O que é que anda um jovem monge budista a fazer com uma velha espingarda na mão, enquanto percorre as idílicas paisagens do Butão? Se o Monge e a Espingarda fosse um filme americano, íamos ter tiroteio em breve, certamente. E se fosse um filme asiático de artes marciais, decerto que depressa iríamos assistir a uma sequência de combate. Mas O Monge e a Espingarda é um filme do butanês Pawo Choyning Dorji, o realizador do simpático Um Iaque na Sala de Aula (2019), e um budista devoto, pelo que violência é coisa que não podemos esperar, nem por sombras, desta sua segunda longa-metragem.

A vetusta e valiosa espingarda em questão pertence a um velhinho, que a cede ao jovem monge do título, que por sua vez foi incumbido de a procurar pelo seu mestre, um venerando lama. A arma é também cobiçada por um colecionador americano, preparado para oferecer uma fortuna por ela ao seu proprietário. Só que este, apesar de a ter apalavrado ao visitante dos EUA, através do seu guia e tradutor, acaba por a ceder sem pagamento ao jovem monge, porque o idoso lama tem precedência sobre toda a gente, mesmo sobre um americano endinheirado. Mas o que é que o religioso quer que o seu pupilo faça com a arma?

[Veja o “trailer” de ‘O Monge e a Espingarda’:]

Este imbróglio da espingarda passa-se ao mesmo tempo que os butaneses se preparam para participar num simulacro de eleições concebido pelo governo, para os preparar para a primeira eleição democrática parlamemtar que irá decorrer no país em breve, como parte do ambicioso plano de modernização nacional. Estamos em 2006 e o sistema político do Butão passou recentemente de uma monarquia absoluta para uma monarquia constitucional. O país tem uma nova constituição e o velho rei vai abdicar no filho no final do ano. E desde 1999 que o Butão obteve enfim acesso à televisão e à Internet (foi um dos últimos países do mundo a tê-lo), medida que o rei considerou muito importante para o índice de Felicidade Interna Bruta nacional.

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[Veja uma entrevista com o realizador:]

Pawo Choyning Dorji situou O Monge e a Espingarda nesta altura de grandes – e pausadas – mudanças internas no Butão, um país em que as pessoas dão mais importância à religião do que à política, para rodar uma comédia satírica muito leve, muito plácida, muito subentendida e muito gentil (e por vezes um pouco simplista), às veleidades da exportação da democracia para países fora da esfera ocidental, remotos, isolados durante muito tempo do resto do mundo, de uma grande inocência e com vincadas especificidades culturais e religiosas, tal como o Butão (ver o resultado do sufrágio simulado); à ocidentalização da sociedade butanesa (ver o fascínio pela televisão) e a respectiva colisão de valores; à miragem do “exemplo” americano, ou ainda à noção subjectiva de felicidade.

[Veja uma sequência do filme:]

O destino final da espingarda que o jovem monge até é tentado a largar a certa altura, por culpa de uma influência enviesada dos filmes de James Bond, é finalmente revelado numa cerimónia muito importante e cheia de simbolismo. E na qual a mão de Pawo Choyning Dorji se mostra mais pesada, e óbvia e ingénua no envio da “mensagem” desta fita amena, recatada e amável, rasa do ponto de vista cinematográfico e formatada para agradar em festivais internacionais receptivos aos filmes de configuração etno-“exótica”, e vender fora de portas. Mas também da qual não vem mal nenhum ao mundo, e se vê com um sorriso, e a ocasional gargalhada, numa destas noites cálidas da recta final do Verão.