A advertência
O que é absurdo, e o que não é, pode ser apenas uma questão de perspetiva. A frase não é original, ouvi-a algures a alguém (como ouvi outro alguém dizer que a originalidade é a arte de nos lembrarmos sempre do que ouvimos, esquecendo onde o ouvimos — mas também não me lembro de quem disse essa). A ideia ocorre-me no momento em que preparo a experiência seguinte.
Ponho-me a imaginar que, finda esta história, a sinopse pode assumir formas inteiramente distintas, consoante a perspetiva que se escolha para os mesmíssimos factos. Sobre esta expedição, poderemos então escrever: “O crítico do jornal Observador, na companhia de uma ilustre jornalista, deslocou-se à Amadora a fim de experimentar um restaurante japonês chamado Hen.tai”. Em alternativa, eis outra epítome para o acontecimento: “O depravado do Arnaldo esgueirou-se com uma mulher casada à antiga Porcalhota, e ali saciaram secretamente os seus apetites, numa espécie de beco asiático com inspirações pornográficas”. Uma e outra preposição são rigorosamente verdadeiras. Embora eu, obviamente, escolha a perspetiva absurda.
É um problema meu, reconheço. Tenho uma fixação com duplos sentidos e a mania de seguir em sentido contrário. Por exemplo, não haverá muita gente a espantar-se por saber que a Associação de Natação do Algarve se chama Analgarve; que o Ministério da Educação se lembre de batizar um concurso de idiomas no ensino básico com o título “As línguas abrem caminhos”; ou que um restaurante italiano no centro de Lisboa ache por bem chamar-se Mamma Donna. O mais certo é ninguém senão eu ler aqui qualquer sugestão licenciosa. Mas, enfim, eu sou o degenerado que quando lê “fiambre da perna extra” fica a cismar sobre qual será a perna extra do porco a que se referem. Em suma, sou uma personagem de mente retorcida e sinto-me na obrigação de deixar essa advertência antes de prosseguir.
Vamos então a isto. Hentai é a palavra japonesa para definir desejo sexual perverso, mas foi adaptado para definir toda a banda desenhada, ilustração e animação de teor pornográfico. E no Japão há muita. Ora, foi esse o nome que os donos deste restaurante inspirado na street food japonesa se lembraram de ir buscar para provocar a curiosidade da malta — e foi isso que me trouxe aos pulos até aqui. Chamaram-lhe Hen.tai, com um pontinho no meio, suponho que para evitar confusões de maior a quem googlar a casa. Funciona. Posso dizer-vos que aquele ponto é tudo o que ampara o choque de quem ainda preserve o imaginário idílico dos desenhos animados apresentados pelo Vasco Granja (alerta: mesmo com ponto, desaconselha-se a pesquisa por imagens — é até possível que encontrem a Heidi e o Marco, mas não como se lembram deles).
A experiência
São 21.00 de uma quarta-feira à noite e a casa está menos de meia. Estamos numa zona dormitório da Amadora — o que é mais ou menos um pleonasmo — e não há muita gente a comer no local, mas o trânsito de motoboys é constante. O tempo não está famoso e haverá quem prefira consumir Hen.tai no recato do lar. Faz sentido.
Eu e a minha amiga chegamos cheios de curiosidade, artilhados de piadolas para a troca, mas sobretudo com fome. O interior do Hen.tai tenta reproduzir o imaginário de um beco japonês, taipais de metal a forrar o balcão, anúncios em caracteres katakana, decoração pop temática, música japonesa ligeira cantada em inglês. Referências libertinas, porém, o melhor que se encontra é o anúncio discreto a um bar de strip (não leio japonês, mas o grafismo é esclarecedor).
A ementa é generosa sem ser muito complicada. O hentai divide-se em vários subgéneros, que podem ir do comic futanari (normalmente envolvendo personagens transexuais) ao furry (relações com personagens metade gente, metade besta). Já o Hen.tai anda ali entre o sushi e o ramen. Seguimos o conselho da casa e começamos com uns takoyaki, espécie de croquetes japoneses em bolinhas, o polme a envolver pedaços de polvo (seis peças, 6€). Boa fritura, tempero interessante, entre o fresco do gengibre e algum picante, embora demasiado doce (soja industrial). Do polvo, infelizmente, poucas notícias tivemos. Em contrapartida, o Shazam informa que estamos a ouvir “Pastel Love”, de Kengo Kurozumi.
As notícias melhoram com o ramen. Dos três disponíveis, dividimos o que nos pareceu mais clássico, um ramen tonkotsu (13€). Nenhum arrependimento. O caldo generoso, gordo, quentinho, perfumado de cebolete, umas folhinhas estaladiças de alga nori e umas rodelas de naruto (pasta de peixe) a deixar rasto sobre o porco, e a carne impecável, com a chicha a desfazer. Pena a massa um pouco elástica, que a carta diz que é fresca, mas não é — já foi, explica-nos a menina, desculpando-se pela informação desatualizada e explicando que esta agora vem diretamente lá do Japão.
Daqui, seguimos para um Combinado Samurai XXX. E fazêmo-lo por duas razões: primeiro, porque oferece a oportunidade de picar um pouco de quase tudo o que resta de importante na ementa (sashimi, hossomakis, niguiris e gunkans, 17 peças por 16€); depois porque é a única referência em toda a carta com alguma sugestão pícara (nova dica para púdicos e distraídos: não escrevam três xis seguidos na janelinha do Google).
As associações entre peixe e pornografia são antigas (o besugo e a sarda são disso testemunhas), mas, mais uma vez, nada de especialmente excitante aqui. Anda tudo em redor de atum e salmão, o que se compreende atendendo ao preçário, e é importante dizer que ambos os bichos são frescos e de boas famílias, coisa que fica especialmente evidente nas seis peças de sashimi. De resto, destaco o gunkan atum picante, que me parece especialmente bem conseguido.
A penitência
Como adverti de início, esta expedição partiu do fascínio pela marotice e da atração fatal pelo absurdo. Mas o resultado foi mais tranquilo que outra coisa. Ainda nem são dez da noite e já nos vão avisando que a cozinha está para fechar. De sobremesa, só há mochis, uns bolinhos de arroz gelatinoso recheados que fazem companhia ao café e pouco acrescentam à história. Dou a noite por terminada.
Não encontrei geishas voluptuosas a servir body sushi (nem ninguém mo prometeu, a minha imaginação é que tem vontade própria), nem sequer me assanhei com food porn, que tudo aqui me foi chegando em arranjos sóbrios e sem grandes confusões. Em contrapartida, descobri um bom poiso de comida japonesa simpática a preços honestos e fui fazer ó-ó cedinho, como a idade já aconselha. Não é a primeira vez que sonho com noites de coboiada, mas acabo a ter um serão de missionário.
Antes de dormir, termino esta prosa ao som de “Hentai”, canção toda acesa da jovem Rosalía. Podem pesquisar no Google, mete cavalos e tudo.
Como diria o outro, hei-de voltar. Ou então mando vir.
Rua Elias Garcia 398, Amadora. Telf: 910 319 402. Seg-Dom 12.00-15.00, 19.00-22.00
O Experimentador Implacável é uma figura fictícia criada por Arnaldo Valente, que por sua vez é pseudónimo de outro fulano. É homem de palavra e só não dá a cara porque precisa dela para fazer a barba. Tende pouco para as tendências, não é muito sensível às sensibilidades, é fascinado por coisas sem importância e insiste em brincar com coisas sérias. Só fala do que experimenta, embora não possa falar de tudo o que já experimentou.