“Não é real, é tudo falso. Mas não é um fato de Halloween, não é uma coisa de borracha que metes na cara. É arte”, diz-nos Mike Marino a dada altura, a propósito da máscara de Penguin, personagem do universo de Batman com honras de série na Max que se estreia no próximo dia 20, sexta-feira. Marino, responsável pelo design das próteses que Colin Farrell tem de usar para se transformar na personagem, apaixonou-se por esta espécie de feitiçaria quando viu O Homem Elefante de David Lynch e o videoclip de Thriller, de Michael Jackson. Foi nessa altura que decidiu o que queria fazer, nem queria acreditar que poderia ser pago para fazer estas coisas. Foi dele a responsabilidade de criar o Penguin que se viu no filme de Matt Reeves e que agora é transportado para esta nova série. Mas tal como aquilo que vemos não é real, é falso, mas é uma arte, também esta The Penguin não é uma série sobre Penguin.
Há vários ângulos para olhar para esta produção. The Penguin é uma série sobre Gotham City sem Batman. Também é uma história sobre o próprio vilão. Ou uma sobre os gangsters e as diferentes hierarquias que existem no mundo criminal da cidade. Faz, de igual modo, a ponte entre o primeiro filme de Batman (desta nova era, entenda-se, e não o do Tim Burton dos idos de 80) e aquele que chegará aos cinemas em 2026. E, por isso, também é uma história sobre uma cidade que sobreviveu a uma catástrofe, à inundação que acontece no filme de Reeves: “Queríamos que fosse percetível que é uma cidade para lá do filme anterior e do próximo. Mas foi divertido estar nesta posição de ponte e explorar o mundo que pode existir entre os dois filmes”, responde Craig Zobel (lembram-se de Mare Of Easttown?), produtor executivo e realizador dos três primeiros episódios de The Penguin.
[o trailer de “The Penguin”:]
Continua: “Do ponto de vista do Penguin, esta é uma Gotham diferente da do Batman. A razão para a cidade ser sempre uma personagem é simples. É sempre um sítio corrupto, que está constantemente à procura de mudança. Gotham sempre foi isso. Na nossa versão, foi divertido explorar isso a partir do ponto de partida de uma sociedade depois de um desastre. Inspirámo-nos em Nova Orleães e no [furacão] Katrina, como a sociedade, como a conhecemos, quebrou durante uns dias. Esse é o ponto de partida desta Gotham, com pessoas que perderam a casa ou perderam alguém”. Esta The Penguin também pode ser uma série sobre uma cidade em mudança, uma das mais fascinantes da ficção do último século, que acompanha em simultâneo o nosso imaginário de uma cidade que tem como herói um homem-morcego e aquilo que imaginamos como a grande metrópole norte-americana ainda carregada de oportunidades, mesmo que elas existam em áreas profissionais duvidosas, como o crime em geral e a corrupção em particular.
E, por aí, chegamos a outra coisa que The Penguin também pode ser: a história de Victor Aguilar (Rhenzy Feliz) um adolescente a quem o protagonista decide poupar a vida no início do primeiro episódio, que o contrata para ser seu motorista e que, ao longo da série, vai mostrando aquela Gotham através de outros olhos, enquanto luta contra a sua própria inocência, entre uma responsabilidade para com o patrão e a perceção de que há um mal incurável na cidade. Ele só tem de acreditar que está no lado certo. Mas qual será?
Sofia Falcone (Cristin Milioti, a estrela desta primeira temporada), filha de Carmine Falcone — o patrão do crime de Gotham que morre no filme que antecede a série — pode ser outro dos centros da narrativa. Teve o seu lugar na banda-desenhada, mas não é uma daquelas personagens que o grande público conheça. A sua interpretação para este contexto é surpreendente — a vários níveis — e ela pode — aliás, deve — ser vista como a personagem principal deste The Penguin. Se há um Batman nesta história, é a sua personagem: uma invertida, cuja forma de sarar as feridas ocorre no processo inverso ao de Bruce Wayne. E, tal como Wayne, tem o seu Alfred, que não é um mordomo, mas um médico, Falcone tem Julian Rush (Theo Rossi).
Ela e Penguin, ou melhor, Oz (Oswald Cobblepot é o nome “real” do vilão), têm direito a episódios de origens ao longo da série. São quebras necessárias para explicar o contexto em que estas figuras existem e de onde vem o caráter que construíram. Não é só uma vontade de poder que os muda, é o desejo de alterar as regras, o poder instituído pelos outros criminosos antes deles. É uma viagem pelo submundo de uma cidade, há quem lhe chame “Sopranos de Gotham City”, contudo, o que fica retido desta ideia é o de criar uma série de género a partir de um universo de super-heróis. É a DC a fazer aquilo que a Marvel tem feito com as respetivas produções, com uma substancial diferença: The Penguin é uma série para adultos, onde se pode abstrair na totalidade da ideia de universo de super-heróis. Se a quisermos resumir a uma história de gangsters, podemos.
Uma sobre um tipo que veio da classe operária e que foi subindo na hierarquia criminal, que aprendeu fazendo: “Quando o conhecemos no Batman, ele gere um clube, esforça-se para parecer estiloso e até tem um carro de cor roxa. Um tipo à procura do momento de assumir a liderança”, explica Zobel. Esse momento acontece logo no início, numa cena entre Penguin e Alberto Falcone. Oz não percebe o conceito de “consequências”, ou então recusa-o. O improviso toma conta da personagem. Penguin é engenhoso, manhoso mesmo, mas está dependente do momento para agir. Age muitas vezes sem pensar e vai para a frente a partir daí. O chamado “logo se vê”.
Tal como Marino refere, o Penguin no início dos comics “parecia um vampiro, com aquela capa. Ele era [e é] uma combinação interessante de várias coisas, faz parte deste imaginário de Gotham em que os vilões parecem possuídos por demónios”. Quando olhamos para a cara de Penguin — tal como no filme, nunca nos ocorre que Colin Farrell está ali —, vemos um rosto destruído pela vida. A cara diz tudo, esse lado manhoso, intriguista, picuinhas e, simultaneamente, de bebé, com uma ligação maternal bizarra (a mãe, interpretada por Deirdre O’Connell, é uma das grandes personagens da série) que irá ser explicada ao longo dos vários episódios.
Sofia Falcone, apesar de todos os seus problemas — e de ser uma assassina em série — acaba por ser a personagem com que a o público facilmente se relacionará. De todo o mal nesta Gotham de The Penguin, ela parece a mais térrea, a menos ligada a uma versão mística da maldade. É dela de quem temos misericórdia — se haverá tal coisa nesta série — pela forma como a família a tratou. Embora ambos os vilões sejam produtos de sobrevivência, a de Penguin é autoinfligida, a de Sofia advém do medo que os homens têm das mulheres. Quando ela percebe isso, transforma-se.
The Penguin é, então, uma série sobre o quê? Resolve-se isto voltando ao princípio e dizendo que é sobre uma cidade, não uma Gotham sem Batman (Batman provavelmente estará noutro local da cidade a limpar o sebo a outros mauzões), mas uma Gotham quando não estamos a olhar para Batman, à procura dele. E é, também, uma série que mostra o potencial de continuar a desenvolver mundos para lá dos filmes e de como estes se podem fundir com as séries. A ideia não é nova, mas The Penguin explora-a de uma forma diferente. No fundo, o objetivo é demonstrar que esta Gotham não é unidimensional: é uma cidade onde poderíamos viver.