Depois de duas audições centradas na administração do medicamento Zolgensma a duas gémeas luso-brasileiras, menores de idade, no Hospital de Santa Maria, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) voltou-se esta terça-feira para o processo de atribuição de nacionalidade portuguesa às crianças — concluído escassos meses antes da primeira consulta no Hospital de Santa Maria. A ex-ministra da Justiça Catarina Sarmento e Castro, que titulava o Instituto dos Registos e Notariado (IRN) quando o caso das gémeas veio a público (em novembro de 2023) foi chamada à CPI e recusou que tivesse havido, em 2o19, algum “tipo de influência” externa para acelerar a atribuição da nacionalidade.

“Dentro do que me foi transmitido pelos serviços, não se encontra aqui nenhum tipo de influência para que este processo tenha andado de forma mais célere”, disse a ex-governante, acrescentando que, segundo informação que lhe foi remetida pelo IRN, os processos das gémeas foram enviados pelo consulado de Portugal em São Paulo para o IRN a 2 de setembro, tendo sido integrados os assentos de nascimento a 16 de setembro de 2019, ou seja, 14 dias depois, tal como já avançara o Observador. Um prazo que a ex-ministra considera ser “razoável”.

“Aquilo que na altura me explicaram os serviços, pela averiguação que fizeram dos casos à época, foi que esta média de 14 dias tinha sido uma média razoável”, revelou Catarina Sarmento e Castro. Houve mesmo, garantiu, “três processos de bebés mais céleres”, concluídos em poucos dias. Contudo, vários advogados habituados a processos de nacionalidade disseram ao Observador nunca terem contactado com casos resolvidos em 14 dias como o das gémeas tratadas com Zolgensma.

Chega questionou celeridade do processo e deslocação dos serviços consulares ao hospital

Uma ideia reforçada com insistência pelo Chega ao longo da audição, de cerca de três horas. “O consulado diz que [estes processos] podem demorar até um ano, e pelo menos seis meses”, diz André Ventura, questionando Catarina Sarmento e Castro se “acha normal” que o processo das gémeas luso-brasileiras tivesse sido tramitado em 14 dias. A agora professora da Faculdade de Direito da Faculdade de Coimbra contrapôs que as crianças “obtiveram a nacionalidade em 14 dias, tal como as outras crianças”. A ex-ministra explicou que, no que diz respeito à intervenção do IRN, o procedimento é simples e até deveria ter sido concluído com maior rapidez.

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“A verificação devia ser mais célere do que os 14 dias se houvesse pessoal suficiente. Quando o processo vem todo instruído, o registo é uma operação que não tem complexidade. Pode e deve ser feito com rapidez”, defende Catarina Sarmento e Castro, sublinhando que “o que demora é a instrução do processo” nos consulados. A ex-ministra da Justiça de António Costa lembra também que os processos de pedido de nacionalidade “não começam no dia em que o funcionário do consulado envia informação para a justiça”. “Se há atrasos nos consulados não posso responder por isso”, defende a ex-governante.

Segundo a mãe das gémeas, Daniela Martins, o processo foi iniciado em abril de 2019, ainda antes do diagnóstico de Atrofia Muscular Espinhal ser conhecido.

Outro dos temas quentes que marcou a audição foi a deslocação de representantes do Consulado de Portugal em São Paulo ao hospital onde estavam internadas as gémeas luso-brasileiras, em 2019, de modo a recolher dados necessários (inclusive fotografias das bebés) para a emissão dos cartões de cidadão portugueses. André Ventura questionou o procedimento, dando a entender que teria havido um favorecimento por parte dos serviços consulares. “O cônsul e os seus amigos foram ao hospital tratar do cartão de cidadão”, chegou a dizer André Ventura. Ainda que mais tarde, desafiado pela deputada o Bloco de Esquerda Joana Mortágua, sobre se tinha conhecimento de que fora o cônsul em pessoa a ir ao hospital, Ventura tenha recuado, referindo que se não foi o cônsul foram os seus representantes.

“As crianças não podem ficar sem nacionalidade”, disse Catarina Sarmento e Castro

Em resposta, a ex-ministra da Justiça lembrou não tutelava os serviços consulares, uma vez que esses serviços estavam na esfera do Ministério dos Negócios Estrangeiros. “Eu não tive conhecimento desse facto de se terem deslocado ao hospital”, afirmou a ex-governante, acrescentando, no entanto, que, atualmente, “os cartões de cidadão podem ser emitidos num hospital”.

Em resposta à deputada da Iniciativa Liberal Joana Cordeiro, a ex-ministra da Justiça defendeu que “as crianças não podem ficar sem nacionalidade” e que “é natural que os processos [nestes casos] sejam céleres”. No entanto, não se trataria de um caso de crianças apátridas (sem nenhuma nacionalidade atribuída), uma vez que as gémeas Maîte e Lorena têm, naturalmente, nacionalidade brasileira.

Ex-ministra deu instruções à Inspeção-geral para auditar os procedimentos do IRN

Já na parte final da audição, Catarina Sarmento e Castro revelou que depois de ter conhecimento do caso das gémeas, determinou que “as auditorias da Inspeção-Geral dos Serviços de Justiça pudessem visar especificamente os serviços do IRN [Instituto dos Registos e Notariado]” e os procedimentos daquele instituto público nas situações de atribuição de nacionalidade. Catarina Sarmento e Castro não explicou, no entanto, se o serviço de inspeção do Ministério da Justiça chegou a fazer essa fiscalização nem o que foi concluído

Perante a insistência da ex-ministra de que não dispunha de elementos adicionais uma vez que não tutelou o serviços consulares nem era ministra da Justiça à data dos factos, os grupos parlamentares do Chega e da Iniciativa Liberal decidiram propor a audição de mais dois ex-governantes.

A deputada da IL Joana Cordeiro fez um requerimento oral para que a comissão chame Augusto Santos Silva a prestar depoimento e o Chega fez o mesmo mas em relação à ex-ministra da Justiça Francisca Van Dunem, que exerceu funções entre 2015 e 2022. Os dois pedidos serão agora votados antes da próxima audição, a do advogado da mãe das gémeas — Wilson Bicalho –, na próxima sexta-feira, às 14h.