O relatório da Inspeção-Geral de Finanças (IGF) às contas da TAP admite suspeitas de crime na privatização da companhia aérea, em 2015, e na gestão de David Neelman e Humberto Pedrosa, pelo que a IGF considera que o relatório deve ser enviado ao Ministério Público — o Governo informou, esta terça-feira, que já foi remetido. A IGF conclui pela ligação entre os fundos Airbus e a capitalização da TAP por Neeleman e ainda realça que “não se encontra demonstrada a racionalidade económica da decisão da administração da TAP SGPS de participar no negócio da VEM/TAP ME Brasil”.
Segundo a IGF, existe “uma relação de causalidade entre a aquisição das ações da TAP, SGPS pela Atlantic Gateway, a respetiva capitalização e as obrigações assumidas pela TAP nos contratos celebrados com a Airbus”, lê-se no documento a que o Observador teve acesso e que foi noticiado inicialmente pela SIC. O relatório foi enviado ao ministro dos Assuntos Parlamentares na sexta-feira passada.
A IGF concluiu que no âmbito da aquisição de 61% da TAP pela Atlantic Gateway, que tinha David Neeleman como principal acionista, ficou acordado que além do pagamento de 10 milhões à Parpública, a empresa se comprometia a capitalizar a transportadora com prestações suplementares de 226,75 milhões de dólares e de 15 milhões. “A parte mais substancial daquelas prestações suplementares (226,75 milhões de dólares) foi efetuada pela Atlantic Gateway, através da sócia DGN, com fundos obtidos da Airbus, com base num acordo denominado framework agreement, celebrado entre aquelas empresas em junho de 2015, e do qual a Parpública teve conhecimento ainda em setembro desse ano”, conclui a IGF.
Os contratos com a Airbus foram, posteriormente, transferidos para a TAP, com uma cláusula de penalização em caso de incumprimento do contrato, que era de valor idêntico à capitalização que a Atlantic Gateway tinha de fazer.
“Tendo em conta a atividade da Airbus e a sua vertente eminentemente comercial, a disponibilização desse montante parece sugerir que terá sido a contrapartida pela celebração do acordo de renovação da frota, mediante a substituição da encomenda dos aviões Airbus A350 pelos A330, bem como a compra de novos aviões A320neo e A330neo, cujas penalidades pela falta de cumprimento da TAP, SA perfazem exatamente o valor das prestações suplementares de capital assumidas pela Atlantic Gateway, mas que indiretamente terão sido financiadas pelos fundos Airbus (226,75 milhões de dólares)”, lê-se na auditoria, a que o Observador teve acesso.
Com este negócio há suspeitas sobre se foi contornado o Código das Sociedades Comerciais, que impede a cedência de empréstimos ou fundos a um terceiro para que este adquira ações próprias, situa a SIC que também avançou com a auditoria.
Condição imposta por Neeleman em 2017 “forçou” Governo a negociar o preço de saída da TAP em 2020
O relatório da Inspeção-Geral de Finanças, solicitado por Fernando Medina por recomendação da Comissão Parlamentar de Inquérito à TAP, conclui também que esta estratégia era conhecida pela Parpública e pelo Governo de Passos Coelho, no qual Maria Luís Albuquerque era a ministra das Finanças, deixando claro que deve haver uma comunicação ao Ministério Público para investigação.
Os fundos Airbus e o seu papel na compra por Neeleman da TAP foram objeto de grande discussão na comissão parlamentar de inquérito à TAP (CPI). Estes contratos com a fornecedora de aviões não foram escrutinados numa auditoria do Tribunal de Contas realizada à venda da TAP uma vez que a entidade, então, não viu riscos relevantes na operação fundos Airbus na informação recebida em 2017, mas que era limitada até 2022. Garantiu, então, que ia voltar ao assunto.
O tema foi ainda objetivo de uma auditoria interna pela TAP que o Governo de António Costa, que reverteu a privatização da TAP, enviou para o Ministério Público. Nessa auditoria já havia suspeitas sobre o impacto da compra de aviões decidida durante a gestão privada quando David Neeleman era, a par com Humberto Pedrosa, acionistas da transportadora. Por sua vez, o Ministério Público abriu um inquérito à compra dos aviões pela TAP.
Segundo a IGF, os pagamentos realizados pela TAP na compra dos A330 negociada em 2005, quando a empresa era pública, totalizaram quase 600 milhões de dólares até fevereiro deste ano. A auditoria conclui que se TAP não tivesse sido forçada a recorrer a contratos de locação por falta de liquidez teria pago apenas 474,9 milhões de euros. Ou seja, “esta opção teve impacto negativo de 121,8 milhões de dólares (110 milhões de euros) na empresa”.
Brasil sem racionalidade económica
O Brasil e a entrada da TAP na VEM, empresa de manutenção, foi igualmente analisada pela IGF que concluiu pela não existência de racionalidade económica neste negócio que foi, na CPI, defendido por Lacerda Machado que diz ter sido o melhor negócio que a TAP fez em 50 anos.
A IGF concluiu que “a racionalidade económica da decisão da administração da TAP, SGPS, de participar no negócio da TAP Manutenção e Engenharia Brasil, SA (VEM/TAP ME Brasil) e, posteriormente, de não partilhar os riscos e encargos daquela participação com a Geocapital – Investimentos Estratégicos, SA não foi demonstrada”. Até 2023, as perdas com o negócio ascendiam a 906 milhões de euros. A IGF diz mesmo que não foi demonstrada a racionalidade dessas operações mas ainda foi reforçada a sua posição na VEM, “sem orientações das tutelas ou da acionista Parpública nesse sentido, ficando acionista única da Reaching Force e detentora de 90% do capital da VEM, o que se traduziu numa solução muito mais onerosa (cerca do dobro) e penalizadora para o Grupo”.
O documento da IGF confirma ainda que a TAP fez um contrato de prestação de serviços com uma empresa de David Neelman já depois de ter sido privatizada e pagou 4,3 milhões de euros em prémios e remunerações a Neelman, a Humberto Pedrosa e a David Pedrosa de forma a que os mesmos não ficassem registados e não fossem alvo de impostos. Esta informação também tinha sido revelada na comissão de inquérito.
E para a IGF “subsistem dúvidas quanto ao beneficiário dos serviços de alguns contratos de consultoria celebrados pela TAP, SA e TAP, SGPS, no montante de 11,7 milhões de euros”. Entre 2005 e 2022 a TAP contratou consultorias no montante de 400,6 milhões de euros, com 1.308 entidades. A IGF indica que “nos contratos celebrados com a Seabury Aviation Consulting e a KPMG no valor de 11,7 milhões não foi possível identificar claramente o beneficiário desses serviços”.
Estes pagamentos realizaram-se já depois da entrada da gestão privada indicada por David Neeleman, sendo que a Seabury foi a consultora do empresário americano no processo de privatização de 2015.
TAP pagou 16 milhões à consultora que Neeleman contratou para comprar a própria TAP
IGF sem informação sobre foram calculados os 55 milhões pagos a Neeleman, nem quais os valores de consultoria a Fernando Pinto
Na comissão de inquérito houve também com insistência a pergunta sobre como tinham sido decididos os 55 milhões de euros pagos a David Neeleman para sair da TAP. Já na comissão de inquérito tinha sido difícil obter respostas sobre o que estava relacionado com esse dinheiro e, agora, a IGF também diz que não lhe foram disponibilizadas informações “subjacentes ao apuramento daquele montante”.
A Inspeção-Geral de Finanças confirma várias das suspeitas que foram suscitadas durante os trabalhos da comissão parlamentar de inquérito que se realizou no ano passado. Uma delas prende-se com os pagamentos realizados ao ex-presidente executivo da TAP, Fernando Pinto, que continuou a ser pago enquanto consultor após ter abandonado o cargo.
“Os pagamentos efetuados a Fernando Pinto totalizaram o montante de 8, 523 milhões de euros, sendo 6 463,5 mil euros a título de remunerações e prémios, enquanto administrador, relativos ao período compreendido entre 2007 e janeiro de 2018″. A IGF considera que neste bolo, há 326,7 mil euros que correspondem a férias não gozadas, para o qual não se afigura existir base legal ou contratual que sustente este pagamento”.
A auditoria indica ainda que em 2018 foi celebrado um contrato de prestação de serviços com o ex-gestor, que incluía alguns benefícios, como seguro de vida, carro, facilidade nas viagens aéreas, bem como apoio logístico e jurídico e suporte nas despesas de mudança para o Brasil até 15 mil euros. Mas não foi disponibilizada informação sobre os custos para a TAP da prestação de serviços assegurada por Fernando Pinto, nos termos deste contrato.