Saída do balneário

A cerveja não se compra, aluga-se. Evoco estas sábias palavras num suspiro de alívio. Nem meia hora desde que entrei na renovada Portugália e eis-me aqui, no seu renovado WC, a devolver duas imperiais à casa. Nisto, a escuridão abate-se sobre mim. Percebo então que estou sozinho na assoalhada e que terei de convencer o sensor de luz de que há gente. É uma manobra delicada que implica sacudir todo o corpo que não está a uso, sem me desenquadrar da cerâmica Valadares. Lá consigo enfim que os leds disparem sem que eu falhe o alvo.

Prossigo. 1,2,3… breu outra vez. Concluo que a luz aguenta precisamente 10 segundos. Ora, 10 segundos é tempo de sobra para muita coisa. O Usain Bolt correu 100 metros em 9.58 (embora não conste que estivesse aflito) e ouvi falar de um gaiato que resolveu o cubo de Rubik em 6.20, usando apenas uma mão (tivesse eu esse talento e ficaria com a outra livre para acenar). Mas é manifestamente pouco para uma unidade de urgências diuréticas. Fica a nota.

Entrada em campo

Na sala espera-me um velho amigo inglês (perguntam vocês: “ó Arnaldo, vais à Portugália e levas o teu próprio bife?” Boa piada, gosto de vos ver assim animados). Há muito não nos víamos, o meu amigo e eu, chegámos com saudade e uma sede antiga e ficámos a matar ambas no balcão da entrada. Foram 15 minutos a vazar jolas enquanto não vagava mesa, entretidos com uns croquetes. E aqui vos deixo desde já três boas notícias.

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A primeira é que as imperiais (2€) valem cada minuto do aluguer: os copos gelados, a cerveja tirada a preceito, gasosa qb, a espuma no ponto, um perigo em dias de calor. A segunda: os croquetes (1,7€) servem-se acabadinhos de fritar, bem secos, o recheio triturado além da conta, mas saboroso. A terceira é que os bancos altos são ótimos, amplos e almofadados ou, na versão do camone que me acompanha, prostate-friendly, contrariamente ao sensor de luz do WC. E tudo isso torna a experiência de balcão muito agradável.

Primeira parte

Temos mesa. São agora 14h30 de um dia feriado e a casa está lotada. Estamos a 10 de junho, dia de Portugal e da Portugália: faz hoje 99 anos que a cervejaria que começou por ser cervejeira abriu portas na Almirante Reis e a ocasião é celebrada com um rebranding que envolve nova imagem, nova decoração, retoques no menu e a inevitável ladainha de um novo conceito.

“Mudámos muita coisa, mas não mudámos nada”, diz a campanha. É um esforço louvável. A verdade é que a Portugália está com pinta, mais elegante e arejada, e ainda assim reconheço o lugar de afeto, cerveja e colestrol que sempre foi para mim. Além disso, não é todos os dias que vemos uma quase centenária ainda com energia para fazer um facelift, sobretudo agora que Betty Grafstein se pirou para a América.

E a mudança nota-se. No serviço atento, simpático e bem formado, na decoração sóbria de tons claros, no logo estilizado que mantém a forma das quinas que são brazão da casa, no painel de azulejos Viúva Lamego (assinados por AkaCorleone), nos ecrãs que cobrem todos os ângulos de visão para os dias de bola, na frescura indisfarçável da montra de marisco que repousa no balcão. Até na caca se nota.

É que o recheio de sapateira é outra boa notícia. Da minha última visita, há um par de anos, ficou-me a memória de uma carapaça atulhada de maionese e ovo cozido, sem vestígio do animal e tudo a saber a frio. Esta que agora me serve de entrada (8€) chega fresca, sabe a marisco, traz fios de carne da caranguejola, um travo ligeiro de pickle e perfume de cebolinho. Mudou a receita, sem mudar a oferta. Golo.

Penálti

Na renovada Portugália tudo cheira a novo menos os bifes — seja o que está sentado à minha frente, que é moço da minha idade; seja o que me calhou no prato, que parece igualzinho ao último que aqui comi. E isso, lamento informar, não é grande notícia. A verdade é que o mais icónico prato da casa há muito que não é convocado para qualquer seleção decente de bifes nesta cidade. E se há coisa que merecia mudar era isso.

Pedimos duas vazias mal passadas com molho à Portugália. Trouxeram-nos dois nacos de proteína triste, sem sinal de gordura própria, passados à exaustão e depois afogados numa solução aquosa de margarina essossa. Se acham que estou a ser duro, haviam de trincar o bife. Penálti claríssimo.

De saída, dois cafés e dois ovos estrelados. Nada de errado aqui, é o nome que dão à sobremesa comemorativa dos 99 anos e que imita um zigoto frito. Tem a sua piada. Bolacha no fundo, nata por cima, doce de ovo ao meio, uma daquelas combinações infantis que não tem como errar. Podiam chamar-lhe nata do céu ou doce da casa e continuava tudo certo.

Intervalo

Mas o jogo não acaba aqui. Esta é a primeira de duas visitas e posso adiantar-vos que quando regressar, daqui por uns quinze dias, as coisas hão-de correr genericamente melhor. E agora perguntam vocês: “ó artolas, se estás a escrever no presente, como podes estar a comentar uma refeição futura?” Bom, antes de mais fico feliz que estejam a ler com atenção suficiente para perceber a manigância e que continuem a interagir enquanto escrevo. Depois, peço-vos que compreendam o presente narrativo como um recurso estilístico: é uma forma de tentar tornar interessante este cenário em que eu me empanzino e vocês ficam a ver.

Segunda parte

Estamos então agora a 24 de junho, são 13h55, a casa está bem composta mas sem tempo de espera, repete-se a simpatia no atendimento à chegada. Hoje almoço no balcão central. Trago nova companhia e proponho uma vaquinha de vaca e bacalhau. Primeiro racha-se um Brás (14€), outro dos clássicos da casa, depois insisto em fazer-me ao bife, mas com outro corte: não quero vazia (17,5€), não arrisco lombo (23,5€), vou de alcatra (14€). Há também uma novidade em que um camarão tigre escalado toma o lugar do bife, com o mesmo molho, as mesmas batatas e o ovo a cavalo (22,5€). Fica para outro dia.

No Brás, a primeira boa notícia é que o bacalhau está lá. Sequinho, um pouco fibroso, mas está. A segunda é que a primeira garfada me deixa contente. O ovo está no ponto, húmido bastante para compensar a batata palha grossa de pacote, e há uns aros fininhos de cebola roxa e umas farripas de salsa a dar frescura. Somem-se 5 azeitonas verdes, a saber a azeitona, e temos um prato simpático. Boa jogada.

Eis então que, a medo, invisto na vaca. A alcatra chega bem melhor do que a vazia, razoavelmente suculenta e macia, outra vez passada além do pedido, mas rosadinha ao centro. O molho também vem mais consistente, menos água e mais nata, o conjunto pouco mais que escapatório. De resto, noto que tudo, batatas incluídas, vai chegando com pouquíssimo sal. Nada de espantar, é uma profilaxia que tomou conta da cozinha moderna, mas aqui serve de tempero à ironia: entopem-me as coronárias com manteiga, mas cortam no cloreto de sódio, não vá a tensão arterial disparar. Agradeço o cuidado.

Quando dou por mim, estou de volta à casa de partida com 40 cl de cerveja para restituir e já ensaio outra vez a lambada sem mãos na escuridão.

Hei-de voltar, mas não volto sozinho ao WC.

Arnaldo Valente é homem de palavra e só não dá a cara porque precisa dela para fazer a barba. Tende pouco para as tendências, não é muito sensível às sensibilidades, é fascinado por coisas sem importância e insiste em brincar com coisas sérias. Só fala do que experimenta, embora não possa falar de tudo o que já experimentou.