há 100 anos, nos alvores dos totalitarismos que pensámos ter deixado para trás. Aquilo que mata está sempre perto, a rondar, invisível porque interiorizado, aceite, normal ou esquecido.
Em Portugal o autor que mais se aproximou do universo de Kafka foi Gonçalo M. Tavares. Já este ano, a Relógio D’ Água publicou um volume que reúne contos, parábolas e fragmentos, que se junta ao esforço de publicar toda a obra do escritor traduzida do alemão. Aproveitando a data outras editoras fizeram sair novas edições de A Metamorfose. Mas o grande destaque é mesmo a publicação de K, o ensaio de Roberto Calasso, ele próprio um construtor de mundos. Neste volume, publicado originalmente em 2002, o escritor italiano ilumina e redimensiona o universo kafkiano, através de instigantes ligações à mitologia, à linguagem.