Enviado especial do Observador em Paris, França

Os Jogos são um evento de superação, o judo é uma modalidade de superação. Quando chegamos a Champ-de-Mars, local que está a receber o evento em Paris-2024, voltamos a perceber que são adeptos que sabem do que está em causa. No primeiro dia, quando Catarina Costa foi eliminada na segunda ronda da categoria de -48kg, encontrámos a caminho do recinto uma mãe que nos explicava que ia ao judo porque o filho pratica na escola e havia vários colegas da mesma idade que tinham comprado bilhete para verem os seus “heróis” e terem quase uma primeira experiência daquilo que pode ser um sonho no futuro. Hoje não foi diferente, até porque a organização aqui puxa bem mais pelo ambiente do que noutros locais. Estava tudo preparado.

Com Catarina Costa tinham-se visto algumas bandeiras portuguesas, esta quinta-feira estavam muito mais bandeiras nacionais. Era “o” dia, aquele dia em que as coisas não têm corrido bem numa modalidade que tantos títulos internacionais já garantiu às cores nacionais mas que não passara até agora de um 17.º lugar de Catarina Costa como o melhor resultado entre as participações de Bárbara Timo, João Fernando ou Taís Pina. Grande parte dos olhos recaíam em Jorge Fonseca, antigo bicampeão mundial que ganhou o bronze em Tóquio-2020, mas estava também em competição Patrícia Sampaio. Não sendo um nome tão mediático como o judoca do Sporting, era a atleta nacional com melhores resultados no último ano do ciclo.

Em português, era uma “zebra”. Patrícia Sampaio, que sonha poder ser jornalista (e quem sabe se daqui a uns anos não estará a cobrir os Jogos Olímpicos ), tem apenas 25 anos mas uma carreira que já tocou em quase todos os pontos que poderia ter. Bons resultados, lesões complicadas, aquela sensação se vale mesmo a pena ter esta vida, aquele amor pela modalidade que supera qualquer obstáculo. Quando foi eliminada na última edição de Tóquio pela alemã e favorita Anna-Maria Wagner, após vencer a venezuelana Karen Léon, a cara mostrava um desalento de quem sabia que podia conseguir mais apesar de todo o calvário de lesões que foi atravessando. Ficou a experiência, a estreia e a garantia de que voltaria ainda mais forte ao evento.

Em 2024, entre Europeus e Grand Slams, Patrícia Sampaio entrou quatro vezes na luta pelas medalhas (que acabou por não ganhar). No ano passado, após o triunfo no Grande Prémio de Portugal, fez seis pódios no circuito mundial e terminou em quinto no Grand Slam de Paris. Foi sempre um exemplo de superação na forma como nunca desistiu de chegar ao patamar onde todos apontavam pelo potencial que viam, faltando apenas aquele grande resultado depois de ter sido campeã europeia de Sub-23 em 2021 e bronze na prova absoluta dois anos depois. Esse resultado ia chegar, tinha de chegar. Paris era mais uma oportunidade.

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Foi num ambiente quase paradoxal que Patrícia Sampaio foi chegando à sua zona de espera. Primeiro, e à semelhança do que tem acontecido em muitos eventos em Paris, muitos assobios quando foi anunciado um atleta israelita Peter Paltchik da categoria de -100kg entre as palmas dos adeptos israelitas que marcaram presença em massa para acompanhar um dos nomes fortes da comitiva. Depois, uma explosão de gritos e bandeiras francesas quando surgiu em cena o primeiro atleta da casa, Aurélien Diesse. Uma explosão grande, outra maior 30 segundos depois com o triunfo frente a um adversário do Tajiquistão. No tatami ao lado, estava prestes a entrar em cena Patrícia Sampaio e a resolver a questão de forma ainda mais rápida.

Atual 13.ª do ranking mundial, a portuguesa começou por ter pela frente a queniana Zeddy Cherotich, 79.ª da hierarquia. De kimono azul e cabelo bem preso com tranças, Patrícia subiu ao palco para brilhar e até mostrou cedo ao que ia, pela forma como correu de forma acelerada para o local onde iria iniciar o combate. Uma volta, um olhar para o posicionamento da adversária, uma pega bem feita pela manga, um waza-ari, a concretização do ippon apenas em 20 segundos. Tinha sido pouco mais do que um aquecimento mas um momento importante para ganhar sensações para o que se seguiria, regressando aos balneários com alguns cumprimentos aos muitos portugueses presentes nas primeiras filas da Arena Champ-de-Mars.

O melhor estava ainda a chegar. Quando Madeleine Malonga apareceu na zona de espera de kimono branco, o pavilhão levantou-se em festa. Dezenas e dezenas de bandeiras francesas, a cara da atleta francesa num cartaz gigante, aqueles gritos de “Allez les bleus, allez les bleus“. Patrícia Sampaio, atrás da gaulesa, só veio um pouco depois. Respirava fundo, acenava com a cabeça, quase que ganhava uma motivação extra que era multiplicada pelo bater de pés nos degraus de metal que faz um barulho ensurdecedor. A linguagem corporal não enganava. Malonga foi prata em Tóquio-2020, ganhou o bronze nos últimos Mundiais e já foi campeã mundial mas a portuguesa não deu hipóteses. O sonho dos franceses durou menos de um minuto.

Patrícia teve o mérito de agarrar no apoio à adversária para reforçar a motivação e, sobretudo, de assumir sem problemas o controlo do combate. Foi sempre ela que quis atacar, que procurou movimentos, que foi em busca da melhor forma de bater alguém que estava melhor na hierarquia mundial. Malonga não conseguiu sequer fazer uma pega que pudesse depois resultar em algo mais ao contrário do que foi acontecendo com a atleta nacional, que marcou inicialmente um waza-ari e depois um ippon em dez segundos de diferença. O pavilhão gelou, rendido ao espectáculo de Patrícia Sampaio. Pouco depois Aurelien Diesse entrava também em ação e tudo passou (sendo que também ele perderia com o israelita Peter Paltchik). Para Patrícia não.

Os combates continuavam a suceder-se, a possibilidade de Jorge Fonseca e Patrícia Sampaio estarem os dois ao mesmo tempo em ação ainda pairou, o judoca português que ganhou a medalha de bronze em Tóquio foi o primeiro e acabou por perder no último segundo com o campeão olímpico de -100kg, Aaron Wolf. Pouco depois, Patrícia voltava para os quartos. Pela frente estava a número cinco do mundo, a chinesa Zhenzhao Mao, que já foi finalista em Mundiais e campeã asiática. A linguagem corporal da judoca nacional dizia tudo o que a de Fonseca não conseguiu transmitir: confiança, motivação, foco total. Demorou ainda menos e, depois daquelas três batidas com os pés do chão após a entrada no tatami, o ippon demorou 49 segundos. A manhã terminava da melhor forma mas nem por isso aquela cara concentrada perdia a feição.

A questão da paragem é algo que não se controla mas pode mudar a história daquilo que está a ser um bom dia. Era isso que a portuguesa tentava evitar a todo o custo, até porque já bastava ter pela frente a número 1 da categoria, a italiana Alice Bellandi. Mais do que isso, a transalpina tinha ganho em todos os cruzamentos com a atleta de Tomar que já tinha melhorado o nono lugar de Tóquio. Apesar desses desaires, havia algo que acalentava a esperança mas que não era de fácil dedução: nos últimos duelos que tiveram, a decisão caiu no golden score, o que daria uma vantagem teórica à portuguesa da Sociedade Filarmónica Gualdim Pais tendo em conta o desgaste de Bellandi para superar rondas como aconteceu com a brasileira Mayra Aguiar.

Patrícia Sampaio tinha o seu segundo momento de preparação, sabendo não só quem tinha pela frente nas meias como as possibilidades que se seguiam. Também quem ficou por cá teve o seu momento, com paragem numa espécie de “refeitório de campanha” que junta voluntários, organização e jornalistas a troco de 18 euros para os últimos por uma refeição completa com 4.5 em 10 no rating gastronómico. A partir das 16h, tudo de regresso à Arena Champ-de-Mars (15h25 no nosso caso e ainda bem porque a bancada para a imprensa mesmo sem atletas franceses já enchia). A portuguesa entrava no oitavo e último combate. Era o momento da verdade. A duas vitórias do primeiro ouro português fora do atletismo, a um triunfo do primeiro pódio nacional nestes Jogos de Paris-2024, sabendo que a vitória de melhorar Tóquio ninguém lhe tirava.

Já com Snoop Dog nas bancadas, tudo era diferente. Até as entradas, com as atletas a saírem do túnel uma a uma para o único tatami preparado para a fase final. Também o combate foi diferente, com Bellandi a ter uma entrada muito mais agressiva, a marcar um waza-ari cedo que por pouco não deu ippon e depois a ir gerindo dentro do possível esse avanço, com Patrícia Sampaio só no último minuto e meio a ter uma maior capacidade de iniciativa mas sem nunca ter aquelas pegas para depois se transformarem em movimento. No final dos quatro minutos que tiveram sempre o irmão e treinador Igor Sampaio a dar indicações, ficava a imagem de desalento por não ter conseguido mais e um abraço bem maior do que é normal entre as duas adversárias, com a transalpina a reconhecer aí também o que a portuguesa tinha conseguido fazer.

A caminho do balneário, a falar com o selecionador, Patrícia Sampaio tentava retomar o foco que lhe podia valer ainda uma medalha olímpica. Se caísse Anna-Maria Wagner para o seu lado das repescagens, e mesmo sendo a número dois do mundo, havia um histórico recente de triunfos que abria boas hipóteses. Com Rika Takayama, japonesa que ocupa o nono lugar do ranking, essa “vantagem” era diferente. Era a hora de todas as decisões, que começaram nos -100kg pelo bronze com um combate que terminou com polémica depois da desqualificação revertida Paltchik e outro que foi ainda mais polémico (não pela arbitragem mas pela forma como as coisas aconteceram e pela reação do público), com o azeri Zelym Kotsoiev a ganhar a medalha de ouro em -100kg depois da desqualificação do georgiano Ilia Sulamanidze a oito segundos do fim.

Depois, o combate pela medalha de bronze. A maior vitória de Patrícia Sampaio foi mesmo a forma como conseguiu reagir à derrota nas meias-finais. Nem mesmo o facto de estar a defrontar mais uma top 10 fez com que perdesse o foco. Marcou logo um waza-ari a abrir, teve depois um período complicado de gerir onde não queria ser tão ofensivas mas também não conseguia contrariar, voltou a pontuar a 55 segundos do final para a vitória. O dia era mesmo da Sampas e ninguém lhe podia tirar a medalha de bronze.