Aqui há uns 20 anos, estava no Festival de Cannes em serviço para o Diário de Notícias, quando recebi um telefonema de um amigo francês que, por motivo de afinidades políticas, tinha feito amizade com Alain Delon. Este amigo estava em Nice, onde tinha uma casa de férias, e disse-me: “Vou dar uma receção informal aqui em casa ao Alain Delon, que esteve de passagem aí pelo festival. É só para alguns próximos, uma coisa discreta e privada, se o quiseres conhecer, mete-te no comboio ou num táxi e vem até cá, é uma ocasião única, despacha-te!”.
Nem pensei duas vezes. Fui primeiro comprar um casaco, para não aparecer com a minha habitual “farda” de festival, jeans e polo, e meti-me num táxi que me deixou à porta de casa do meu amigo em Nice. “Ele já chegou, está no jardim, vem comigo, vou apresentar-te”, disse-me. Atravessámos a casa em passo rápido e lá estava efetivamente Alain Delon, então quase com 70 anos, descontraída mas elegantemente vestido, uma bebida na mão, a conversar com um casal. O meu amigo pediu-lhe licença e apresentou-me à lenda viva.
A palavra “felino” é usada muitas vezes para descrever Alain Delon, e não podia ser mais exata. Delon era o equivalente humano de um daqueles grandes felinos majestosos, perante os quais sentimos um misto de admiração e de temor, de fascínio e de reticência. Emanava sensualidade, magnetismo e um certo mistério, bem como que um poder natural, indefinível e intransmissível. Ele podia perfeitamente, por consideração pelo nosso amigo comum, ter apenas trocado meia dúzia de banalidades simpáticas comigo e depois ido falar com outras pessoas. Mas foi de uma extrema gentileza e atenção, e ficámos a falar durante uns bons minutos, e não só de filmes.
Depois de me transmitir a sua veneração por Jean Gabin e Lino Ventura, com os quais tinha contracenado, e a sua enorme admiração por John Garfield — o seu modelo enquanto ator –, e Clint Eastwood, Alain Delon, que sempre foi de direita e nunca o escondeu, contou-me uma história extraordinária, ocorrida durante o caos de protestos, violência e greves vivido em França durante o Maio de 68. “Sabe, eu sou um impulsivo. Nessa altura ainda não havia televisões privadas em França, só havia a televisão de Estado, a ORTF, que fez greve, tal como a rádio. Fiquei fulo porque os franceses tinham direito a ser informados sobre o que se estava a passar e aqueles esquerdistas não deixavam, e por isso, telefonei para o gabinete do Primeiro-Ministro Georges Pompidou, a oferecer-me para apresentar os telejornais. E tinha-o feito, se eles tivessem aceitado.”
“Acabou-se o baile. Tancredi foi dançar com as estrelas”. As reações à morte de Alain Delon
Entretanto, o meu amigo veio dizer-nos que havia mais pessoas que queriam conhecer Alain Delon, e que também tinham chegado outros amigos comuns, e despedi-me dele com um aperto de mão, um agradecimento pelo tempo que me tinha dedicado e um enfático “C’était un honneur, monsieur Delon!”, e ele a sorrir e a responder que não, que não, que o gosto tinha sido todo dele. Guardei sempre este encontro inesquecível só para mim, e conto-o agora, na morte, aos 88 anos, deste imenso actor que era também uma estrela de cinema, e uma figura que viveu tão intensamente como representou, alimentando a sua arte com as peripécias e polémicas da sua desassombrada personagem pública e da sua movimentada existência privada: “Tudo aquilo que interpretei, eu vivi”.
[Alain Delon responde ao Questionário de Proust por Bernard Pivot:]
Com ele, desaparece também uma certa época da França, e de um modo de ser francês, uma certa maneira de ser ao mesmo tempo uma estrela de cinema, um actor incontornável, uma figura popular e um símbolo nacional; e uma era em que o cinema francês tinha uma variedade, um peso, um prestígio e uma influência como nunca mais voltará a ter. Eis doze filmes essenciais de Alain Delon, de entre os vários que merecem essa designação, numa escolha puramente pessoal.
1- ‘À Luz do Sol’, de René Clément (1960) – Se há um ator nascido para incarnar o Tom Ripley de Patricia Highsmith, com a sua amoralidade casual e a sua beleza docemente maligna, é Alain Delon. E a verdade é que nunca mais houve um Ripley como o dele, muito elogiado pela própria escritora após ter visto o filme. Mas que Delon esteve para quase não fazer, porque enjoava em barcos.
2- ‘Rocco e os Seus Irmãos’, de Luchino Visconti (1961) – Visconti transformou Alain Delon numa estrela de dimensão internacional, ao dar-lhe o papel de um rapaz vindo do campo para Milão e que se torna pugilista, ao mesmo tempo que se envolve com uma prostituta e tenta zelar pela família que o acompanhou. Delon dizia que sabia que tinha “aspeto de galã”, mas que queria ser “o contrário disso”. E mostrou aqui que era mais do que capaz.
3- ‘O Eclipse’, de Michelangelo Antonioni (1962) – Delon preferiu ser dirigido por Antonioni a fazer o papel do príncipe Ali em Lawrence da Arábia, de David Lean (que foi para Omar Sharif). E integra-se perfeitamente, ao lado de Monica Vitti, no universo cinematográfico de interrogação emocional, perplexidade existencial e desolação anímica, causadas pelo advento da sociedade do materialismo consumista, tal como aquele a entendia.
4- ‘O Leopardo’, de Luchino Visconti (1963) – Ao lado de Burt Lancaster no seu idoso tio aristocrata, melancólico e sábio, e de novo sob a batuta de Luchino Visconti, Delon é superlativo no garibaldiano, sedutor e solar Tancredi que, com a sua juventude, carisma e otimismo, corporiza e anuncia os novos tempos para uma Itália em convulsão, em que “tudo deve mudar para que tudo continue na mesma”.
5-‘Assalto ao Casino’, de Henri Verneuil (1963) – A nova geração de Alain Delon encontra a do veterano Jean Gabin neste policial de Henri Verneuil, exemplo maior do melhor cinema popular francês. Gabin é um ladrão experimentado que vai saiu da cadeia e quer dar um último e grande golpe – num casino de Cannes -, na companhia de um jovem ex-companheiro de cela (Delon). O velho consagrado e a vedeta recém-chegada dão-se na tela como Deus e os anjos.
6- ‘O Ofício de Matar’, de Jean-Pierre Melville (1967) – Neste primeiro dos três filmes que faria dirigido por Melville (com O Círculo Vermelho e Cai a Noite Sobre a Cidade), Alain Delon personifica magistralmente um assassino profissional solitário e lacónico – um samurai de gabardina, chapéu e pistola — , numa interpretação onde a palavra se faz escassa e é toda ela assente em gestos, olhares, poses e sugestões, e na presença mesmerizadora do ator.
7- ‘Borsalino’, de Jacques Deray (1970) – O crítico francês Eric Neuhoff escreveu que houve uma altura em que Alain Delon e Jean-Paul Belmondo “levaram o cinema francês às costas”. Borsalino, uma efusiva comédia de gangsters e de época, que Delon também produziu, data desse tempo e assinala o primeiro de dois encontros na tela destes dois “monstros”, e dos seus respectivos egos. Foi um sucesso popular à altura de ambos.
8- ‘Outono Escaldante’, de Valerio Zurlini (1972) – Delon tem um dos seus papéis mais impressionantes e tocantes, nesta fita em que é um professor de poesia substituto e viciado no jogo, colocado em Rimini por alguns meses, que se apaixona por uma aluna adolescente, com consequências trágicas. Ator e realizador não se deram bem durante a rodagem, mas esse clima negativo entre ambos não se sente no resultado final. Era um dos filmes favoritos de Alain Delon.
9-‘Mr. Klein-Um Homem na Sombra’, de Joseph Losey (1976) – Após O Assassinato de Trotsky, em 1972, Delon voltou a trabalhar com Joseph Losey neste filme que também produziu (e que que sabia que ia ser um fracasso de bilheteira, mas em que investiu para poder fazer “um papel exigente, que exigia concentração”). Ele interpreta um negociante de arte oportunista e arrogante na Paris da II Guerra Mundial, que por uma coincidência de apelido, é tomado por judeu pelos alemães, e vê a sua vida privilegiada transformar-se num pesadelo.
10-‘A Nossa História’, de Bertrand Blier (1984) – Alain Delon ganhou o seu único César de Melhor Ator (que não foi receber, delegando em Coluche) neste filme muito mal-amado de Bertrand Blier (foi recusado pelo Festival de Cannes e ignorado pelo público) pelo papel de um garagista alcoólico e brusco, que se apaixona por uma estranha (Nathalie Baye) que encontra num comboio e persegue como se ela fosse a salvação da sua vida e para o amor. A personagem não podia ser mais antipática e a composição de Delon mais notável e oposta à sua imagem.
11 – ‘A Paixão de Swann’, de Volker Schlöndorff (1984) – Se Luchino Visconti tivesse dirigido esta adaptação de Marcel Proust, talvez tivesse tido sucesso. Mas pela mão de Volker Schlöndorff, Um Amor de Proust foi um senhor fracasso, com a crítica francesa a atirar-se em peso ao realizador alemão, alegando crime de lesa-Proust. Fica Alain Delon, tão bem metido na pele do barão de Charlus como mão de senhora distinta numa luva de marca caríssima.
12- ‘Nova Vaga’, de Jean-Luc Godard (1990) – François Truffaut dizia que tinha medo de Alain Delon e o ator passou ao lado dos realizadores da Nova Vaga. Este encontro muito tardio com Jean-Luc Godard (“Porque você é Godard e eu sou Delon”, como ele explicou) deu um filme cripticamente godardiano, mas onde Delon se exibe mais uma vez a contrapelo da sua imagem, numa personagem envelhecida e vulnerável, que “mete pena”, como diz a certa altura.