O Tribunal da Relação de Évora confirmou a sentença proferida pelo Juízo de Trabalho de Portimão que não reconheceu a existência de contratos de trabalho entre 27 estafetas e a plataforma de entregas Glovo.
Na decisão, consultada pelo Observador, o tribunal de segunda instância considerou que não existe um contrato de trabalho entre as plataformas porque o estafeta pode aceitar a entrega, não responder, ou rejeitar. Além disso, a rejeição “pode verificar-se mesmo após o estafeta já ter aceitado o serviço proposto, sem que tal afete o estatuto da sua conta na aplicação, a apresentação de futuros serviços e o preço de tais futuros serviços”.
Também entende que após aceitar o serviço, o estafeta pode permitir ou não que a plataforma tenha acesso à sua localização, “sem que isso tenha impacto na realização do serviço ou leve a alguma penalização” e que são os estafetas que, após aceitarem o serviço, escolhem o meio de transporte usado, definem o percurso e podem desligar a geolocalização do telemóvel. Acresce que os estafetas “uma vez por dia, podem alterar” um multiplicador que lhes permite aumentar o valor total recebido por serviço” e “escolhem os dias e horas que pretendem ligar-se à aplicação”.
“Tal significa, em retas contas, por um lado, que os estafetas gozam de uma ampla autonomia na prestação da atividade e, por outro, que a ré não determina nem controla aspetos significativos da prestação da atividade”, entende o Tribunal, que considerou “decisivo” que o estafeta possa subcontratar outro prestador de serviço para realizar a entrega.
“(…) impõe-se concluir que não se demonstra a existência de um contrato de trabalho entre a ré e cada um dos estafetas mencionados no recurso”, conclui o Tribunal da Relação de Évora.
A lei determina que, para que se prove a existência de um contrato de trabalho, é preciso que se verifiquem, pelo menos, dois indícios entre seis, o que, segundo o Tribunal, não aconteceu.
A decisão surge na sequência de um recurso interposto pelo Ministério Público, em que alegava que a Glovo “unilateralmente, fixa a retribuição e, além disso, estabelece também um limite mínimo e um limite máximo para o prestador de atividade/estafeta por cada serviço prestado”, além de estipular as regras para “acesso/inscrição na plataforma” por parte dos estafetas. O MP também argumentava que a Glovo “dirige, estipula, concretiza e define a forma como toda a atividade deve ser” prestada pelos estafetas e que o “principal instrumento de trabalho”, a aplicação informática da Glovo, “é da exclusiva propriedade” da plataforma.
Em reação, a Glovo diz que o acórdão “vem confirmar, de forma definitiva, que o modelo operacional da Glovo segue os critérios estabelecidos na lei e que não deve ser reconhecida a existência de contratos de trabalho entre estafetas e a Glovo”. “Os estafetas que o utilizam são trabalhadores independentes, com flexibilidade e autonomia para desempenhar a atividade”, acrescenta.
A Glovo indica que, no caso desta plataforma, a “tendência” tem sido a absolvição, num total de 117 estafetas em 15 Comarcas, incluindo Lisboa e Porto, até ao momento”. Porém, três comarcas — Viseu, Castelo Branco e Oliveira de Azeméis — “proferiram sentenças a reconhecer a existência de contratos de trabalho, com fundamentação contraditória com as respetivas decisões, das quais já recorremos ou ainda vamos recorrer”, entende a Glovo.
A lei que veio regular o trabalho nas plataformas digitais tem levado os tribunais de trabalho a decisões contrárias entre si, com uns a reconhecer vínculos de trabalho dependente entre as plataformas digitais e os estafetas, e outros a não reconhecer. O reconhecimento de vínculos pode levar à garantia de direitos como subsídio de férias ou de Natal, por exemplo.
Perante as decisões contrárias, a expectativa era perceber como iriam os tribunais de segunda instância decidir sobre os processos. Em maio, o Tribunal da Relação de Évora decidiu de forma diferente noutro processo, ao reverter a sentença do tribunal inferior e reconhecendo um contrato de trabalho sem termo a um estafeta da empresa responsável plataforma Comidas.pt — que funciona de forma diferente da Bolt, da Uber Eats ou da Glovo, por exemplo.
Como já explicou o Observador, neste caso da Comidas.pt, a plataforma acordou com o estafeta pagar-lhe 1,75 euros por cada entrega realizada dentro da cidade de Beja e 2,50 euros por cada entrega nos arredores da cidade. Além disso, “afigura-se inequívoco”, entendeu o Tribunal, que a plataforma exerce o poder de direção e determina regras específicas: o motociclo que o estafeta usa é fornecido pela plataforma, que dispõe de uma caixa transportadora acoplada com o logótipo “comidas.pt”; o estafeta “desloca-se ao armazém da ré no horário acordado, para ali recolher o motociclo, capacete, indumentária mais adequada ao tempo, uma bolsa com TPA [terminal de pagamento automático] e fundo de maneio, e um cartão de combustível” para atestar a mota sempre que necessário.
Já no que toca ao poder de direção, a plataforma através de geolocalização tem conhecimento da localização e deslocação do distribuidor, “bastando que este faça login na aplicação, o que se mostra necessário para o desempenho das tarefas contratadas, a fim de serem distribuídos os serviços”. Se é verdade que, sempre que o estafeta não pode cumprir o horário não tem de apresentar justificação e pode recusar qualquer entrega, “tal não é suficiente para afastar os indícios, fortes, da existência de um contrato de trabalho”. Neste caso, ficaram provados, pelo menos, dois indícios em seis, pelo que foi reconhecido um contrato de trabalho.