O resultado não foi bom, a lesão de Kostic piorou ainda o cenário. Mas, convenhamos, o que perdeu a Sérvia depois da derrota frente à Inglaterra pela margem mínima além dos três pontos? Nada. Para quem vê de fora parecia óbvio, para quem sente as coisas por dentro nem por isso. Assim, e depois desse desaire que nem por isso deixou de manter tudo em aberto até ao apito final, a Sérvia encontrou o seu pior adversário: a própria Sérvia. E a veia autofágica de uma seleção com jogadores de topo mas uma estranha tendência para o abismo quando tem de funcionar como coletivo ficou mais latente ainda na zona mista em Gelsenkirchen.

“Sou o líder desta equipa, sou o capitão desta equipa. Já falei com o treinador, sou o melhor jogador de toda esta equipa e devia ter feito os 90 minutos completos. Teria sido diferente se estivesse no campo desde início mas pronto, é assim…”, atirou Dusan Tadic, avançado de 35 anos que está agora no Fenerbahçe depois de ter brilhado sobretudo no Ajax. “Já falámos, pediu desculpa pelo que disse, a história chegou ao fim”, explicou agora o selecionador Dragan Stojkovic, tendo apagar outro fogo entre um conjunto balcânico que parece andar sempre numa constante ebulição que faz saltar a tampa quando os resultados não aparecem. Agora, tinham de aparecer, mesmo tendo em conta que, apenas como Sérvia, esta era a primeira aparição num Europeu após ter sido duas vezes finalista vencida como Jugoslávia, sendo que o dia até foi marcado pela ameaça de saída da prova se Croácia e Albânia não fossem castigadas por cânticos ofensivos.

Do lado contrário, a Eslovénia surgia quase como um extremo oposto a todo este rebuliço. Tem uma grande referência na baliza que é Jan Oblak, tem uma estrela em ascensão no ataque que é Benjamin Sesko, tem um conjunto de jogadores que fazem das fraquezas individuais as forças para o coletivo ser competitivo, como se viu no empate conseguido diante da Dinamarca no último quarto de hora com golo de Erik Janza. Essa é uma matriz quase distintiva do país: pode ter estrelas mundiais nas mais diversas modalidades como Luka Doncic ou Tadej Pogacar mas tem a preocupação de não resumir nenhum duelo a one man show. Ou seja, este era quase um confronto entre o fogo e o gelo, com essa nuance de quem ganhasse ficar on fire para chegar pela primeira vez aos oitavos e quem perdesse quedar-se congelado à espera da sua sorte e do azar de outros.

A primeira parte do encontro foi um exemplo paradigmático do perfil supracitado de cada uma das equipas. Bem mais organizada no plano coletivo, a Eslovénia teve dois remates num início de jogo onde esteve por cima que foram travados por Rajkovic entre uma combinação entre Sesko e Mlakar que merecia um melhor destino (8′) e viu ainda uma bola bater no poste numa jogada de Elsnik que aproveitou os espaços que foram sendo criados pelos movimentos de Sesko e Sporar na frente para rematar na área (38′). Por seu turno, a Sérvia, sempre à espera que o individual conseguisse desbloquear aquilo que o coletivo não tinha capacidade para inverter, beneficiou de dois lances com perigo de Vlahovic e Mitrovic na área mas com Jan Oblak a ter saídas providenciais para manter a baliza a zeros (28′ e 40′). O nulo ia subsistindo ao intervalo.

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O segundo tempo, esse, começou com outra história. A Sérvia como que percebeu o risco que corria em caso de não vitória e acelerou processos, tendo logo a abrir mais uma oportunidade por Mitrovic após combinação com Tadic que foi travada por Jan Oblak (47′). A Eslovénia como que percebeu o risco que corria em caso de derrota e retomou as saídas rápidas em transição, tendo de seguida uma boa combinação com remate de fora da área de Sesko para frente defesa de Rajkovic (59′). A seguir, mais do mesmo: Stojkovic mexeu na equipa, a forma como Vlahovic e Lukic reagiram a essas opções disse tudo, a equipa desligou e os eslovenos aproveitaram da melhor forma, com Karnicnik a começar a jogada que foi concluir à área após cruzamento de Elsnik (68′). Mitrovic teve uma bola na trave (72′), Samardzic atirou ao lado (81′) mas o 1-0 continuava sem mexer até que Oblak e companhia foram traídos pelo último lance do encontro, com Luka Jovic a saltar mais alto na área após um canto no lado direito do ataque sérvio para fazer o empate de cabeça (90+5′).

A pérola

  • Rajkovic fez um jogo muito competente na baliza da Sérvia, daqueles de “engate” que várias vezes foram destacados na Liga espanhola pelo Maiorca, mas a exibição de Jan Oblak mostrou bem a importância de ter um dos melhores guarda-redes do mundo na equipa. E não foi apenas pelo número de defesas que fez mas sim pelo grau de dificuldade que cada uma encerrou, a segurar a Eslovénia sempre que era mais necessário. Aos 31 anos, o número 1 do Atl. Madrid é daqueles jogadores que merecia contar com mais participações em grandes provas no currículo e a estreia em Europeus tem reforçado essa ideia.

O joker

  • Karnicnik é um dos muitos jogadores eslovenos menos conhecidos do público em geral, que joga no seu país (Celje) após passagens por ligas europeias mais periféricas como a da Bulgária (Ludogorets Razgrad) mas que respeita os princípios mais básicos que o futebol deve ter, como mostrou no lance em que inaugurou o marcador: espaço para sair com bola controlado, diagonal para o meio para abrir linhas de passe, abertura na esquerda com Elsnik a receber tendo Janza a passar pelas costas para criar essa dúvida no adversário e cruzamento para a conclusão do lateral direito de 29 anos ao segundo poste. No entanto, o espaço para ser até o MVP do encontro foi reduzido aos 90+5′, quando Luka Jovic teve uma das poucas ações com sentido desde que entrou e garantiu um ponto fundamental para a Sérvia.

A sentença

  • Com este empate resgatado “a ferros”, a Sérvia continua a depender apenas de si no apuramento para os oitavos, tendo ainda assim de vencer sempre a Dinamarca na última jornada do grupo. Para a Eslovénia, o desalento no final do encontro era bem percetível: apesar de ter dois pontos, só uma vitória com a Inglaterra garante de forma segura a passagem à fase seguinte, sendo que um terceiro empate coloca a equipa a correr por uma das quatro melhores posições entre os terceiros classificados.

A mentira

  • Os minutos iniciais da segunda parte mostraram aquilo que a Sérvia consegue fazer quando o seu jogo coletivo sai de forma mais fluida: encosta o adversário ao seu primeiro terço, fecha os espaços de saída em transição, cria oportunidades através de combinações rápidas a um/dois toques. Questão? Mais uma vez, isso foi mais exceção do que regra, neste caso uma exceção de cinco minutos. E até a forma como Lukic e Vlahovic reagiram às substituições mostrou bem como o conjunto sérvio é um autêntico barril de pólvora sempre pronto a explodir que condiciona por completo pelo desequilíbrio anímico tudo o que podia ser em termos coletivos perante tanta qualidade que tem do meio-campo para a frente.