Kellysa tem 11 anos e já sabe fazer a sua própria `txabeta´, principal instrumento do género musical ‘batuco’, que toca com as amigas para dizer não à violência sexual contra crianças em Cabo Verde.

“Eu aprendi a fazer [a txabeta] com a minha mãe”, relata à Lusa Kellysa Lopes, que faz um embrulho com dois panos, um saco de plástico e improvisa o instrumento de percussão, herdado do tempo colonial para contornar a proibição do regime aos tambores.

Está pronta para mais um ensaio com as amigas, num barracão de madeira, forrado com uma rede verde, que é um dos pontos de encontro e de diversão da localidade de Praia Baixo, no concelho de São Domingos, sudeste da ilha de Santiago.

No mês de julho, celebra-se o Dia do Batuco (31 de julho), mais uma razão para caprichar.

Kellysa Lopes é uma das 15 integrantes do grupo “Criança Flor de Revolução”, que nasceu em novembro, uma ideia de Ângela Nunes, uma peixeira de 33 anos, que quer dar voz às próprias crianças para chamarem a atenção contra a violência sexual que muitas sofrem no país.

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“Escolhemos este tema porque há muitas crianças a serem violadas”, disse a batucadeira mirim, que acredita não haver casos na sua zona, mas fica perturbada quando vê as notícias “na televisão”.

De acordo com o relatório sobre a situação da justiça (de agosto de 2022 a julho de 2023), os processos por crimes sexuais registados pelo Ministério Público cabo-verdiano (635) diminuíram 18,2% no último ano judicial e quase metade continuam a ser por abusos sexuais contra crianças.

Já este ano, o Presidente cabo-verdiano, José Maria Neves, enquadrou a violência sexual contra menores entre as “nódoas” do país, que espera que sejam banidas “definitivamente”.

O grupo de Praia Baixo é formado apenas por meninas, dos oito aos 15 anos, da localidade piscatória, com cerca de 1.400 habitantes, e que fica a 30 minutos de carro da Praia, capital do país.

“Elas têm muito empenho, gostam, então decidimos criar um grupo”, disse a mentora da iniciativa, que quer que os miúdos também toquem e cantem o batuco, mas “têm vergonha”, e por enquanto são apenas espectadores dos ensaios.

“O batuco é uma tradição que encontrei em Cabo Verde e não quero que morra”, apontou a líder, que também tem duas filhas no grupo, e que já compôs oito músicas, apelando igualmente à responsabilidade parental.

Outra batucadeira é Cleireane Fernandes, de 13 anos, que faz de tudo no grupo: canta, dança e batuca numa ‘txabeta” feita com pele sintética, normalmente utilizada para forrar sofás e que emite um som com maior qualidade.

“Sinto-me muito feliz por estar a cantar com as minhas colegas. Quero continuar com o batuco”, prometeu a menina, que estuda no 7.º ano, e que, tal como a amiga, quer ser hospedeira de aviação ou cantora.

Com cerca de 14 mil habitantes espalhados por 21 localidades, São Domingos tem 23 grupos de batuco, mas somente o de Praia Baixo é formado por crianças.

A iniciativa é aplaudida pela presidente da Assembleia Municipal do concelho, Felismina Moreno, natural de outra zona (Lora) e que ajudou o grupo a mobilizar as ‘txabetas’.

“As crianças estão a dar um contributo inestimável que nos faz pensar em grande com esse grupo”, referiu à Lusa.

Cabo Verde instituiu há dois anos o dia 31 de julho como Dia Nacional do Batuco, manifestação cultural secular que nasceu na ilha de Santiago, essencialmente apresentada por mulheres, conhecidas como batucadeiras.

Combina percussão, canto e dança: a mulher canta sobre o dia-a-dia, mas também sobre política e cultura, por vezes em tom crítico.

Com a proibição do uso de tambores durante o período colonial, as mulheres passaram a ‘batucar’ em peças de tecido, denominadas de “txabeta”, tradição que ainda se mantém.

Segundo as autoridades, o arquipélago conta com mais de 100 grupos — há outros na ilha do Maio -, com mais de 1.000 pessoas, incluindo alguns homens.