Chegou a casa e tinha o FBI à espera. Seria provavelmente desta forma que um jornal sensacionalista noticiaria o que aconteceu à jovem linguista, tradutora e professora de ioga Reality Winner no dia 3 de julho de 2017. Ao estacionar o carro à porta de casa em Augusta, na Georgia, Reality viu-se interpelada por dois agentes do FBI na posse de um mandato de busca. É assim que abre o filme Reality, da dramaturga americana Tina Satter, que esta baseou na peça de teatro de 2019, Is This a Room, um exemplo do chamado “verbatim theatre” (“teatro à letra”), em que são usadas, com fins dramáticos, transcrições literais de casos de tribunal, gravações de escutas secretas ou outras, relatórios oficiais ou entrevistas.
E tal como nesta peça, os diálogos de Reality são “extraídos diretamente da transcrição da gravação feita então pelo FBI”, conforme Satter nos informa numa legenda logo no início da fita. Até os excertos que foram rasurados quando da divulgação pública das ditas são referenciados com “bips” no discurso dos intervenientes, e saltos visuais. Esta colagem ao sucedido condiciona a realizadora na revelação do motivo da presença dos agentes do FBI na casa de Reality (Sydney Sweeney, de White Lotus) e das acusações que lhe são imputadas. Reality é todo o oposto de um filme de acção. É um filme da palavra, em que é preciso esperar pelo correr da conversa para saber o que se passa e está em jogo, e na qual assenta o suspense.
[Veja o “trailer” de ‘Reality’:]
Ou deveria assentar, porque a opção formal feita por Tina Satter resulta num filme átono do ponto de vista dramatúrgico e nulo do cinematográfico, raso de emoção e tensão. Reality parece rádio filmada, podia “ver-se” de olhos fechados. Reality Winner acabou por ser acusada de ter passado a uma revista política online (The Intercept) um documento confidencial relativo às alegadas tentativas de interferência da Rússia nas eleições de 2016 que levaram Donald Trump à Casa Branca (e nunca provadas). Mas a revista “queimou” a sua fonte e Reality acabou por admitir aos agentes do FBI que tinha trazido o documento do trabalho nos collants em vez de o destruir, e enviado para The Intercept pelo correio. Foi condenada a cinco anos de prisão, a maior pena já imposta nos EUA por divulgação não autorizada de informações classificadas.
[Veja uma entrevista com Sydney Sweeney:]
A fita quer mostrar Reality Winner como uma heroína da denúncia justificada de segredos oficiais de interesse público, e vítima da prepotência do Estado (e sugere até uma possível vingança direta de Donald Trump), e empolar a importância do seu ato. Mas até a própria diz que não estava a “tentar ser uma [Edward] Snowden ou coisa assim” (e não pode haver a menor comparação entre a dimensão, o significado e a importância dos dois casos); e confessa ter sido movida por um impulso de embirração, por não gostar de Trump e de algumas medidas tomadas pelo seu governo, que julgava serem deletérias ao meio ambiente. E a última gota, o que a fez decidir enviar o documento à The Intercept, foi estar farta das televisões sempre ligadas na Fox News no trabalho (“Podiam pôr a Al-Jazeera ou imagens de bichinhos”, queixa-se ela aos agentes do FBI…).
[Veja uma sequência do filme:]
Se há uma coisa que Reality deixa bem claro, além da ligeireza de motivações, da superficialidade intelectual e de um certo desequilíbrio emocional por parte da protagonista: é a grande vulnerabilidade do sistema de informações dos EUA. Este subcontrata toda uma miríade de tarefas a pequenas empresas privadas como aquela para a qual Reality Winner trabalhava (traduzindo de persa para inglês documentos sobre o programa aeroespacial do Irão), que fornecia serviços à NSA (National Security Agency), e cuja segurança pode ser desleixada ou ineficiente. E tal como se nos apresenta, Reality não augura nada de particularmente aliciante para a versão em cinema do “verbatim theatre”.