Todos os anos morrem peregrinos em Meca. Mas os números raramente são divulgados pela Arábia Saudita. Este ano foi uma das excepções: 1.301 pessoas perderam a vida nos cinco a seis dias da peregrinação mais famosa do Islão, a Hajj.
É verdade que o principal responsável foi o calor: temperaturas até os 52º, o que, em si, não é uma novidade na região. A diferença é outra: 86% das mortes foram de peregrinos ilegais, que recorreram a agências de viagens e redes fraudulentas e ficaram assim privados das condições necessárias para aguentar o calor, provocando as suas mortes.
Sobe para 1.301 número de peregrinos que morreram em peregrinação a Meca
Vários jornais de todo o mundo —incluindo o Observador — noticiaram o calor escaldante, que variava entre os 47º e os 52º, matando cada vez mais pessoas: a meados de junho, havia 14 mortos e 17 desaparecidos. Sensivelmente duas semanas depois, o número de mortes quase centuplicou.
Imagens. Peregrinação muçulmana a Meca já provocou 14 mortos, devido ao calor
Este ano, contrariamente ao que é habitual, a morte de milhares de peregrinos foi notícia nos jornais sauditas.
Em 2023, o jornal Arab News destacava os 3.2 milhões de passageiros que passaram pelos aeroportos sauditas. Os mais de 2.200 voos para diferentes países. E as mais de 1.148 milhões de malas de viagem que foram manuseadas graças à iniciativa Bag-Free Hajj. Houve ainda um aumento de 86% de participantes por comparação a 2022. Maioria dos peregrinos eram oriundos da Indonésia. Em segundo lugar, estava a Índia, e depois o Paquistão. A Hajj era, assim, aos olhos do jornal árabe, um verdadeiro sucesso.
Em 2024, o Arab News apresenta outras contas e chega a 1.301 pessoas que morreram na peregrinação, citando um comunicado do Ministério da Saúde saudita.
No entanto, e como o The New York Times apontou, é difícil determinar se este é um valor atípico: a Arábia Saudita não tem por hábito dar a conhecer estatísticas nem números deste tipo. O único dado significativo nesse sentido é um estudo de 1985, no qual se conclui que pelo menos 1.700 peregrinos morreram por causa do stress.
Seja como for, o governo saudita não assume responsabilidades, a julgar pelo comunicado emitido: a peregrinação foi um sucesso. O jornal SaudiGazette refere que o sistema de saúde garantiu mais de 465.000 serviços de saúde especializados, 30 mil ambulâncias e outras 95 ambulâncias aéreas. E aproximadamente 6.500 quartos e camas.
Na mesma nota, o ministro da Saúde saudita, Fahd Al-Jalajel, lamenta de “forma sincera e sentida a morte dos peregrinos”, enquanto explica que as respetivas famílias foram devidamente notificadas e receberão um “certificado de óbito”.
Deixando as mortes de parte, Al-Jalajel descreve o desempenho dos serviços de saúde como “bom” e saúda o empenho das equipas de assistência médica que ofereceram até 1.3 milhões de serviços preventivos, como vacinas e exames médicos realizados à chegada no país. Não houve doenças epidémicas entre os peregrinos, sublinha ainda.
Na verdade, o governo saudita considerou a Hajj, que decorreu de 14 a 19 de junho, um êxito, com um total de 1.8 milhões de peregrinos, sendo que 1.6 milhões eram estrangeiros como avança o The Guardian. Outro responsável garantiu que não foi o governo saudita que falhou, mas sim as pessoas que “não consideraram ponderadamente os riscos”. Ou seja, a culpa não foi seguramente do governo, e o calor também não é o único ou o principal culpado.
Segundo indica a nota emitida pela Arábia Saudita, não foi só o calor que matou todas estas pessoas: a falta de documentos legais — em específico o Hajj Permit — impediu os peregrinos de aceder a zonas onde houvesse aspersores e certa proteção do calor — 86% das vítimas mortais eram viajantes, ou peregrinos sem os requisitos exigidos. E isso, como aponta o The Telegraph, levou o governo e as autoridades sauditas a impedirem os peregrinos de aceder a áreas seguras, que ofereciam proteção do sol.
Em vez de percorrem quilómetros em autocarros com ar condicionado e tendas modernas com as mesmas comodidades, estas pessoas terão percorrido quilómetros debaixo de sol abrasador. Inicialmente, a pé. Depois, em macas, já quase sem vida, havendo vários peregrinos que dizem ter visto pessoas a desmaiar e até corpos a serem transportados. O país mais afetado foi o Egito, com 658 mortes, sendo que só 20 eram de peregrinos registados, como avançou o The Guardian.
Outros países árabes, como a Tunísia e a Jordânia, bem como a própria Arábia Saudita, denunciaram o mercado ilegal em torno deste ritual religioso. Segundo avançou o The New York Times, pelo menos 400.000 peregrinos não tinham documentos, recorrendo a agências de viagem que garantem vistos turísticos — diferentes do referido Hajj permit— e o acesso à Arábia Saudita.
Segundo os preceitos, cada muçulmano deve fazer a Hajj pelo menos uma vez na vida. Porém, com pacotes que variam entre os 4.500 e os 10.000 euros, muitos fiéis, desesperados, veem-se obrigados a recorrer a esquemas duvidosos.
Uma vez que chegam à Arábia Saudita, os peregrinos encontram-se em redes complexas. Perante a impossibilidade de pagar mais e com medo de represálias por parte do governo saudita caminham sem acesso a meios para aguentar o calor.
Este ano, este mercado ultrapassou os meios do sistema de imigração saudita. Várias agências de turismo terão cobrado aproximadamente 3.000 euros a diferentes peregrinos sem, porém, lhes garantir as condições adequadas e necessárias para concretizar o ritual islâmico, explica o The New York Times.
O Hajj Permit, documento obrigatório que assegura que a peregrinação à Meca seja legal e segura é distribuído pelos países em quotas e sorteado pelos candidatos. Várias agências de viagem garantem a viagem com vistos turísticos. Estes, contudo, não permitem o acesso a tendas climatizadas nem a autocarros com ar condicionado, nem às referidas “áreas seguras”.
Perante esta situação, o governo egípcio — tendo sido o Egito o país mais afetado — começou a investigar várias agências de viagem para lhes retirar as licenças e evitar uma situação semelhante no futuro.
O The New York Times explica ainda que há vários peregrinos que preferem correr o risco de deportação e até serem banidos da Arábia Saudita, a não fazer a Hajj. Não tendo meios para sequer recorrer a agências de viagem, ficam entregues a transportadores que os levam por estradas perigosas, onde os deixam. A partir de aqui, caminham sob o sol ardente. Se conseguirem, até Meca, se não morrerem entretanto.
E quando não morrem, desaparecem. O The Guardian publicou um artigo sobre um homem desesperadamente à procura da sua mulher, Hoda Nagib. Com 51º, o casal, de mais ou menos 60 anos, caminhou 20 quilómetros até chegar ao Monte Arafat. Separaram-se. Quando o marido — que decidiu manter o anonimato — regressou, não a encontrou. Graças a outros peregrinos, dirigiu-se ao hospital em Mina, onde lhe disseram que, uma vez recuperada, Hoda tinha partido. Por enquanto, não conseguiu contactar com a mulher.
Editado por Dulce Neto